06 janeiro 2011

Enquanto Você Dormia

foto por Alice Atrás do Espelho

ENQUANTO VOCÊ DORMIA

Há cerca de 4 horas que chegara. Estava cansada, sentia uma leve dor nas pernas, mas não deu muita importância, sentia-a todos os dias e sabia que não tinha muito o que fazer.
Sobre a mesa havia duas sacolas de mercado, uma delas estava vazia e dobrada e na outra tinha apenas um pequeno pacote com farinha de mandioca, trezentos gramas de café moído e um quilo de açúcar.
Sua casa era pequena com uma pequena cozinha, um banheiro e um quarto. As poucas visitas que recebia ficava na cozinha, sentadas em volta da mesa. Sua geladeira era velha e o fogão de quatro bocas já não funcionava muito bem. Sua pia fora doada e estava quebrada no canto direito.
Morava sozinha e sozinha tudo fazia. Tinha no rosto marcas do sol e de um tempo que trabalhara muito. Andava devagar, mas firmemente e firme eram também sua voz e seu olhar. Já enterrara cinco dos seus seis filhos. Seu marido, não o via há anos, desde que ela se mudara com seus filhos cansada do álcool e embriagues.
No fogão estavam duas pequenas panelas, uma cozendo 3 batatas e a outra com um dente de alho e cebola picados. Tinha acabado de temperar os três reais de pé de galinha que comprara no mercadinho do bairro onde morava.
Sentiu-se um pouco tonta, e pensou que talvez estivesse chegando a sua hora. Perguntou-se e a Deus se teria o prazer de ver seu filho, sua nora e seus dois netos novamente antes que morresse. Riu e pensou como estava sendo idiota, era claro que não morreria. Fazia aproximadamente três anos que não recebia visitas do seu filho.
Sua tontura tornou-se um mal estar, puxou uma cadeira e sentou, ali, apoiando um dos braços sobre a mesa, esperou as batatas e os pés de galinha ficarem cozidos. Sua vontade era de se deitar.
Naquele momento, questionou-se porque não tinha um gato ou cachorro. E respondeu pra si mesma que não gostava de gatos e não tinha dinheiro para alimentar um cachorro. Os últimos raios rosados do sol entravam pela janela da cozinha e davam cor à parede rústica.
Fixou seu olhar na ponta quebrada da pia e ficou olhando sem piscar. Apenas Deus sabia o que aqueles olhos estavam tentando dizer, apenas Deus podia ouvir os segredos, histórias, alegrias e tristezas daquela senhora.
Levantou-se e sentiu-se mais tonta, desligou o fogo e pensou que precisava tomar banho antes de se deitar, no entanto, estava muito cansada e foi repousar um pouco. Passou pelo banheiro e adentrou no quarto. Fechou um pouco a janela, arrumou o travesseiro, tirou a sandália e deitou-se apoiando as costas no travesseiro de modo que ficasse meio sentada.
Ficou naquela posição por cinco minutos e sentiu um pouco de frio. Levantou-se e pegou um fino cobertor dobrado sobre uma cadeira, abriu-o sobre a cama e puxou suas pontas uma de cada vez. Voltou a arrumar o travesseiro e deitou-se novamente, apoiou sua cabeça sobre ele e se cobriu, sentiu prazer em deitar completamente e poder descansar. Lembrou que tinha que terminar a janta, tomar banho e comer alguma coisa antes de dormir.
Virada para sua direita ficou olhando o céu rubro escurecer, cochilou. E inexplicavelmente assim ficou... Dormiu e dormindo permaneceu no seu eterno e mais profundo sono.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 11/10/2010
Código do texto: T2550384



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4 comentários:

Mônica disse...

MEU DEUS!!!
Que sensação estranha que você me causou... Estou completamente emocionada.

MEUS PARABÉNS...
(meus olhos estão lacrimejados)

Anônimo disse...

Nossa! Estou chocado. E que interessante a forma como escreve, a arrumação da casa no meio dos acontecimentos.

Eu estava lá, agora essa senhora não vai querer sair da minha mente.

Simplesmente lindo. Espero que ela tenha ido em paz.

Abraços.
Vinicius

Anônimo disse...

;( :( :( :(
sem comentários!!!

ABSOLUTAMENTE LINDO!!! E EMOCIONANTE

Arnaldo dos Anjos disse...

Gosto do jeito com que descreve as coisas... deixa de ser literatura pura e simples, e adentra num campo sensorial, quase metafísico! Pude sentir o cheiro do cozido... pude sentir até a textura das mãos da velha senhora. Seria um belo roteiro para um curta-metragem... quem sabe!