06 janeiro 2011

Palavras Afogadas

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PALAVRAS AFOGADAS

Seu Eustáquio via as chuvas de Dezembro como senhoras charmosas, rudes e egocêntricas que costumavam fazer suas visitas sempre aos finais de tarde, às vezes para apenas dar as gotas da graça e quase sempre para causar bagunça e deixar suas marcas. Ele tinha aproximadamente sessenta anos e nos dias de folga, costumava freqüentar botecos no bairro onde morava.
Calvo, barbudo e um homem forte para sua idade, já dava sinais de fraquezas e ultimamente dois copos de água ardente eram o suficiente para borrar sua visão. Parecia uma família feliz, pai, mãe, dois filhos e a caçula que há pouco tempo tornara-se maior.
Sua esposa, uma mulher doente, mas que nunca deixou sua enfermidade crônica sobressair-lhe, enfrentava tudo o que era preciso em nome dos seus filhos, mesmo depois de adultos. E por eles e por qualquer outra razão, ela sempre manteve sua lealdade ao marido apesar das desavenças e humilhações provocadas por ele, quando não consegue vencer a cachaça.
Seu filho mais velho, aquele que aparentemente era o mais calmo e mais calado, era também o que mais se via incomodado com o incômodo da mãe em relação ao pai. Já o enfrentara anteriormente, mas nunca chegou a faltar com respeito ou dizer coisas que poderia magoar seu pai.
O sol brilhou muito naquele dia, ardeu e queimou. Queimara também as nuvens que após o almoço começaram a virar cinzas. E cinzas que não se agüentaram por muito tempo e choraram, choraram muito.
Seu Eustáquio ajeitava alguns defeitos na casa e dois dias antes, o pedreiro fizera um pequeno serviço no telhado e colocou cimento de forma estratégica para que as águas da chuva pudessem correr pelo caminho mais confortável, no entanto, o serviço ainda não estava concluído. A chuva daquela tarde chegou e parecia estar sedenta e pediu água, muita água.
Samuel, o filho mais velho, estava sentado na sala, ouvia música no fone de ouvido. A televisão estava desligada, e sua mãe deixara os barbantes e a agulha sobre o outro sofá e falava qualquer coisa para seu marido, ambos na cozinha. Cansado do fone de ouvido, foi até o cômodo de onde vinha a conversa e encontrou sua mãe com uma vassoura verde e no rosto uma expressão que ele não sabia como descrever, ela parecia estar triste, decepcionada, parecia segurar as lágrimas. Com a vassoura, empurrava a água que escorria para dentro de casa.
Samuel passou pela mãe e viu que aquilo era resultado do serviço no telhado que ainda não estava acabado. A água não seguia o caminho confortável, não para ela. Sem dizer uma única palavra, pediu a vassoura à mãe e começou a empurrar a água para o quintal. Não demonstrou qualquer expressão de desagrado ou impaciência e parecia ser mais persistente do que as águas.
Havia algumas tranqueiras encostadas na parede, tranqueiras essas que Seu Eustáquio temia em se desfazer. Havia duas gaiolas, uma pequena com um periquito verde e outra média com uma maritaca. Eram cuidadas com carinho pelo S. Eustáquio que nunca se esquecia de alimentá-las e dividia todas as frutas ou legumes que comia. Era uma pena que ele sempre se esquecia de limpar as gaiolas e esse serviço ficava sob responsabilidade de sua esposa.
Sua visão estava embaçada, era nítido que há havia bebido. Veio verificar se sua maritaca não se molhava com a chuva e parou no meio da possa enquanto seu filho parou de empurrar a água para esperar seu pai sair do caminho. Ficou parado por cerca de dois minutos. Dona Josefa percebeu que Samuel estava impaciente.
A chuva aumentou, e aumentou também o volume de água que atrevidamente escorria-se para dentro da cozinha. Samuel e Dona Josefa, ambos empurravam com a vassoura e um rodo, calados, de olhos fixos no chão. Olhavam-se de vez em quando, talvez, para verificarem se o outro não estava muito cansado, se estava tudo bem. Seu Eustáquio atrapalhava e parecia estar preocupado apenas com sua maritaca.
Depois de culpar a esposa pelo serviço inacabado do pedreiro e de fazer a paciência do seu filho afogar-se, uma discussão toma a palavra. Dona Josefa gritava e S. Eustáquio gritava mais alto, Samuel apenas observava calado.
Sabia que ele era seu pai e que devia sempre respeitá-lo, mas sabia também que seu pai flagelava seu próprio respeito, mutilava qualquer admiração que seus filhos e esposa pudessem ter e Samuel sabia também que coisas que raramente aconteciam, acabavam acontecendo algum dia.
_ Para de gritar! – Gritou enfurecidamente o que deixou sua voz rouca e extremamente alta.
Seu Eustáquio olhou assustado enquanto os olhos de sua mãe enchiam de lágrimas.
_ Não grita comigo! Não grita comigo! Não – grita – comigo!
Ficaram ambos calados, apenas o suposto líder da família estava com a cabeça erguida. As mãos de Samuel tremiam e seu irmão vinha correndo pelo corredor ver o que acontecia. Dona Josefa gritou mais algumas palavras e palavrões enquanto S. Eustáquio voltava para dentro de casa e Samuel continuava a empurrar a água.
Três minutos se passaram e aquele homem de idade e embriagado voltou a verificar se sua maritaca estava bem. Sua preocupação com a ave, dá luz a um sentimento que Samuel nunca experimentara anteriormente. D. Josefa, sem paciência, perguntou aos gritos o porquê manter a ave naquele lugar se tinha a preocupação dela se molhar e recebeu resposta aos gritos que a ave ficaria ali, porque era assim que seu marido queria.
Algumas horas depois, já de noite, não se preocupavam com a água, a chuva não estava mais forte. No dia seguinte, Seu Eustáquio foi o primeiro a acordar.
Foi ao banheiro, depois à cozinha, esquentou o café da noite passada, tomou um gole, destrancou a porta e foi até o quintal. Faria um belo dia, ele pensou. Foi até a gaiola do periquito e o pendurou a um prego na parede próxima ao quintal. Assobiava e esperava assobios da maritaca, mas naquela manhã ele teve a surpresa que os assobios de sua ave ficariam apenas no passado, apenas em suas lembranças. Seus olhos encheram de lágrimas, não sabia o que fazer ou dizer, talvez, nem soubesse que sentimentos eram aqueles que ele sentia.
Demonstrou raiva e disse a todos da casa para não se desfazerem da sua ave. Dona Josefa também demonstrou tristeza ao descobrir que Lolinha havia morrido. A filha caçula sentiu pena, o filho do meio, meio indiferente tentou entender como e o filho mais velho demonstrou apenas a dolorosa indiferença.
Já ao anoitecer, Seu Eustáquio, embriagado, depois de chegar da rua, sentou-se em uma cadeira velha que havia nos fundos de sua casa e em seu colo estava a gaiola com sua maritaca. Ficou a olhar fixamente para ela com os olhos umedecidos.
Na sala, estavam D. Josefa e Samuel, ele assistia à TV e ela fazia crochê. Ouviram S. Eustáquio entrar e o esperaram chegar até eles. Ele gritou que aquilo era culpa de sua esposa e de seus filhos, disse palavrões e desejou mal aos seus familiares que escutavam tudo calados. Sem perceber reações de seu filho e esposa, voltou caminhando como se estivesse pisando sobre pisos feitos de maria-mole, passou pelo corredor e entrou no seu quarto, fechou a porta que sempre se mantinha aberta, mãe e filho olharam-se. 
Seu Eustáquio entregou-se ao choro e como criança chorou, soluçou e chorou, engasgou-se e chorou. Da sala, escutavam tudo. Dona Josefa emocionou-se ao ver que seu filho estava com os olhos cheios de lágrimas e naquele momento pintava-se poeticamente um quadro em movimento, Samuel levantou a cabeça e olhou para sua mãe e uma linha de lágrimas escorreu pelo seu rosto. Ela fitou-o desconfiada de como tudo acontecera e leu analfabetamente os lábios mudos do seu filho pedindo desculpas sem que nenhuma palavra fosse realmente dita.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 05/12/2010
Código do texto: T2655407



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