20 novembro 2011

Dias Vazios

imagem própria

DIAS VAZIOS


Hoje é um dia extremamente triste. O vazio faz-se presente no peito e a dor faz-se companheira. Lembranças tentam tornar cada minuto real de volta a cada segundo do presente. Tudo o que foi vivido parece ter sido em vão. Um sentimento de ódio também parece bater na porta da consciência. As lágrimas dos familiares são súplicas por ajuda e abraços. Lembranças tentam tornar-se reais. Hoje é um dia extremamente triste. Um pedaço dele foi arrancado.
O mundo moderno exige praticidade, e nessas horas é preciso cuidar de toda parte burocrática e do dinheiro para o enterro. Tudo é feito de forma consciente, mas consciência essa alimentada pelo vazio de pensamento nenhum, de sentimento nenhum que não seja a falta, e a esperança por qualquer coisa, a súplica por um sinal ou troca e a certeza do nunca mais e de que amanhã e depois de manhã e depois e depois e depois serão cada vez mais vazios.
Seus olhos estão lagrimejados, seus beiços tremem, seus braços não possuem mais vida ou possuem vida própria. Uma vontade de gritar e chorar o mais alto possível, vontade de sair correndo para lugar nenhum, vontade de se encontrar com ela, vontade de um abraço, só mais um – o último que seja –, vontade de uma última palavra: eu te amo.
Chega o momento em que não podemos mais agir como muralhas e ele desabou sobre suas pernas. Estava sentado e começou a chorar. Não um choro qualquer desses que choramos quando nos machucamos, mas um choro doloroso, solitário, eterno. Um abraço amigo veio fazer-se presente, veio apoiar as colunas da muralha. Nenhuma palavra foi dita. O homem ainda não foi capaz de inventar palavras para esse momento.
Carlos tem dezesseis anos e perdeu a visão ainda com um ano de idade. Consegue locomover-se facilmente pela cidade, é um rapaz independente; estuda, faz cursos e pratica esporte. Tem uma vida normal, apenas com um sentido a menos. Amava sua mãe e apesar de nunca tê-la visto com os olhos, a sensibilidade de seus dedos o ajudava a enxergar a mãe pelo tato e pela audição. Ela era realmente linda. Fez de tudo pelo filho, lutou pelos direitos dele e lutou por ele. Era uma mulher alegre, bem humorada, dessas que gostam de fazer várias coisas ao mesmo tempo.
Carlos ainda consegue ouvir a voz de sua mãe. Por vezes, jura que ela ainda está entre nós e lágrimas brotam de seus olhos.
Seu pai, sua irmã e ele ficaram na casa dos avós por três dias após o enterro. E o dia de volta para casa foi como se tivessem viajado no tempo para o passado. Era como viver novamente os momentos sem a permissão de senti-los. O cheiro da casa, as coisas como ela deixou, o quarto, as fotografias, tudo. Tudo também fez parte dela e ela fez parte de tudo, muito do que se encontrava dentro daquela casa era criação dela. Como é possível as coisas mudarem de um instante para o outro? Como é possível olhar para obra de alguém que sabemos que nunca mais chegará sorrindo, nunca mais ouviremos sua voz, nunca mais um abraço, nunca mais veremos o brilho dos olhos? A dor pesou mais sobre ombros de Carlos. O cheiro da mãe ainda era presente, os cremes, os perfumes eram verdadeiras máquinas do tempo.
Ficaram, por um tempo, sentados no sofá da sala, olhando para o nada, calados. Cada um isolado em suas lembranças, dores e ao mesmo tempo, prontos para dividir as lágrimas.
Após um tempo, apenas Carlos ficou sentado no sofá. Estava de olhos abertos, mas a escuridão dentro dele, trazia a voz e o cheiro da mãe.
Alguns dias depois, trancado em seu quarto e sem explicação por que fez aquilo, Carlos ligou para o celular da mãe que estava em sua mão. Suas pernas também tremeram quando ouvir e sentiu o aparelho tocar e vibrar. Esperou que a ligação caísse na caixa postal.
Após o sinal, Carlos ouviu a voz dela na mensagem. Seu coração bateu forte, ficou ofegante. Uma sensação de alegria e dor se misturava ao meio ao caos em sua mente inundada por lembranças. Por uma fração de segundos imaginou tocar o rosto da mãe novamente... chorou, chorou muito. Algo apertava seu peito, algo precisava ser expelido.
Ligou novamente várias vezes para o número do celular, até que parou em pé em frente à janela do seu quarto. O sol brilhava lá fora, mas isso, naqueles dias, não fazia diferença nenhuma. Carlos se perdeu em pensamentos... Entregou-se mais uma vez, chorou muito e quis quebrar o celular, mas logo veio a ideia de que estaria machucando a voz da sua mãe. Tentou engolir o choro e mostrar força e antes que caísse em prantos de novo questionou-se: até quando ficaria disponível aquela mensagem?

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 20/11/2011
Código do Texto: T3346315 

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, fazer uso comercial da obra, desde que seja dado crédito ao autor original (Samir S. Souza - www.contoando.blogspot.com). Você não pode criar obras derivadas.

07 novembro 2011

Na Calada da Noite

imagem google

NA CALADA DA NOITE

Sempre tive dúvidas sobre o meu acreditar em fantasmas, assombrações, ectoplasmas e coisas do tipo. Confesso que quando criança, chegava a ouvir passos ou achar ter visto alguém me olhar de rabo de olho escondido atrás de uma das paredes da casa. Eu morria de medo, era verdadeiramente perturbador ficar sozinho, principalmente quando minha mãe ia buscar minha irmã na escola e voltava já por volta das sete horas da noite. No entanto, felizmente cresci, claro que às vezes, nessas conversas de assombrações onde amigos mostram fotos estranhas e cada um conta relatos de parentes próximos ou de experiências próprias, minha imaginação turvava-se, mas nada que fosse sério ou que me abalasse. Gostava até. Achava tudo muito excitante. Igual a mim, creio que todos também possuem amigos, principalmente amigas que sempre nos aconselham com ditados populares ou alguma superstição; é cruel, mas tenho que admitir: quem procura acha. E quando ousamos em chamar; algo chega. Mas confesso que ontem à noite, não falei sobre o assunto e muito menos chamei ou procurei alguma coisa.

Era por volta da meia noite e pouca. Eu havia acabado de me deitar. Fiquei boa parte da noite fazendo companhia a minha mãe na sala. Eu estava cansado e pensava no trabalho do dia seguinte: acordar cedo, sair de casa quando o sol ainda vai começar a se preparar para seu espetáculo, ter que aguentar pessoas chatas entre elas eu mesmo e ainda, por mais tolo que isso possa soar, fazer serviço que não é exatamente o meu. Pois bem, era ou ainda iria dar onze horas quando subi para o meu quarto, fiquei cerca de quase uma hora usando o computador e como não havia mais recados para responder e nem filmes interessantes para assistir, deitei-me.

Há noites, que não preciso fazer absolutamente nada, só deitar e dormir. No entanto, há outras tantas em que o sono parece ir embora justamente quando encosto a cabeça no travesseiro, e ontem foi uma dessas noites. De tanto virar de um lado para o outro, eu resolvi ficar de barriga para cima, balançava o pé direito sem parar – só agora me lembro deste detalhe – e fiquei de olhos abertos olhando o escuro ou talvez o forro do teto dentro da escuridão.

Um avião passava lá no alto, bem além do teto da minha casa. Imaginei-o, o avião, aquele pontinho prateado brilhando num céu da cor do azul misturado ao cinza entre nuvens grafites e a luz da lua pálida banhando tudo ao mesmo tempo.

Um barulho borrou as nuvens, a lua e o avião na minha imagem. Olhei em direção a parede ao meu lado direito. Percebi que o barulho não vinha da parede ao lado, mas do canto superior da parede da minha cabeceira. Parecia um rato arranhando o tijolo ou fazendo ninho. Aquele som não durava nem cerca de um minuto, e logo depois voltava. Por um instante imaginei unhas arranhando o cimento. Como imaginei ser apenas rato, não dei importância.

Já estava quase adormecendo quando de repente meu sono foi fisgado por alguma coisa que agora arranhava o forro. “Meu Deus, tem rato dentro do forro!”. Pensei o que seria preciso fazer para acabar com os ratos e logo me perguntei como seria capaz daquele animal perfurar o tijolo rapidamente.

Não sei se serei capaz de descrever exatamente o que e como as coisas aconteceram. Senti um enorme cala frio e um arrepio que me levou para fundo da minha própria mente. Segundos depois, senti novamente e mais intenso. Tive que me encolher, parecia que a minha cabeça fora mergulhada dentro de um poço inundado de gritaria. Era uma verdadeira poluição sonora e imagens de pessoas borradas dentro de uma espécie de névoa cinza, branca e preta vinham a minha cabeça. Um caos. Eram gritos que não posso descrever, pareciam risos, gargalhadas, choros, dor, socorro. Tentava abrir os olhos, mas era tudo mais forte do que eu. Se caso fosse um pesadelo, estou certo de que não era eu quem tinha o pesadelo, mas o pesadelo que me tinha.

Quando finalmente consegui controlar aquele cala frio que deixava todos os meu pelos arrepiados e consegui abrir os olhos, eu estava tonto e um pouco enjoado. Vi na parede uma fileira de luz alaranjada. Não sei como, já que eu nunca tive muita coragem, olhei em direção da onde poderia vir aquela luz. A janela estava dois dedos aberta. Pensei seis vezes antes de ir fechá-la.

Quando estava novamente me arrumando, outro barulho se fez presente. Para meu azar ou não sei se sorte, o barulho vinha do quarto que fica próximo às escadas, quarto esse que está vazio e cuja porta fica o tempo todo aberta. Confesso que não me atrevi a ir ver o que era.

Meu quarto fica ao final do corredor, deixo a porta sempre aberta, principalmente em noites quentes igual ontem.

Estava deitado de barriga para baixo quando escutei o clique do interruptor. Imaginei que fosse minha mãe que estivesse acordada, olhei de relance, mas tudo continuava escuro. Fiquei um pouco apreensivo. Segundos depois escutei novamente aquele clique. Não era um som distante ou um estralo de algum objeto. Sei exatamente o que ouvi: era o interruptor sendo pressionado. Olhei em direção à porta do meu quarto e o escuro tomava conta do corredor e obviamente de todos os outros cômodos. A única coisa que passou pela minha cabeça foi me cobrir e foi o que fiz.

Meu celular estava ao lado da minha cama, ele estava ligado caro leitor, mas o visor estava desligado como forma de poupar energia. Como todos devem ter conhecimento, o visor só acende quando a tecla é pressionada ou quando recebe ligação ou mensagem – e o visor acendeu. Fiquei curiosíssimo, por um instante esqueci-me de tudo e fui ver de quem seria a mensagem, no entanto, não havia mensagem ou ligação alguma. Foi neste instante que me dei conta onde estava mergulhado.

Aquela luz do celular dava um tom azulado dentro da escuridão do meu quarto, iluminava apenas parte do escuro em torno do aparelho. Outra vez senti aquele cala frio e mais uma vez tive minhas razões mergulhadas em gritaria como já havia acontecido antes, felizmente, desta vez, não durou muito. Abri os olhos e o escuro dominava tudo novamente e mais uma vez o visor do celular voltou a clarear. Já não sabia mais o que fazer e mesmo se soubesse, talvez não tivesse coragem de me levantar ou mesmo de tirar a coberta de cima de mim.

Um livro da prateleira que fica no quanto esquerdo do meu quarto caiu. Creio que seja um livro, era o som de um livro caindo no chão. Aquilo foi o suficiente para que meu coração batesse mais rápido do que já estava batendo. Um frio tomou conta do meu corpo. Um frio enorme parecia estar apenas dentro da minha coberta. Encolhi-me e cada vez aquele frio aumentava mais... O visor do celular não desligou novamente, a única coisa que consegui fazer naquele exato momento, foi virar o visor para baixo.

Caro leitor, juro que vi o que vou contar daqui por diante. Havia alguém sentado na cadeira de frente para o meu computador. Olhei como quem não quer olhar, mas precisa certificar-se de que está mesmo olhando: era alguém que olhava em minha direção, que não demonstrava nenhum movimento, apenas estava virado em direção a minha cama. Não consegui ver se era homem ou mulher, na verdade, era possível apenas ver um pouco mais do que a silueta, assustadoramente.

É engraçada a reação das pessoas em momentos de pavor. A minha foi de deitar-me novamente, afinal, o que eu poderia fazer? Levantar e sair correndo? Levantar e acender a luz? Perguntar quem era? O que você faria caro leitor se fosse você nessas condições?

Cobri-me até a cabeça, minha respiração estava ofegante e senti muito, muito frio. Tentei gritar por alguém, mas minha garganta estava em nó – agora eu sei o que é ter um nó na garganta, como dói. Queria chorar, mas nem lágrimas eram capazes de descer pelos meus olhos. Tentei rezar.

Escutei novamente o barulho do interruptor e passos como quem está vindo do corredor. O visor do celular continuava ligado. Olhei por rabo de olho para a cadeira e não vi nada. Não sabia se procurava por sinal de alguém no quarto todo ou se alimentava a ideia de que não havia ninguém ou que seja lá o que era já fora embora.

No momento em que estou, amedrontadamente verificando o quão real poderia ser tudo aquilo, a luz do quarto acendeu e logo em seguido apagou novamente. Questão de segundos, mas o suficiente para eu ver o que parecia ser uma mulher sobrevoando em frente a minha cama. Foi como laminas penetrando na carne – não era como cortes, era pior que isso. Corri pelo corredor, descalço, sem pensar em nada, queria apenas libertar a minha mente.

Não sei se desci a escada degrau por degrau, de fato só lembro do meu pai vindo em direção a mim com os olhos arregalados perguntando o que estava acontecendo. Eu tremia feito bambu e minha voz estava esganiçada e engasgada. Contei o que vi ou que aconteceu por último.

Não entendo porque quando acontece ou vimos algo e contamos ou pedimos ajuda a alguém, essa pessoa tenta nos levar no local exato para que possamos mostrar. Ora, já contei o que vi ou o que aconteceu e onde aconteceu, vá só, não me peça para ir junto... ninguém sabe o que foi que vi ou presenciei. Que idéia doida de querer que eu vá junto...

Infelizmente, acabei indo, não havia outro jeito. Quando chegamos ao corredor, a porta do meu quarto estava entreaberta e a luz a acesa. Implorei para não entrar, mas o que havia de ser feito. Sou um homem ou um saco de batatas?

Estava tudo aparentemente normal. Não havia livros caídos, nada nas paredes, a janela estava fechada, a cadeira continuava virada em minha direção e o visor do celular estava desligado com uma ligação perdida. Não havia nada no forro, ninguém flutuando e nem mesmo sinal de frio. Meu pai me olhava assustado, não pelo o que talvez tivesse acontecido, mas pelo meu comportamento. Confesso que eu estava transtornado ainda, estou certo de que não era imaginação.

Ouvi que era preciso dormir, deixar de bobeira porque já não tenho mais idade para essas coisas e que eu preciso tomar vergonha. Meu pai desligou a luz do meu quarto e seguiu o corredor em direção as escadas. Eu fiquei em pé, sob a luz do corredor olhando meu pai se afastar e tentando olhar para dentro do quarto... que dilema: entrar ou dormir na sala?

Samir S. Souza
Texto Publicado no Recanto das Letras em 07/11/2011
Código do texto: T3323041 

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, fazer uso comercial da obra, desde que seja dado crédito ao autor original (Samir S. Souza - www.contoando.blogspot.com). Você não pode criar obras derivadas.

28 outubro 2011

A Peste (conto inteiro)

Imagem disponível em http://ultradownloads.uol.com.br/papel-de-parede/Lobo-Branco--117398/


A PESTE

Primeiramente quero salientar que qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.
Caro leitor, perturbe-se com essa leitura e tome o cuidado ao lê-la em voz alta (se for o caso) para que não haja crianças por perto, apesar “delas” aparecerem no conto. Se você for um adepto às histórias de terror, é muito provável que irá gostar desta, mas adianto que não se trata de assombração, mesmo que seja um tanto assombroso. Agora, se preferir os contos de causos este também se encaixa muito bem, mas se procuras um romântico ou um politicamente correto nem se atreva a começar.
Se por acaso, você caro leitor (a) tiver medo de agulhas ou não as suportar, sugiro que lance mão de ler este ocorrido, afinal, eu estou certo de que haverá picadas.
E se ainda houver quaisquer dúvida, eu afirmo que se trata de um conto de TERROR.

I

Segurava com as duas mãos um grande pedaço de carne. Sua esposa observava sentada a sua frente, mexia-se muito colocando a língua para fora e pedindo para o marido continuar e dar o que ela tanto queria.
Por ora a carne ainda é de procedência desconhecida, pelo seu aspecto tudo indica que se trata de carne de porco. A brincadeira adulta de ambos aumentava e parecia não ser a primeira vez. Ele é um homem de aproximadamente cinqüenta e três, barriga bem saliente e peluda, suas nádegas parecem ter sido achatadas na parte superior e suas costas tinham um aspecto nojento devido os pelos molhados pelo suor. Seu quadril balançava num vai e vem e seus olhos viravam-se animalescamente. Os gemidos começaram discretamente, mas já tomavam conta de toda a situação. Gemidos esses que vinham de ambas as bocas.
Estavam na cozinha, ela sentada e ele em pé esfregava-se no pedaço de carne sobre a mesa. Não era uma cozinha pequena, mas não se pode dizer que era grande. Defronte a , estava a porta de madeira envernizada. Ao lado esquerdo, a geladeira num tom azul muito claro e sobre ela um pequeno aparelho de televisão e DVD. A suas costas, estava a janela e ao pé dela, uma média pia de granito cheia de pratos e copos sujos. O armário localizava-se do outro lado da cozinha e as paredes eram de um branco creme.
_ Está chegando! Está chegando!
_ Isso! Continua meu amor! Continua meu bode safado... – Disse ela com as pernas abertas esfregando os dedos nos seus lábios.
Escutava-se o barulho feito por tal ato: um barulho molhado muito parecido com plástico ou quando alguém fica brincando com a boca e os dedos chupando a saliva cuspida na mão.
A mesa balançava muito e o ferro fazia um excitante gemido. Com os dedos ainda um pouco sujos de sangue da carne e sêmen, ele começou a passá-los no corpo da esposa que por sua vez, segurava a mão do marido e fazia força para que os dedos dele não ficassem apenas na superfície.
O filho mais velho do casal era adotado e entrou na cozinha. Foi direto pegar, na geladeira, alguma coisa para beber. Sua presença não causou desconforto e nem susto em seus pais que continuaram. O rapaz de aproximadamente dezessete anos passou por detrás do pai, olhou para o pedaço de carne rosada suja esbranquiçadamente. Olhou para os olhos da mãe que o observava abrindo e fechando a boca e olhou os dedos do pai passeando pelo corpo da mãe. Abriu a geladeira pegou uma lata de refrigerante e deu um gole. Ficou parado observando tudo.
Ao perceber que seu filho não ficaria apenas na observação, mesmo que apenas no mundo dele (do adolescente), deu ordem com voz áspera para que saísse. A voz daquele homem era de um rouco que provavelmente aos gritos deveria causar estrondos ou simplesmente não fazer barulho algum. Seu olhar para o filho adotivo foi como duas laminas e sua voz arranhou todo o ritual que logo foi iniciado de onde havia sido brevemente interrompido.
Depois de terminado o momento fraternal daquele belo casal, a carne foi colocada em um recipiente de plástico e levada à geladeira, no mesmo estado em que o chefe daquela adorada família havia deixado.
Etezile, a rainha do castelo, dirigiu-se até o quarto de suas filhas – duas graciosas meninas, uma de treze anos e outra de sete, ambas também adotadas – e pediu para a mais nova lavar a louça.
Mais tarde, para o jantar, houve arroz, purê de batata e bife frito com médias rodelas de cebola levemente murchadas no óleo quente. Havia também salada de alface lisa temperada com sal, vinagre e azeite. Do prato, subia o vapor do arroz e feijão quentes e frescos. Quase ao centro da mesa estava uma forma sobre um apoio de madeira onde havia algumas coxas de frango tentadoramente douradas e que pareciam piscar de vez em vez com o calor do recipiente.
Salis, o imperador, chamou as crianças para jantar. Gil, o filho mais velho já estava sentando à mesa. Samanta, 13 e a Cristina de 7 chegaram após terem lavado as mãos no lavatório do banheiro. Chegaram correndo e rindo. A mais nova vestia um vestido branco de renda com pequenos detalhes azuis, seus cabelos longos e louros estavam amarrados rabo de cavalo. Tinha os olhos castanhos e um nítido desvio. A mais velha de cabelo resultado da mistura de ondulado e pixaim, tinha a pela do pecado – um claro moreno dourado. Vestia uma espécie de camiseta justa cuja manga chegava uns dois dedos antes dos cotovelos. Estava despropositadamente sexy. Tinha um corpo magro e seus seios joviais eram proporcionais e estavam delicadamente desenhados pela camiseta preta.
A refeição foi iniciada logo após o grande monólogo protagonizado pelo imperador que agradeceu e fez os coadjuvantes agradecerem também pela mesa farta, bonita e deliciosa. Logo depois, pegou os dois controles remotos que estavam sobre a mesa ao lado do seu prato e direcionou à TV e ao DVD. Era um filme pornográfico e seu áudio estava muito baixo.
O bife que outrora fora instrumento de prazer para Salis agora era servido para que toda a família pudesse alimentar-se. Depois de frito não foi possível ver qualquer coisa que denunciasse a substância que fora literalmente jorrada sobre a carne. Igual as três primeiras personagens, as duas meninas não sentiram cheiro, ou paladar diferente. A rainha gemeu quando mordeu um pequeno pedaço, sentia prazer, desse que sentimos quando degustamos um doce divinamente maravilhoso.

II

O cheiro de frango assado percorreu o estreito corredor daquela residência, desceu as escadas que esticavam os degraus até um cômodo que lembra muito um porão. Escuro absoluto. Aquele aroma quente, que denunciava casa cheia e pessoas bem vindas, perdeu-se ao cheiro que pairava naquela alcova.
Um odor forte e agudo azedava o ambiente e irritava os olhos de uma moça que acabara de acordar com uma forte dor de cabeça. O escuro encheu seus olhos de pavor e o cheiro de urina e fezes encheu sua narina de dor. Ela percebeu também que havia um cheiro insuportável de porco e chegou a escutar gruídos, mas achou tudo absurdo e não reparou o que talvez pudesse ser um animal perdido naquela infinitude finita. O chão estava gelado, assim como também estava a parede onde colocou a mão e sentiu algo molhado e escorregadio.
Preferiu intensamente não ter acordado. Eram absolutamente insuportáveis o cheiro e a escuridão daquele lugar. O frio e os barulhos eram verdadeiras lanças enferrujadas que penetravam a carne daquela moça acorrentada pelas pernas e amarrada pelas mãos. Depois de tentar entender o presente que o dia havia guardado, seu segundo instinto foi gritar o máximo que podia. Gritar também não foi tão fácil como ela pensou que seria – o cheiro arranhava sua voz e adentrava os pulmões causando uma sensação de dor e cansaço no peito. No entanto, chorou, copiosamente chorou como quem já teve os olhos ofuscados pelo futuro.
Mais uma vez escutou o gruído e esteve certa de que não estava sozinha e logo imaginou que se tratava de um chiqueiro. Escutou também passos de chinelos mal pisados que pareciam aproximar-se. Um barulho muito familiar ao gruído, como quem puxa o catarro para então cuspi-lo, denunciou ser a chegada de um homem.
À medida da chegada dos passos para mais perto, a respiração daquela moça parecia se distanciar e ficar mais difícil. Estava ofegante, mas sua falta de oxigênio era causada pelo pânico. A mesma sensação causada em momentos de adrenalina ou dos momentos em que precisamos fazer algo muito importante e que há muitas pessoas observando, mas a sensação acontecia da forma em seu avesso, tomava conta do estomago daquela criatura perdida na escuridão.
A chave rodou a tranca e a porta foi aberta. Uma luz amarelada ao tom de laranja iluminou as proximidades da entrada do cômodo. Levou questão de segundos para que as lâmpadas fossem acesas. Ela estava sentada ao lado oposto da porta. Tentou esconder os olhos da luz e teve uma expressão estranha ao ver o que a rodeava. Ela era uma moça bonita, de pele branca queimada pelo sol, teria aproximadamente vinte e sete anos, seus cabelos negros e ondulados desciam até os ombros, os olhos deveriam ser castanhos escuros.
As paredes eram cobertas por azulejos de um cinza muito claro, os limbos estava verdadeiramente sujos. O chão era de um piso da cor azul também muito claro e muito sujo com borrões marrons que lembravam fezes. A sua direita, estava um porco rosado muito grande e gordo amarrado pelo pescoço com correntes. Suas patas pisoteavam uma lama cinzenta misturada à urina e fezes e naquele exato momento o animal defecava.
A sua frente, alguns centímetros para a esquerda, estava em pé o imperador. Tinha uma bandeja em uma das mãos e na outra uma pequena garrafa com água. Cuspiu no chão o que havia puxado segundos antes e andou em direção reta. Agachou-se defronte para aquela pobre coitada e pousou sobre o chão a garrafa d’água e o pequeno recipiente que trazia. Nele havia restos de comida da janta: arroz, feijão, ossos do frango, alguns até com um pouco de carne e ainda tinha o que parecia ração para cachorro.
Ela não tirava os olhos assustados daquele senhor que a observava com olhos de lâminas da luxaria. Ficou de pé novamente e foi até o lado direito dela, bem próximo ao seu rosto. Abriu o zíper e começou a sonhar, imaginar, fantasiar e tornar real na medida do possível, depois de aproximadamente cinco minutos, ela percebeu o que era aquela coisa molhada onde ela havia colocado a mão logo que acordou. Aquele cheiro peculiar daquela substância embrulhou seu estomago, vomitou. Tentou virar para a esquerda, mas ainda sim sujou um pouco suas roupas e o recipiente com o pão de cada dia trazido por Salis.
Ele passou seus dedos ainda sujos no resto dela, sorriu e com uma expressão de prazer puxou seus cabelos de forma bruta e balançou sua cabeça pelos cabelos – dois pra lá e dois pra cá. Ela gritava, chorava e com suas mãos amarradas tentava segurar as mãos dele, que eram um pouco maiores, firmes e rudes, na tentativa de que os puxões doessem menos.
_ Papai... papai! – Chamou a caçula. Tinha um ar de inocência e sua voz de criança angelical demonstrava que nada do que acontecia dentro daquela casa estava errado. Talvez não estivesse mesmo dentro da cultura daquela adorada e respeitada família. Aquela doce garota de sete anos olhou para aquela moça sentada e amarrada como um animal e viu que seu pai terminava de levantar suas calças, abotoar e fechar o zíper. A expressão daquela acorrentada infeliz foi de paz e certa esperança por ver aquela criança e ao mesmo tempo sentia pavor e repudia ao ver o quanto semelhante era o anjo e o demônio.
_ Fala minha princesa! No que o papai pode te ajudar?
Ela olhou para a moça e com uma postura envergonhada falou baixo ao pai, quase um cochicho. Ele, ao ouvi-la, deu uma gargalha e beijou sua bochecha dizendo que não havia nenhum problema em colocá-la para dormir.
Antes de desligar as luzes e subir as escadas, ele deu uma última olhada para a hóspede, seu olhar foi ameaçador e parecia dizer que reservava surpresas. Com a feição séria, segurou seus órgãos genitais e com firmeza fez um movimento de exibição.
Antes era a treva, e o anfitrião trouxe a luz e com o seu poder a levou. Maria – esse era o nome dela – estava novamente rodeada pela treva.

III

Lá embaixo, naquela verdadeira alcova, Maria perdeu todo o sentido de horário e talvez em sua cabeça, fosse noite ainda ou seria para sempre. Cochilou um pouco ou acha que chegou a fechar os olhos para não ver a escuridão que a cercava.
Acordou ou abriu os olhos naquele fundo de odor quando escutou a porta ser aberta. Aquela luz amarelada iluminou novamente as proximidades da escada e ela pode ver um belo rapaz. Vestia uma camisa social de tecido trabalhado na cor de um verde muito claro quase amarelo e uma calça preta muito bem passada. Era o filho mais velho. Acendeu a luz do cômodo, depositou sobre uns dos degraus alguma coisa que Maria não pode identificar, mas achou que talvez fosse algum livro.
Ele se aproximou, olhava sempre no rosto dela, carregava um leve sorriso carismático e trazia nas mãos alguns pedaços de fio elétrico e um pano. Chegou muito próximo de seu rosto. Ela virou para a esquerda. Percebeu que ele estava muito perfumado, seus sapatos impecavelmente engraxados e a fivela prateada do seu cinto muito bem polida.
Segurou sua cabeça com as duas mãos e a esfregou em sua virilha. Maria tentou se afastar, mas quase tudo o que tentasse fazer seria em vão. Para sorte de Gil, ele também sabia que seria quase tudo inútil. Com a tira de pano, amordaçou-a e logo em seguida tirou os sapatos, as meias, a calça e por fim a cueca. Vestia uma cueca branca. Foi em direção ao porco com os pedaços de fio elétrico. O animal assustou-se um pouco, mas logo teve suas patas traseiras e o focinho amarrados. Voltou e pegou um preservativo no bolso da calça.
Maria não acreditava no que estava vendo e quando o porco começou a berrar, seus gruídos dolorosos promoveram nela, uma sensação de dor e nojo. Virou o rosto para direção oposta, enquanto Gil, no seu doce balanço, depositava no animal toda sua confiança.
Com tudo terminado, Gil vestiu sua cueca – segurava-a pelas pontas dos dedos – tomou o cuidado quando a colocava de modo que seus pés sujos não se encostassem à vestimenta de baixo (em vão). Foi a única peça que vestiu. Segurou o resto de sua roupa e demonstrando pressa dirigiu-se à escada, pegou o objeto anteriormente depositado em um dos degraus e subiu correndo.
Maria olhou em direção ao porco que continuava muito inquieto e percebeu que sangrava. Em poucos minutos, o animal deitou na lama que o cercava, apoiou o rosto em suas patas e ficou a respirar. Talvez, fosse aquele o único momento de solidariedade, que aquele que acompanhava Maria, chegasse a dividir e demonstrar.
Cerca de vinte minutos depois, Gil estava de volta, com a mesma roupa que chegara momentos antes. Trazia agora uma bota branca de plástico. Calçou-a e foi retirar do porco os arames que havia colocado. Desamordaçou Maria. Ela chegou a perceber certa preocupação por parte dele. Teve quase certeza de que ele estava ali, às escondidas. Levou os fios com ele. Subiu a escada, passou pela porta e ouviu-se o trancamento. Segundos depois, a porta foi aberta novamente. Desceu a escada, desligou a luz, subiu novamente e dessa vez não se esqueceu de deixar a treva naquele lugar.
Aquela adorada família estava de saída. Iam todos à igreja. Estavam muito bem vestidos. Salis usava um belo terno azul marinho e sua esposa um vestido da cor do vinho. As meninas também usavam vestidos. A mais nova, um branco com detalhes rosa, um sapato com o salto levemente alto da cor creme. A mais velha, um branco com rendas e detalhes roxo, seus sapatos eram mais altos. Nenhuma das mulheres pareciam maquiadas. Um cheiro suave de rosas tomava conta do espaço.
Aquele que impera naquela casa, tem tudo a sua percepção e nada ou quase nada tende e fugir de seu conhecimento. Viu quando Gil trancava a porta que dava para a escada que levava até a escuridão onde Maria estava presa, à espera de uma luz que não fosse a que a fazia despertar do ou para o seu pesadelo.
_ O que você estava fazendo lá embaixo?
_ Nada...
_ Como nada?! Por que está... deixe me ver. – Salis verificou se seu filho estava abrindo ou fechando a porta. Onde você pegou essas chaves? Quem te deu permissão?
Pareceu ficar mais irritado quando viu o que Gil tentava esconder: os fios elétricos e a tira de pano. Não esperou. Deu um tabefe na nuca de seu filho adotivo que entregou as chaves na mão de seu pai enquanto encolhia o pescoço igual uma tartaruga.
A porta foi aberta novamente e dessa vez, Maria estranhou a força da chave que fez um barulho de quem está com raiva ou pressa. Salis desceu a escada com pisadas fortes. Acendeu a luz e foi direto para Maria. Sua expressão era de fúria e certo temor. Puxou Maria pelas pernas com força. Abriu sua calça e abaixou-a até metade da perna. Assustada, gritava e tentava se esquivar. Ele passou os dedos em seu corpo, olhou como se seus dedos pudessem estar sujos, cheirou-os e não satisfeito, abaixou-se e cheirou de perto. O medo estava pintado e tatuado no rosto de Maria. Ela não tirava seus olhos de Salis e por uma fração de segundos, ela olhou para o porco. Ele fez o mesmo e demonstrou alívio ao ver que seu filho não havia feito nada contra sua hóspede, que já estava com a voz a sumir de cansaço. Antes de desligar a luz e voltar para a parte de cima da casa, Salis, educadamente, subiu a calça de Maria e olhou mais vez o animal.
Na escuridão, que agora passava a ser uma companheira e um refúgio, Maria escutou, sem identificar exatamente, gritos e o que parecia ser Gil chorando.

IV

O escuro ajudava os olhos ficarem pesados. Cochilos já eram quase freqüentes. Dormiria melhor se não fosse o mau cheiro da própria urina e fezes em suas roupas. Seu corpo também doía muito, suas costas e suas nádegas pareciam moídas. Deitou-se de rosto para o teto, escuro absoluto. Sentiu um alívio, mas logo o incomodo das dores voltou a fazer companhia. Virou-se de barriga para baixo. Já não sentia mais odor que pudesse fazer algum mal e sem perceber, gemeu quando pode descansar.
Talvez fosse noite e no meio dela, Maria acordou. Ainda sonolenta, percebeu que sentia frio e que babava e encolhendo-se apoiou, sobre as duas mãos, a cabeça e em segundos, para sua paz, fechou os olhos para ver luzes.
Não sabe se dormiu muito ou se o tempo foi muito curto, mas quando abriu os olhos encontrou uma mulher toda vestida de látex. Estava deitada com os cotovelos em um lençol branco sobre o chão, suas pernas flexionadas. Assustada, Maria sentou-se e não tirou os olhos daquela mulher. Era a rainha, Etezile sorriu para sua hóspede. Esta percebeu que aquela passava sua mão direita pelo seu corpo de forma pecaminosa. Levantou-se um pouco e ficou em quadrúpede. Sua roupa de látex tinha um zíper que estava aberto e percorria o caminho desde as suas nádegas até sua virilha. Era possível ver muitos detalhes.
Em questão de poucos minutos, o imperador descia as escadas e vestia uma roupa similar. Estava comicamente pervertido. Sua barriga saliente, suas nádegas desproporcionais. Vestia também uma mascara feita do mesmo produto que a roupa. Tinha perfurações apenas na região dos olhos, da boca e claro, na cintura. Ele aproximou-se de sua esposa que continuava na mesma posição que ficou para detalhar à Maria. Etezile teve seus cabelos puxados e teve também colocada uma mascara igual ao do marido. A única diferença entre as mascaras era que a dela possuía um instrumento que forçava a boca ficar aberta o tempo todo. Eram agora dois bonecos.
Mais uma brincadeira adulta tomou conta daquele espaço. Ele jogou no rosto dela a sua salvação e antes que ela jogasse a dela na boca dele, pegou uma pequena faca escondida sob o lençol e foi até Maria. Ele sempre atrás dela, sem tirar seus dedos do corpo da esposa. Maria teve sua camisa rasgada e o mamilo do seio esquerdo foi cortado. Quanto mais ela gritava de dor, a rainha gemia mais alto enquanto o marido usava sua língua. O choro e os gritos de Maria juntaram-se ao pavor causado pelo sangue que escorria pelo seu corpo. Etezile não aquentou muito e depositou no rosto de seu marido a salvação e na eternidade daqueles segundos, as forças de suas pernas foram-se junta à salvação antes jorrada. Sentou-se no colo de Maria. Ao retornar dos segundos eternos, retirou a máscara, estava muito molhada, já que momentos antes, babou muito devido às brincadeiras com seu marido. Passou suas mãos sobre o rosto de Maria que ainda chorava e parecia estar muito cansada. Beijou sua testa em um gesto solene e cochichou:
_ Não tema criança, você não está sozinha. A solução para suas aflições será provida!
Mais uma vez, Maria se rendeu ao choro.
_ Shiii... Calma meu anjo. Nós te amamos – e com o dedo indicador esquerdo levantado para o alto, continuou – e Ele também.
Neste instante, Maria simplesmente desabou sobre suas forças, lembranças, coragens e o amor que talvez tivesse por si mesma. Nada mais seria como antes, nada mais seria paz e sereno. Seu peito doeu muito, tanto que achou que teria um ataque. Um frio encheu seu estômago, suas vísceras queimaram e junto a elas um vazio subiu a sua garganta. Suas mandíbulas travaram-se e sua mente inundou-se nos mais pretos vermelhos cinzas pensamentos que já teve. Com a cabeça ainda baixa, virou apenas os olhos em direção aos de Etezile que se assustou um pouco e ao mesmo tempo sentiu prazer em ver aquele olhar odioso.
_ Ela está quase pronta...
_ Eu já estou... – disse Salis baixando-se e novamente passando os dedos em sua esposa.
Num movimento robótico, Maria abriu suas pernas, mas continuou de cabeça baixa. Salis entendeu como um convite e foi sua esposa que tirou a calça da hóspede. Etezile tinha um sorriso no rosto e Salis mordia os lábios observando o corpo de sua esposa e, agora, o da convidada. Maria ficou de pernas flexionadas e abertas enquanto Salis deitou de barriga para cima. Sua esposa ficou de cuidar dele enquanto ele cuidava de Maria. Três gemidos e o do meio sempre abafado, Maria retorcia-se, seu cabelos caídos ondulavam-se sobre seu rosto e Etezile parecia pular. Desta vez, Salis sentiu a salvação de Maria e trocou, mais uma vez, sua salvação com a da esposa.
Depois de terminado, Maria recebeu um forte tabefe de Etezile cuja boca pronunciava adjetivos relacionados a valores morais. Foi ele quem vestiu Maria novamente.
Salis e Etezile já estavam quase trocados quando a filha mais nova desceu correndo pela escada. Usava um uniforme escolar: camiseta branca de manga curta onde havia uma listra azul escuro e detalhes vermelhos, uma calça moletom também azul escuro com detalhes vermelhos e um tênis branco. Desceu a escada perguntando pelo pai e pela mãe. Encontrou-os quando ele ainda levantava sua calça e ela terminava de vestir uma pequena camiseta regata cor de rosa.
Curiosa a menina perguntou o que estavam fazendo.
_ Estamos libertando uma alma minha querida.
_ Ah bom. Por que não me esperaram, eu gostaria de ver.
Pai e mãe entreolharam-se e riram.
_ Há coisas que são melhores quando não vemos. – Disse o pai.
_ Mas o satanás ainda ronda ela?
_ Talvez querida, agora é hora de comer. Vamos, vou preparar um lanche bem gostoso para você. Cadê seus irmãos?
_ Gil foi pro quarto e Samanta foi ver se a senhora estava na cozinha.
_ Eu também quero esse lanchinho, amor. Estou com uma fome. – Disse Salis num tom muito amigável, pacífico e um pouco irônico.
Cristina deu outra olhada para Maria e questionou por que ela estaria suja. Por que o peito dela sangrava. Seu pai disse que para trazer o bem às pessoas é preciso fazer certos sacrifícios e que é preciso saber aceitá-los para que possam sempre estar perto de Deus. E ficaram de dar banho a ela mais tarde, depois do lanche.
Ao ver as roupas de látex e o lençol branco nas mãos de sua mãe, a garota mais uma vez questionou o porquê daquelas roupas e de quem eram. Seu pai respondeu:
_ Muitas perguntas em garotinha... Sabia que quem pergunta demais acaba expulso do paraíso?
_ Sério? Mas por quê?
_ Ora, mais uma vez outra pergunta... É melhor irmos porque estou morto de fome.
_ Por que as luzes ficam desligadas? Ela não tem medo de ficar no escuro, mamãe?
_ Minha adorada, esqueceu o que seu pai acabou de te dizer?
_ O quê?
_ Sobre quem faz muitas perguntas... Só saiba que quem tem fé não tem porque ter medo.
Antes que tudo ficasse em pleno escuro e subissem as escadas, Maria observava Cristina que, pela última vez, a olhou e exibiu com um pequeno sorriso, desses que não sabemos o que tem por de trás. Maria teve a sensação de que não podia confiar nela e aquele sorriso deu lugar a uma expressão forte de pedra e raiva.

V

No caminho para a cozinha, encontraram Samanta que chegava para ver o que faziam e sobre o que conversavam. Riam todos e o imperador mostrava amor pela sua rainha com beijos na bochecha e abraços discretos. Um lar de amor e paz. Uma família de respeito e de santificações. Um homem, uma mulher e amor resultam em família.
Para o lanche, foi feito café e chá. Etezile esquentou também um pouco de leite em uma caneca de alumínio muito bem areada. Sobre a pia de mármore estava o bule, subia o vapor do coador de pano. O cheiro de café fresco tomava conta do espaço. Para comer, tinha pão de forma branquinho e muito macio. Quase se podia dizer que ele estava úmido, mas não de modo que prejudicava o seu paladar, era justamente o oposto. Havia também biscoitos de maisena e pão de sal amanhecido que ficavam, no entanto, ótimos com manteiga e rapidamente aquecidos no micro-ondas.
Samanta abriu a geladeira e dela retirou o pote de manteiga e o colocou sobre a mesa que, segundo antes, Christina forrou com uma toalha de mesa cheia de detalhes quadriculados no tom vermelho, laranja, amarelo e branco. Gil chegou rindo e dizendo que foi chamado pelo cheiro bom do café recém passado. Samanta ainda colocou sobre a mesa, um pequeno pires com açúcar, copos e mais uma vez, abriu a geladeira e retirou dela, fatias de queijo embrulhadas em plástico e papel branco.
Salis ligou o aparelho televiso e o DVD. Não havia áudio. E talvez fosse melhor mesmo que não houvesse naquele momento. Estavam todos sentados em volta da mesa e comiam enquanto na tela do televisor eram exibidas cenas pornográficas de uma loira e três rapazes malhados. Tal fato não causava nenhum tipo de constrangimento a nenhum integrando daquela adorada e honrada família.
Já era quase três da tarde quando resolveram dar um banho em Maria. Desceram o imperador e a rainha. Encontraram a oriunda desacordada e muito pálida. Etezile colocou sua mão direita sobre a testa de Maria e percebeu que estava com febre.
_ Talvez seja por causa do ferimento.
_ É, talvez... Precisamos cuidar disso. Tadinha dela...
Maria foi acordada e se assustou quando abriu os olhos e viu aqueles dois seres em sua frente. Provavelmente, naquele momento, as suas faces eram verdadeiros monstros para ela. Já não podemos deduzir se quando dormia chegava a sonhar com o sol ou se o escuro daquela alcova já havia apagado a lembrança do arrepio causado pelo calor dos raios solares.
Levantaram-na e com as pernas e as mãos amarradas, Maria foi colocada em pé, quase pendurada por um enorme prego na parede que foi percebido pela hospede somente naquele instante. Tiraram suas roupas e agora ela parecia tremer mais. Talvez tremesse de frio ou por não saber ao certo que tomaria banho. Água fria da mangueira. Havia sabonete e Etezile trouxe um pote de xampu. Tanto Salis quanto sua esposa passavam as mãos no corpo de Maria, faziam de forma rude e direta como quem esfrega, até de forma mais delicada como quem acaricia. Maria sabia que estava sendo acariciada, afinal, todos nós sabemos ou sentimos que há algo a mais no toque de alguém.
No momento que Salis retirava Maria do prego e a colocava no chão, suas duas filhas chegaram dizendo que havia visitas. Eram visitas muito próximas de Salis e Etezile, já que atuavam na mesma área. As meninas viram o corpo nu de Maria, mas não demonstraram qualquer reação. A elas foi pedido que ficassem lá embaixo e que cuidassem de secar aquela moça. Foi ordenado também por Etezile que depois de seca, fizessem nela um curativo.
Não demorou mais que dez minutos, Gil chegou chamando pela Samanta. Esta respondeu que estava ocupada e que havia visitas na casa e era preciso tomar muito cuidado. Após ele descer as escadas e ver as partes do corpo de Maria à mostra, Samanta, sua irmã adotiva, percebeu nos olhos do irmão a tentação. Estavam as duas agachadas e após ver as reações do irmão, a mais velha levantou-se e abraçou Gil por trás passando a mão esquerda em sua virilha. Ria e dizia qualquer coisa. Ele riu e também passou os dedos no corpo da irmã. Cochicharam-se e foram juntos para parte superior da casa.
Não sei dizer, caro leitor, o que passou pela cabeça da menina menor. Não puder notar nenhuma manifestação dela em relação aos seus irmãos adotivos. O que posso dizer é que ela apenas os olhou e no momento em que eles começaram a subir as escadas, depois se virou para Maria presa pelas mãos e pernas e terminou de fazer o curativo.
Talvez por um descuido, Cristina desamarrou as pernas de Maria para que pudesse colocar sua calça. Esta parecia uma fera pronta para o bote, muito provavelmente estava apenas esperando o momento certo e seu raciocínio estava atento a qualquer movimento descuidado da garota. Com as duas pernas deu um forte empurrão em Cristina que como boneca de pano foi jogada a certa distância. A garotinha ainda deslizou um pouco com as costas no chão no azulejo. De fato foi uma pancada forte e dera com a cabeça no chão, e talvez essa força da pancada tenha assustado-a um pouco, porque logo depois de perceber que havia sido arremessada, começou a chorar. De início chorou apenas, mas segundo depois começou a berrar e não se levantou.
Tudo aconteceu muito rápido. Nos momentos em que é preciso fazer algo que envolve muita adrenalina, geralmente, os fatos acontecem em segundos, mas que depois de narrados fazem o leitor/ouvinte ter a impressão de levados vários minutos.
Maria já estava em pé e realmente parecia uma fera descontrolada. Queria loucamente sair daquele lugar. Foi impreterivelmente em direção da garota que começava a levantar-se com a boca aberta e em prantos. Chutou seu rosto como se esquecesse de que estava lutando com uma criança ou o que parecia ser uma; quebrou o nariz. Cristina ficou caída no chão aos gritos, chorava e seu nariz começara a sangrar, seu choro era abafado pelas próprias mãos sujas de sangue.

VI
Maria, de algum modo, conseguiu soltar também suas mãos. A vontade de fugir e adrenalina inundaram seu ser que não percebera que ainda estava nua. Já no topo da escada, encontrou a porta entre aberta já que a deixaram aberta pelo fato de Cristina ter continuado lá embaixo. Cuidou em olhar se sua fuga, naquele momento, não a denunciasse.
Saiu... Do seu lado esquerdo vinham risos e dizeres altos, estavam o donos da casa e as visitas na sala, que ficava ao lado oposto da cozinha. Em sua direção, Maria viu que um homem alto e magro de costas, vestido de um terno marrom, parecia segurar um copo e levava-o à boca. Ele soltou um riso alto, o que a assustou. Ela também deu as costas para o homem e seguiu para a cozinha. Maria não sabia para onde estava indo, mas sempre em momentos de perigo, o nosso instinto parece dizer mais alto.
Tentava andar o mais rápido e silenciosamente possível, sempre de olho aos redores como um rato dentro de casa a procura de comida. Encontrou Etezile, sua cunhada e uma amiga muito próxima, amiga da igreja. Todas se assustaram... Etezile paralisou-se em frente à pia com um copo em mãos, sua cunhada olhava para cada uma das mulheres como quem procura respostas ou o primeiro movimento para então se movimentar também.
A amiga foi logo em direção de Maria com os braços atirados para frente, carregava uma expressão de pena e com uma voz doce, dessas que usam para dirigirem-se às crianças, questionou o que estava acontecendo e se estava bem. Não houve tempo para que ela pudesse chegar perto de Maria. Foi empurrada bruscamente.
_ Socorro! Socorro! – Gritou Etezile.
Os homens, na sala, correram em direção à cozinha. Eram quatro no total.
A mulher empurrada levantava-se com dificuldade quando Maria, desesperada, tentava passar por Etezile e sua cunhada. A faca que estava no escorredor ajudou no momento de fuga. Os homens quase pegaram Maria, mas já estava do lado de fora da casa e logo atrás iam gritando: a rainha do castelo e a irmã do imperador. Esta com um corte na mão e aquela com uma pequena perfuração no ombro.
Maria não sabia onde estava, mas de certo não estava em uma rua qualquer. Olhou ao redor e viu casas de auto padrão. A rua cujo asfalto parecia novo, ardia sob a luz do sol.
Na cozinha ainda, a mulher, que fora derrubada, ligou para os seguranças da portaria e informou que havia uma jovem nua, descontrolada e armada correndo pelo condomínio. Na escada de frente para a sala, desciam apressados Gil e Samanta. Pareciam estar arrumando as roupas como se tivessem tirado-as minutos antes. Deram de encontro com Cristina que subia do porão com as mãos na boca, chorava muito ainda e estava ensangüentada; não quebrara apenas o nariz, alguns dentes também.
Não demorou muito para que o carro da escolta apanhasse a fugitiva. Naquela altura dos acontecimentos, não havia mais jeito a não ser que a polícia resolvesse o caso.
Colocaram um vestido todo florido em Maria e a levaram para a delegacia. Os seguranças contaram ao delegado que receberam uma ligação de uma das moradoras sobre aquela mulher maluca. Antes que os moradores e seus amigos dessem seus depoimentos, Maria foi a primeira a ser questionada pelas autoridades. Ela disse que já estava presa, em cárcere privado, há alguns dias, talvez semanas, e que fora, todos os dias, abusada, molestada e agredida. Contou com detalhes a respeito daquela família.
No terceiro dia, todos os envolvidos no caso foram chamados para dar os depoimentos. O primeiro foi Salis:
_ Delegado, essa mulher é doida, invadiu a minha casa, machucou minha filha caçula adotiva por quem tenho tanto amor, machucou minha esposa com uma faca e ainda agrediu minhas visitas. Eu não faço ideia como ela entrou na minha casa e nem porque estava nua. Provavelmente é uma pervertida depravada.
No quinto dia, todos já haviam dado os depoimentos e todos os agredidos fizeram exame corpo de delito. Como Salis é um homem conhecido por protagonizar ensinamentos religiosos em TVs abertas, anúncios publicitários entre outros, o caso tornou-se público e a população teve acesso à história contada pela mídia. Cristina chegou a falar com o delegado e também afirmou nunca ter visto Maria antes; ninguém duvidaria de uma criança.
Opiniões dividiam-se e a cada testemunho, parecia mais absurda a versão de Maria. Pessoas nas ruas discutiam entre si quem estava falando a verdade, mas sempre a verdade, vista pelos os outros, caiam sobre a face de Salis. Como poderia um homem como ele fazer tamanho absurdo? Abusar com a esposa de uma mulher e ainda usar seus filhos adotivos? Entre eles uma educada menina de sete anos?
A perturbação varia de acordo com cada pessoa. Não é condenável salientar que Maria pudesse estar um pouco desorientada devido ao que viveu. No entanto, como não sabiam ou não viam até onde ia a linha da verdade dela, o resultado do seu exame psicológico ajudou-a, o menos pior que poderia acontecer, a não ser presa em uma prisão qualquer. Os profissionais responsáveis pela identificação mental de Maria não conseguiam ligar sexo, látex, porco, estupro animal, criança, demônio, peito, faca, escuridão, ração de cachorro, restos de comida, presa, porão entre outras coisas.
Depois de descobrir-se louca, Maria agora se perturbava questionando se a linha do seu imaginário foi ultrapassada ou se o inferno existe mesmo.
No sétimo dia, Maria foi condenada por atentado violento ao pudor, difamação, agressão física, tentativa de homicídio, falso testemunho e agressão a menor de idade. A população sentia-se agora mais certa do que dizer. Com todas as informações passadas, tanto pela mídia quanto pelo próprio imperador, acreditavam que tudo não passava de uma história criada pela imaginação perturbada de Maria, mas que sua loucura não podia servir de desculpa para não pagar o que devia.
Como tentativa de encerrar o assunto ou fazer com que as pessoas não quisessem mais tirar suas dúvidas, Salis usou a mídia para acalmar as especulações:
_ Caros irmãos e irmãs, nestes tempos de provação, é preciso estar atentos ao demônio porque ele ronda nossos lares. Não se esqueçam de que o diabo é astuto e ele usará várias formas para nos corromper, ele pode usar a imagem de uma criança, de um senhor de idade, de uma louca. A peste anda sobre a Terra e ela até tentará, em sua audácia, confundir-vos dizendo que o demônio veio em forma do Bem.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 28/10/2011.
Código do Texto: T3302942



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16 julho 2011

Lucas da Aldeia e Barbara do Mistério

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LUCAS DA ALDEIA E BARBARA DO MISTÉRIO


Era uma vez, em uma aldeia muito distante ao pé de uma linda e gigantesca colina, vestida de uma vegetação verde e árvores com flores de um tom laranja e rosas que enfeitavam algumas copas de algumas árvores onde um garoto teve sua mente aprisionada pelos adultos que tentavam protegê-lo.
Ninguém sabe dizer qual era o seu nome, mas correm das bocas para as bocas que era Lucas. Poucos sabem também o que sucedeu a esse garoto que, ainda muito jovem, precisou travar uma batalha para libertar sua mente.
Da colina, descia um riacho de águas cristalinas que correriam por entre as pequenas, médias e grandes pedras amarronzadas. Era gelada e pura. Às margens do riacho, crescia uma espécie de capim muito delicado que não se pode mais encontrar hoje. Era de um verde escuro próximo ao solo, mas de um verde claro e vivo em suas extremidades. Quando o sol reluzia sobre as extremidades do capim, as águas do riacho vestiam-se de um verde jamais visto pelos homens que hoje andam sobre a terra. Do centro do tufo de capim, do seu coração, crescia uma linda flor que desabrochava sobre um médio caule aveludado e de um tom azulado misturado ao roxo. Uma flor absurdamente linda de um tom amarelo vermelho alaranjado se abria para o céu. Todos a chamariam de filha do sol.
Certo dia, sem se dar conta das belezas que o rodeavam, assim como era de costume de todos naquela aldeia, Lucas foi até o riacho pegar água para beber e voltou para sua barraca muito parecida com as casas de pau a pique. No caminho até o riacho, três belíssimas borboletas sobrevoaram próximas dele e pousaram-se sobre uma grande folha de samambaia como se estivessem a observá-lo. De volta para a barraca, havia dois beija-flores pequenos, um deles parecia ter as penas da cor cinza, mas com os movimentos podiam-se ver as cores vivas do azul, verde e roxo. O outro tinha as cores laranja, verde e rosa. Sobrevoaram a cumbuca onde ele trazia água cristalina que refletia a luz do sol e o azul escuro do céu. Os beija-flores sobrevoaram por alguns segundos e pareciam conversar entre eles, e logo voaram para onde ninguém mais pudesse vê-los.
No horizonte, o céu trazia lentamente uma grande nuvem branca e a brisa fria parecia querer trazer alguma novidade que passava por entre as pessoas e as casas sem que a notícia fosse percebia. O sol brilhava intensamente, mas ninguém o via. As borboletas, milagrosamente, saiam de seus casulos e eram como insetos. Os beija-flores eram como qualquer coisa que voava.
Lucas teve conhecimento de que muito antes dele nascer, houve outro menino que percebeu as coisas ao seu arredor e ficou louco. Dizia a todos que os beija-flores eram coloridos e que realmente beijavam as flores, que as borboletas eram absurdamente delicadas e que as nuvens podiam tomar formas de animais ou até de pessoas. As outras crianças da aldeia começaram a olhar para o céu em busca de um cachorro, um cavalo ou uma flor. As meninas de treze anos, recém casadas, já não eram nem mais adolescentes e também passaram a tentar ver as cores dos beija-flores.
Uma loucura contagiosa, uma doença maligna que açoitava a aldeia, uma peste pronta a engolir tudo e todos. Uma maldição mandada como forma de castigo àqueles que enlouquecessem. Foi assim que os mais velhos da aldeia viram tal fenômeno e o menino teve que ser morto para servir de exemplo a todos. Sua cabeça fora cortada e colocada em um mastro próximo ao riacho e seu corpo enterrado em um campo a seis dias de distância da aldeia.
Lucas tinha medo de pegar a praga, no entanto, certo dia, uma linda garota chegou à aldeia sobre um jumento. Não trazia nada além das roupas que vestia e parecia estar sedenta, faminta e fraca. Seus cabelos eram lisos de um castanho claro, seus olhos eram castanho escuro e tinha alguns arranhões no rosto. Sua beleza inocente encheu o interior daquele garoto que, assustado, tentava não olhar para aquela criatura tão vulnerável.
Deram-na o de comer e o de beber. Ofereceram-na um canto coberto de folhas para dormir.
Na mesma noite, a velha anciã da aldeia, uma velha muito sábia corcunda de pele muito enrugada mandou chamar aquele garoto que aprendeu a obedecer aos mais velhos e respeitar as suas decisões. Aquela senhora, sozinha com o garoto, contou o que acontecera naquele dia. Confessou a ele o que ele guardava para confessar e o confortou com palavras mansas e leves, ditas num tom cansado e meio rouco. Disse que o dia seguinte não seria fácil e que as estrelas diziam muito sobre o que estava prestes a acontecer. Alertou sobre possíveis perigos e que as escolhas seriam necessárias e que para cada uma, um perigo estaria no caminho.
Ao sair da cabana da velha sábia, ele olhou para o alto e pela primeira vez observou o céu grafite e várias estrelas brilhando. Parou ao lado de uma árvore muito parecida com as palmeiras e ficou a contemplar os pingos de luz que pareciam borbulhar. Levantou a mão direita como quem tenta apanhar uma estrela e seu rosto demonstrou uma pequena decepção ao descobrir que elas estavam muito mais altas do que ele imaginara. Até imaginou que aqueles pontos brilhosos eram na verdade pequenos furos em uma capa de couro usada pelos Deuses para tampar o sol e trazer a noite.
De repente, assustou-se quando um pequenino brilho mexeu-se. Ficou mais assustado quando aquele brilho meio esverdeado aproximou-se dele. Nunca tivera visto um vaga-lume e achou que seu pedido tornara-se realidade. Ficou muito intrigado ao perceber que o ponto de luz possuía pernas e isso causou certa gastura quando o inseto pousou sobre seu braço. Perguntou-se se todas as estrelas eram bichinhos com pernas.
Olhou para trás e viu a velha senhora observando-o. Ela tinha um sutil sorriso e no cruzamento de brilhos dos dois olhares, ela abaixou sua cabeça e com o braço esquerdo, lentamente, fechou a entrada da cabana com uma espécie de cortina de couro.
Já deitado, Lucas de barriga para cima, não conseguia deixar de pensar no rosto daquela linda garota. Nunca sentira nada igual em toda a sua vida. Nunca sentira o que era aquele ânimo e medo ao mesmo tempo e nem provavelmente sabia que estava sentindo alegria e medo sincronizadamente. Sua vontade era de ficar por horas a fio observando aquele rosto angelical e paradoxalmente lutava para se manter longe daquela criatura que mexeu tanto com ele. Por fim, adormeceu.
No dia seguinte, acordou com gritos. Abriu os olhos, olhou para os lados e correu para fora. Mulheres gritavam e atiravam pedras contra aquela linda garota que chorava e tentava desprender-se dos braços de dois homens. Abria a boca, mas não emitia qualquer grito. Lucas correu para perto das pessoas e perguntou por que ela estava sendo castigada.
_ Ela não fala e nem ouve! – Berrou uma senhora gorda de vestido rosado e um lenço verde em volta da cabeça.
Amarraram-na a um cipó. Trouxeram um longo chicote. Os grandes líderes da aldeia, três homens e quatro mulheres muito velhos, observavam tudo, com exceção da anciã que conversara com o garoto na noite anterior. Ela permanecia sempre de cabeça baixa e mirava apenas o chão.
Aquela garota deveria ter mais ou menos a mesma idade de Lucas, e disso ele tinha noção. Sentiu um vazio na boca do estomago, suas pernas tremiam e sua visão ficou um pouco tonta. Uma sensação de vulnerabilidade tomou conto do seu corpo e um sentimento de ódio por isso inundou sua mente que se afogava em pena, súplica, medo, coragem, solidão, esperança, desânimo, um cavalo, fuga, os campos, as estrelas, o vaga-lume, a anciã entre outras coisas.
Se aquela garota fosse mais nova, atirá-la-iam de um penhasco, mas como já era quase uma adolescente, decidiram queimá-la. Provavelmente fora abandonada ou chegou à aldeia fugida.
Sabe Deus por que algumas coisas são da forma que são e por que acontecem da forma que acontecem. Aos braços do mistério entregamo-nos todos sem que possamos fazer qualquer coisa que realmente funcione e responda nossas indagações. Ao espaço sideral mandamos nossas mentes que nós mesmos não temos controle e nem conhecimento do seu total poder. Todos nós guardamos um universo fantástico e misteriosamente infinito dentro do que chamamos de crânio.
Lucas tinha uma enorme dificuldade para tomar decisões e o fato de sua mente estar lutando para se libertar dificultava ainda mais a tarefa. A imagem sofrível daquela garota presa sob a luz do sol e o úmido ar do sereno não saia de sua cabeça. Sabia que podia fazer algo e que precisava. Não o se perdoaria se deixasse os acontecimentos seguirem os caminhos iniciais e temia pela própria vida – não queria sua cabeça sobre o mastro.
Barbara, esse era o nome da doce garota. O dia já chegava ao seu fim e o sol já estava se pondo e a cede tomara conta de todo o seu corpo. Estava cansada e a fome também fazia companhia. Cabisbaixa, uma leve brisa passou pelo seu rosto elevando um pouco as pontas do seu cabelo. Olhou para sua esquerda e viu um tufo de capim banhado pela luz da lua. Parecia que brilhava um verde claro das pontas do capim e do centro, sobre o caule, estava o que parecia um casulo grande de cor azulada.
Barbara não conseguia parar de olhar e talvez, a flor soubesse disso. A única flor das margens, a única que não estava dormindo desabrochou lentamente mostrando o seu sol interior. Aqueceu por alguns instantes as esperanças de Barbara que nunca tivera visto algo parecido. Ergueu seus olhos e começou a contemplar as estrelas e a grande lua pálida. Uma pedra passou muito próxima da sua cabeça e assustada ela percebeu que não estava sozinha.
_ Deixa ela em paz! – Soou um pouco trêmulo e abafado, mesmo demonstrando muita convicção.
_ Como é que é? – Questionou um homem calvo com uma vestimenta de couro que servia de proteção às pernas e braços.
Lucas permaneceu calado e ao perceber que estava amedrontado o homem continuou.
_ Eu sabia que tinha algo de errado com você! Você trouxe a praga de volta às nossas casas. Besta!
A agressividade assustou Lucas, mas também o deu uma sensação de raiva e essa raiva trouxe coragem. Os gritos de ambos chamaram atenção de todos na aldeia.
Barbara foi desamarrada e junto a Lucas correram entre as cabanas enquanto todos, muito curiosos, faziam um paredão de pessoas lado a lado e gritavam peste!... peste!... peste!... As tochas ardiam uma luz avermelhada, o chão de barro poeirou com os passos apressados dos dois, agora fugitivos.
Romanticamente havia um cavalo logo à frente. Estava selado e pronto para ser montado. De sua direção vinha a velha anciã. Tentava esconder a mão ensangüentada. Cortara-se no momento em que preparava o cavalo. Lucas entendeu o que acontecia naquele momento, apesar de sua pressa e medo serem maior e parecer dominar toda sanidade. Ficou feliz, mas segundos depois, uma tristeza preocupou sua humanidade. Sabia que aquela senhora seria condenada por traição e que provavelmente seria morta como exemplo.
Barbara foi empurrada para cima do animal e ficou desajeitada assim como Lucas também ficou, uma vez que nenhum deles sabia montar. Os calcanhares bateram na barriga do animal que parecia saber o que deveria fazer. O galope foi aumentando e o vento da noite batia sobre o rosto do garoto e correia por entre os cabelos de Barbara. O vento ajudava a secar as lágrimas daquela criatura inaudível e seu rosto tinha as linhas percorridas pelas gotas de lágrimas.
Já longe da aldeia, quando o cavalo demonstrou cansaço e quando Lucas já começara a sentir culpa pelo o que fez, o cavalo parou para comer a pouca vegetação que estava a sua disposição. Não havia riacho e nem sinal de água. Estavam todos cansados, com sede, com fome e com medo. A diferença entre ela e ele era que ela estava dolorida e espancada.
Sem explicação alguma, ele sentia um enorme carinho por ela. Não sabia exatamente o que sentia, mas quando ela parava em sua frente e mesmo ela com o rosto manchado pelas lagrimas e alguns vermelhidões, achava-a linda. Nunca sentira nada por qualquer garota da aldeia. Sentia agora uma estranha satisfação, uma estranha alegria, mesmo naquela situação conturbada.
Amarrou o cavalo a uma grande pedra e deitaram no chão. Ela sempre se mantinha um pouco distante dele. Pela sua expressão, dava-se para perceber que ela não entendia muito bem o que acontecia, entendia com clareza que queriam fazê-la mal.
Lucas, em seu pedacinho de terra, observava Barbara de rosto dado para as estrelas. Ficou intrigado e também se entregou aos céus. Contemplaram a presença, a mágica presença da lua e das estrelas. Algumas libélulas e vaga-lumes sobrevoavam o trio, seriam talvez guardiões ou mensageiros? Adormeceram.
No horizonte, o céu já denunciava a chegada do sol devido à cor rosada e esbranquiçada. Lucas acordou assustado com pisadas de cavalos. Eram sete e o cavaleiro que guiava o animal, onde vinha junto um dos anciãos, desceu do cavalo e com um leve chute nas pernas, acordou Bárbara. Estavam todos assustados. Lucas tentou se soltar e gritava para sua amada correr, mas ela não conseguia entender, apenas sabia que estava para morrer.
_ Não!!! Ela não! Por favor! Matem-me, mas deixe-a ir... Deixe-a com sua pouca sorte!
_ Cala a boca demônio! Tu pagarás de qualquer forma. – Gritou um dos homens puxando-o pelo cabelo.
Barbara chorava por ver Lucas chorando que por sua vez, chorava por ver o destino de Barbara. E mais uma vez, Lucas suplicou:
_ Por favor Senhor Aliel! Deixe-a ir. Faça todo o ritual, o sacrifício que for necessário, mas deixe-a ir!!! – Neste momento começou a cantarolar uma cantiga. Sua voz tremula misturada ao choro dava à cantiga uma sonoridade triste, tão triste que poucos homens hoje seriam indiferentes.
Por fim, o senhor ancião deixou que Barbara fosse embora. Fizeram gesto com os braços para explicá-la que teria que ir. Ela correu... correu o máximo que podia e seus olhos enchiam-se de lágrima. Sua visão embaçava-se pela tristeza. Chegou a cair, mas levantou-se e continuou a correr até que não agüentou mais. Parou, olhou para trás e não pode ver ninguém – já estava muito longe. Olhou para frente e não viu casa nenhuma, nada, apenas um grande campo verde amarronzado, com poucas baixar árvores e alguns tufos de mato.
Lucas foi punido com a morte. Sofreu muito para limpar a aldeia do pecado e da maldição. Seus olhos foram arrancados, seus tímpanos furados, sua língua cortada e sua boca costurada. Em seu peito cravaram uma estaca de ferro. Levaram seu corpo para um campo distante da aldeia, não foram muito longe quando várias borboletas brancas e laranjas pousaram sobre o seu corpo, cobrindo-o por completo. O susto e medo fizeram os homens abandoná-lo pelo caminho.
Ninguém mais naquela aldeia teve notícias de Bárbara, mas fato é que ela continuou a fugir em sua caminhada até onde e quando Deus permitiu.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 16/07/2011
Código do texto: T3099016

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