06 janeiro 2011

O Casebre Abandonado Atrás do Parque Ecológico

"Fotos de um casebre abandonado" por Pedrooo



“Tento rir de tudo e esconder as lágrimas porque
garotos não choram.”
– The Cure.



PROÊMIO
Caro leitor, a história que se realiza por meios de palavras nos próximos pedaços de papel, inexplicavelmente, brotou, há quinze dias, em minhas idéias, atrapalhando-me na escritura de outro conto de fantasias. E você deve estar perguntando-se que tipo de conto carece proêmio.
Tentei no que pude abortar esse meu filho. Digo filho porque essa é uma expressão usada por um poeta amigo meu. Segundo ele, todo texto que escrevemos, na verdade, é um filho nosso porque os parimos e alguns são – no termo figurativo da palavra – dolorosos.
A idéia desse conto não me deixou por um só instante e não consegui dar leveza à situação que se sucedeu e nem consegui transcrever fielmente as falas das personagens. Confesso que tenho grande dificuldade com os discursos diretos e as transcrições.
Quero primeiro descartar e que descartem qualquer semelhança com pessoas de histórias reais. Não tenho e nunca tive a pretensão de tornar alguns seres do nosso dia-a-dia em personagens de contos, seria muita babaquice minha fermentar seus (deles) egos. E afirmo que esse proêmio não tem característica de justificar coisa alguma, acredito que nenhum conto ou poema careça de uma justificativa.
E para não deixar esse prólogo mais inútil do que já está – se isso for possível fazer – quero avisar que qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.
Samir S. Souza.
12/12/10

1

Se arrancassem seus olhos e os pendurassem no teto, viriam agora um grupo de seis jovens, quatro rapazes: dezesseis, dezoito, vinte e quatro, vinte e sete anos e duas moças ambas de vinte e seis.
O criador do espetáculo, assim como costumava chamar, em seus pensamentos, aquela situação que apenas acabara de começar, era Renato, um belo rapaz, magro, estatura média, branco, cabelos negros e encaracolados, olhos castanhos claros de aproximadamente vinte e dois anos.
Renato sabia que não era mais o garoto que costumava ser e, sabia também, que o deixara para trás há algum tempo, no entanto, não sabia exatamente o que se tornara. Seus amigos o viam como um indivíduo espetacularmente singular e tinham sua imagem assemelhada a um provável futuro ganhador Nobel da paz.
Ouvimos de vez em vez que os opostos se atraem e que há pessoas que são simplesmente boas e outras más e que o amor pode, em segundos, tornar-se ódio. É bem provável também que o homem tem a capacidade de ir aos extremos em segundos e que talvez, apenas a força divina possa controlá-lo. Acredito que uma pessoa boa não é apenas uma pessoa boa, da mesma forma que a parte frontal do meu corpo não é igual à parte traseira. Uma pessoa extremamente boa guarda em seu abismo interior a mesma pessoa extremamente má na mesma proporção de sua bondade e vice e versa. Renato tinha em seus olhos uma divindade que não raramente assustava. Aquele castanho claro apaixonante era, por vezes, tão maldoso na sua beleza.
Renato sempre teve pessoas, ao seu redor, que duvidavam da sua masculinidade, sempre teve pessoas que o nomeavam animalescamente, mas nunca deu muita importância para o que achavam, apesar de tentar esconder suas feridas que pareciam ser incicatrizáveis. Sempre haveria alguém disposto a não deixá-las secarem.
Os fatos que ainda ocorrerão de forma, talvez cruéis e muito bem calculados, tiveram seu início há quatro meses. Na verdade o início ocorreu há muito tempo. Já muito tarde, nas proximidades de uma agitada e rica avenida, andavam com alguns amigos Renato e seu irmão Gustavo quando um grupo de aproximadamente oito pessoas, entre elas duas moças, começaram coletivamente a agredi-los e gritar palavras que os insultavam.
Tal fato mudou o cotidiano de Renato e seu irmão que ainda estava na UTI de qualquer hospital público na companhia de sua mãe que, a essa altura, já se tornara uma morta viva. Seus pais, especialmente seu pai, nutriram um sentimento de raiva e ódio por pessoas que cultivavam a violência gratuita e enxerida. Ele que nunca deu muita importância ao filho pela sua condição sexual, agora estava disposto a enfrentar aquela matéria mais sólida e inquebrável quanto à lava endurecida de um vulcão.
Inês, a mãe de Renato, sempre ouvira do marido que ele se preocupava com o filho e por isso não agradava a idéia do garoto não ser ou fazer exatamente o que queria que fizesse, as coisas que sonhou para seu filho e seus desejos que seu filho poderia tornar reais. À Inês também não agradava a idéia de ter a certeza que no futuro não teria um neto, filho de um de seus filhos, mas tal frustração não a impedia de amá-lo. Renato, no entanto, sabia que seu pai não se preocupava com ele, mas consigo próprio, não estava preocupado com o que poderia acontecer com ele e sim preocupava-se com as coisas maldosas pintadas de brincadeiras que poderia ouvir dos amigos da família, familiares e até dos vizinhos.  Renato teve certeza também, que depois das agressões sofridas, seu pai mudara totalmente a forma de pensar, só não tinha a certeza dos motivos daquelas mudanças.
Dalí, dois dias para frente, seria o que chamam de espetáculo da cidadania, a manifestação do desejo do povo. Renato teve ajuda de seu pai e de alguns amigos e uma amiga. Como a polícia ainda não resolvera o caso ocorrido entre ele e o irmão, decidiram então, por conta própria, por justiça própria, resolver.
As pessoas quando estão realmente decididas a alcançar suas metas e estão tão motivadas a isso, conseguem, em tão pouco tempo, descobrir coisas que parecem ser quase impossíveis. E como um milagre, e claro, com a ajuda de algumas informações concedidas no inquérito pela polícia, Renato e seu pai tornaram-se verdadeiros detetives e incrivelmente criminosos que ficam à espreita, prontos para o ataque no melhor momento.
Com a ajuda da combe branca de seu pai, levaram quase todos em um único dia, ficando assim, apenas dois para o próximo. Ficaram um pouco frustrados por não conseguirem pegar a gangue toda. Levaram-nos para uma casa escondida próximo ao parque ecológico do Tietê de onde seria muito difícil alguém escutar qualquer coisa.
Era uma casa de dois cômodos apenas, paredes de tijolo sem reboque, o chão de terra batida. Um dos cômodos era bastante amplo e parecia que a sua construção fora abandonada às pressas. Tinham as mãos e os pés amarrados, estavam todos apoiados, cada um, em um pequeno tronco de árvore. Apenas os dois jovens que foram levados por último, ainda estavam desacordados, deitados de rosto no barro avermelhado.
Foram colocados com certa distância uns dos outros, e se olhados de cima, suas posições formavam um grande C. Foram colocados dessa forma porque Renato queria que todos se olhassem. Subia uma poeira que dançava no ar e vestia os raios de sol que entravam pela janela que ficava na parede defronte para o grupo acorrentado.
Pedro, o pai de Renato, já havia avisado ao filho que apenas o ajudaria na captura, mas que o resto seria por conta do filho. Não queria ver o que estava para acontecer. Renato sabia que, apenas ele e três amigos, tinham coragem suficiente para prosseguir com aquilo.
Já estavam todos acordados e eram observados por Daniel, um rapaz negro, alto e forte integrante do grupo de Renato. Esse por sua vez, entrou no cômodo e apenas uma das moças o reconheceu. Tinha em seu rosto uma expressão de satisfação e autoridade, cumprimentou o amigo, ambos de modo muito másculos.
 Daniel e Renato tiraram as mordaças daqueles pobres jovens ricos e depois de feito, aquele se retirou do cômodo.
_ Sua bicha, você vai se foder, viado do caralho! – Gritou o mais velho do grupo, Miguel.
Renato riu.
_ Tira agente daqui, por favor! Não temos nada com sua vida... – afirmou uma das moças com um tom de voz amigável, educado e desesperado.
_ Socorro! – Gritou, suplicamente, o macho de dezoito anos.
Junto ao seu grito, começaram todos a gritar por ajuda e tinham em mente que seriam logo ouvidos, já que era de manhã. Enquanto gritavam, Renato pegou, em um gesto simples, um cabo de vassoura que estava encostado na parede a sua trás e apoiando-se a ele, sentou em uma cadeira de plástico que fora colocada de frente para o grupo que parecia naquele momento o público e o artista ou o rei com o cajado e os plebeus.
Ao perceberem que Renato não fazia nada a não ser olhá-los, pararam de gritar enquanto uma das moças começou a chorar e o rapaz de vinte e quatro anos começou a pedir ajuda a Deus. Ficaram olhando aquele rapaz de cabelos encaracolados e olhos castanhos claros e que, naquele momento, pareciam verdes devido à luz do sol que entreva pela janela e iluminava o chão a frente dele e dos pobres indivíduos feitos de reféns.
_ Vocês podem gritar a vontade, ninguém vai ouvi-los. Estamos longe da cidade, e mesmo se ouvissem qualquer coisa, não viriam ver, estamos no meio do mato. – Mexeu as sobrancelhas para cima e para baixo com um malicioso sorriso – E como está de dia e com o barulho do transito, fica mais difícil de ouvirem alguma coisa.
_ Seu viado filho da puta!
_ Bem, não sei se sou filho da puta e se eu for, não tenho preconceito contras putas. – riu.
Entrou Rafaela, a única amiga de Renato que tinha coragem para testemunhar tudo o que se passava e que ainda estava por passar.
_ Seu pai disse que qualquer coisa só avisar. Lá fora, estão o Daniel e o Digão.
_ Beleza, acho que por enquanto não vou precisar de ajuda. E aquele esquema lá fora?
_ O seu pai já deixou tudo pronto. Mas você não vai fazer o que eu acho que vai ne?
_ Não sei o que você acha. – Riu. Mas se for o que eu estou pensando, vou sim. Por quê?
_ Nossa, teria coragem?
_ E por que não?
_ Nossa, quero morrer sua amiga.
Riram ambos, enquanto recebia das mãos dela, uma mochila que aparentava estar pesada.
Depois de alguns minutos e muitas ofensas e gritos, Miguel exclamou várias vezes que pessoas como Renato tinham que morrer e que seu namoradinho era apenas um a menos.
_ Ele é meu irmão! – Retrucou Renato com voz áspera.
As moças se olharam como crianças que acabaram de quebrar o jarro da mãe e, após alguns segundos mudos, Miguel novamente se pronunciou raivosamente.
_ Agente deveria ter matado vocês, deveria ter enfiado uma lâmpada no seu rabo. Deveriam ser arrombados com tacos de beisebol.
Sem dizer palavra alguma, Renato dirigiu-se ao outro cômodo e podiam escutá-lo chamar por Daniel que veio logo em seguida e juntos entraram no cômodo onde estavam todos. Foram naquele momento, amordaçados novamente.
Daniel sentou na cadeira enquanto Renato abria a mochila que estava sobre uma velha pequena e quadrada mesa de madeira no canto esquerdo da parede. Os olhos daqueles seres amordaçados estavam regalados e tinham um brilho digno de admiração. Ele tirou um grande consolo de um marrom muito intenso.
Aquele objeto causou tamanho desespero nos rapazes que, humilhadamente, estavam meio que de joelhos sobre o barro. Tentavam gritar, mas suas amordaças impediam o desespero de sair de suas bocas e abafavam o grito.
Renato estava sério, seus olhos fitaram Miguel que também não tirava os olhos daqueles dois rapazes a sua frente e balançava com cabeça pedindo para que não fizessem o que ele estava certo de que iam fazer.
Com o consolo em mão, Renato dá a volta em torno de todos como se estivesse brincando de lencinho branco. Estavam todos muito assustados. Parou atrás de Miguel que tentava acompanhar Renato com a cabeça. Tinha também os joelhos amarrados e sentiu Renato agachar-se por detrás dele e com a duas mãos amarradas para trás, tentou segurar qualquer parte do corpo daquele terrivelmente ser gay que deixara o consolo sobre o chão e abria o cinto, botão e zíper da calça de Miguel.
Gritavam, ou pelo menos tentavam todos. Miguel já estava de nádegas sem proteção alguma.
_ Olha o pauzinho dele. Agora sei porque você tem tanta raiva de gays. – Riu e depois de uma descoberta, levou o tom de voz ao deboche e continuou: _ E ainda tem fimose, fala sério cara. É tão homem e nem se preocupa com isso. Mostra pra ele Daniel o que é um pau de verdade.
Daniel levantou-se e abriu o zíper, tinha um sorriso no rosto e colocou para fora, estava excitado o que deixou Renato surpreso e criou nele uma sensação de temor. Com o zíper aberto e seu conteúdo saltando para fora, aproximou-se do rosto de Miguel que teve em seu rosto o que ele nunca imaginou que teria e sentiu-o sobre os olhos e sobre o nariz. Fechava os olhos e tentar gritar, balançava muito a cabeça enquanto seus amigos viam tudo inquietos e certos de que o “viado” que eles agrediram não estava brincando.
Depois de gargalhadas e voltar ao seu lugar com o zíper fechado, Daniel sentou-se e ficou a observar calado. Renato acariciava as nádegas de Miguel que tentava insultá-lo e tentava em vão deixar as mãos de Renato longe dele. Sentiu um dedo fazer pressão e logo em seguida, em um ato brusco e violento, sentiu entrar-lhe aquele consolo.
Gritou e começou a chorar. Gritava como quem corta-lhe os dedos e junto aos seus gritos, seus amigos também gritavam, talvez por temerem que aquilo acontecesse a eles também. Sentia dolorosamente aquele objeto entrar e sair e sentiu por volta de três minutos.
Com o consolo em mão, Renato exibia-o como um troféu aos amigos de Miguel e após ficar frente a frente daquele homem que acabara de ter sua virgindade rompida, esfregou, em seu rosto, aquele instrumento ensangüentado. Sua dor deu ao seu rosto uma expressão de cansaço e o cheiro do sangue, misturado à fezes, inquietou o seu estômago.
Camila, uma das moças, observava e tinha em seu rosto a estampa do medo, mas não gritava e tentava, poucas vezes, livrar-se das cordas. Olhou seu amigo apoiar a cabeça no chão, parecia sofrer e parecia também não querer olhar para ninguém, era claro que estava envergonhado.
Renato tinha apenas mais três dias para acabar com tudo aquilo e sabia que cada dia que deixasse ser um novo capítulo, os riscos também aumentavam. Tinha apenas a preocupação de ser pego em flagrante.
Todos viram o desespero de Miguel quando ele viu uma pequena linha de sangue escorrer lentamente por entre as pernas. Em meio a choros e gritos, bradava palavrões e insultos a Renato, tentava ofender de qualquer forma que parecesse ser mais cruel e audível por meio da amordaça. Tentou levantar-se, mas seus joelhos amarrados o impediram.
_ Você quer me dizer algo? – Tirou sua amordaça e com a outra mão puxou seus cabelos erguendo seu queixo.
_ Por que isso? – Miguel questionou com um tom mais amigável.
_ Porque disso? Então você se acha no direito de sair batendo em qualquer um na rua só por suspeitar de serem gays e acha que isso é um direito que te foi atribuído? E mesmo se são gays ou não o que você e seus amigos têm com isso? Algum gay te obrigou a transar com ele? Você acha que corre o risco de transar com alguém do mesmo sexo? – Riu.
Miguel ficou calado apenas observando os olhos devoradores de Renato. Um soco foi dado, e puxado novamente pelos cabelos recebeu outro soco e tal ação repetiu-se quatro vezes. Seu nariz sangrava.
_ Então você acha que um gay não é homem de verdade, certo?
_ Vai se foder... – e percebendo que a despedida com suas esperanças estava próxima, começou a choramingar.
_ Então o que faz um homem ser homem é simplesmente o fato de ele enfiar o pau dele numa boceta? – Largou os cabelos de Miguel e foi em direção as duas moças. Puxe-lhes pelos cabelos e repetiu a mesma pergunta.
Elas ficaram caladas, pareciam tentar chorar, mas o medo não as deixava. Amordaçadas com o rosto voltado para o alto, viram a imagem de um rapaz que julgaram em suas mentes, ser bonito. Sentiram um puxão mais forte e sentiram dor. Foi cobrada a resposta delas, mas ficaram caladas.
_ É, não é a toa que são feitas de trouxas pelos caras. Não é a toa que eles querem apenas foder e mais nada. São vocês que os ensinam assim, não é? Merecem mesmo serem traídas por caras que se dizem muito homens, mas que, às escondidas, trepam com outros caras. Ou pior, julgam-se bons amigos e vão para casa de algum deles bater punheta todos juntos assistindo filme pornô. – Largou seus cabelos e foi até a mesinha após ter dado um leve chute nas costelas de Caio, o de dezesseis.
Saíram Renato e Daniel após verificarem se estavam todos mesmo muito bem amarrados. Umedeceram um pano de chão em um líquido transparente e o pressionaram sobre as narinas dos jovens que em segundos adormeceram.

2

Já estavam acordados quando viram pela janela que o céu estava dourado, sabiam que já estava anoitecendo. Tentaram, em vão, arrumar alguma forma de desamarrarem-se. Ouviram os tilintares das correntes que vinham do outro cômodo, era obvio que saíram e os deixaram trancados. Os seis olharam, em sincronia, entrarem em fila indiana, Renato, Daniel, Rafaela e pela primeira vez, fivam Digão, um rapaz de cabelos castanhos e muito curtos, olhos esverdeados, corpo muito magro e usava óculos de grau. O último trazia uma garrafa. Colocou-a sobre a mesa e sem olhar para nenhum daqueles indivíduos que estavam ali jogados no chão, saiu novamente na companhia de Rafaela.
Daniel pegou a caneca de metal que estava sobre a tampa da garrafa, colocou-a sobre a mesa e abriu o grande recipiente, encheu a caneca e deu água na boca a cada um dos enclausurados. Fazia-o com um geste solene, muito educado enxugava suas bocas e os olhavam com piedade.
Após Daniel ter terminado de matar a sede alheia, Renato chutou Miguel no peito de modo que ele caiu de costas meio desajeitado. Sentiu suas nádegas em contado com o chão frio. Aquela sensação de infância, de criança brincando com barro, deu a ele uma agradável sensação, mas logo foi substituída pela dor do rompimento. Suas calças foram puxadas até as panturrilhas, gritava e tentava se bater o máximo que podia como tentativa de conseguir qualquer fio de esperança.
_ Quer que eu chame a Rafa? – Daniel questionou levantando-se do banco.
_ Sim, sim. Por favor.
Daniel saiu e logo depois Rafaela entrou sozinha. Ela era enfermeira e se ofereceu a ajudar em casos extremos, quanto às feridas ou outras coisas. Viu que Miguel estava quase nu e teve dó dele, viu em sua face uma suplica por misericórdia.
_ O que você vai fazer?
_ Bem, vou transformá-lo em um homem de verdade, depois eu cuido do resto. Só preciso de você para fazer o estancamento de sangue e com a ajuda do Digão levá-lo daqui.
Começaram todos a gritar abafadamente, pareciam porcos prontos para o abate. Retorciam-se o máximo, mas tudo era em vão.
Rafaela pegou fitas, gazes, álcool e algumas luvas. Tinha um grande kit de primeiros socorros. Abriu uma toalha no chão próximo de Miguel que tentava a todo custo gritar. Ela e Renato vestiram um longo jaleco branco e cobriram as mãos com as luvas plásticas. Naquele momento, todos estavam desesperados, Miguel observava estarrecido. Teve sua amordaça retirada por Renato:
_ Não! O que vão fazer, pelo amor de Deus! Não, eu imploro! Se for dinheiro, não tem problema, eu arrumo, mas, por favor, eu imploro – Exclamava em meio a choros.
_ Não se preocupe, você não vai morrer. Pelo menos não é o que queremos que aconteça. Queremos que você viva.
Aquelas palavras deram, por alguns instantes, um conforto insano aos colegas que ainda estavam amordaçados. No entanto, conforto esse que se transformou em verdadeiro horror após assistirem a tal cena.
Não havia bisturis e tão pouco qualquer instrumento para cirurgias, não havia anestesias e nem complexos medicamentos. Mas havia um canivete, muito afiado, diga-se de passagem. Fora afiado por Pedro, pai de Renato.
Miguel arrepiou-se a sentir o frio da lamina em contato com seu pênis. Gritava roucamente enquanto sangue sujava as luvas, o chão, as pernas, a virilha. Seus amigos tentavam desesperadamente gritar, imploravam a Deus que fizesse alguma coisa. Rafaela tentava limpar o que era possível e depois de mutilado, fez com panos brancos e aparentemente limpos, compressas sobre o ferimento.
Miguel estava acordado ainda, pálido. Deixou ser vencido – situação que não era muito diferente desde o tempo todo em que estivera naquele lugar – Encostou suas costas no chão, olhou para o teto de telha. Estava ofegante, quando viu aquele ser, que para umas de suas amigas era maligno, aproximar-se de sua cabeça. Renato tinha uma agulha em mão, e sem cerimônia, puxou os cabelos de Miguel e furou seus olhos.
Todos ficaram indignados e horrorizados com tal comportamento. Questionavam-se como seria possível uma pessoa ser capaz de tamanha desumanidade. Rafaela apenas observou e, por alguns instantes, teve medo do amigo, mas também teve orgulho, e nem sabia explicar o porquê.
Miguel foi desacordado com o mesmo líquido usado anteriormente. Rafaela e Digão levaram aquele corpo ensangüentado e pareciam ter pressa.
_ Deixe-o próximo ao hospital, mas vejam se não tem câmeras de monitoramento. Depois liguem para o hospital e façam uma denuncia anônima de que viram um rapaz inconsciente bem próximo e precisa de ajuda. – Orientou Renato.
Em menos de uma hora, Rafaela e Digão estavam de volta e muitas coisas se passaram, e todos os cincos sofreram violências. O rapaz de vinte e quatro teve sua garganta profundamente cortada e ficou ali, no chão, já morto de olhos abertos. Uma das moças, depois de obrigada a lamber a vagina da amiga, teve sua língua e dedos decepados e seus olhos furados, e logo em seguida fora abandonada nas proximidades escuras de uma rodovia. Dessa forma, Daniel teria a certeza de que ela não falaria nada, não escreveria nada e não reconheceria ninguém nesse mundo pequeno.
O rapaz de dezesseis anos fora puxado pelos cabelos e a chutes para fora do casebre. Havia uma fogueira e parecia estarem cozinhando qualquer coisa. Tinha fome e veio a sua mente a imagem de sua mãe na cozinha, daria tudo para poder vê-la novamente e não mais sair de seu lado.
Levaram-no próximo a algumas árvores, havia um barranco íngreme e as grandes sombras, mesmo à noite, dificultavam a visão. Havia um buraco, um tanto fundo e a seu lado um caixote. Tiraram sua amordaça e o colocaram dentro daquele retângulo de madeira. Gritava muito na esperança de alguém ouvi-lo.
_ Não! Não! Por favor não! Eu não queria bater em vocês, eu na verdade não tenho nada contra os gays.
_ Eu não tenho nada contra os heteros. – respondeu secamente Digão.
Renato, momentos antes, havia forrado o fundo do caixote com um plástico preto e ajudando o amigo, colocou Caio dentro dele. Fecharam com uma tampa de madeira e martelavam todos os cantos. Gritos vinham lá de dentro.
_ Por favor! Eu sou gay! Eu também sou gay!
Ao escutarem tal afirmação, Renato e Digão olharam-se e depois olharam em sincronia para Daniel e Rafaela. Hesitaram por alguns instantes, mas continuaram. Jogaram o caixote no buraco e o fizeram sem delicadezas. Cobriu tudo com terra e camuflaram o terreno com folhas de bananeiras e outras plantas e galhos que estavam pelo chão. Renato tinha a tese de que Caio morreria sem oxigênio ou por afogamento, por isso colocou o plástico, sabia que aquela era uma região onde chovia muito. Não era possível ouvir os gritos daquele pobre adolescente, o que não significava que não estaria gritando naquele momento. (Uma dúvida paira nos meus pensamentos, será que aquele rapaz estava falando a verdade? Ou disse apenas como estratégia de fuga? Enfim, não saberemos nunca.)
Estavam cansados e pareciam não estar mais dispostos a continuar, entretanto, havia ainda duas testemunhas. A panela que estava no fogo do lado de fora do casebre, aquecia gordura. O primeiro plano de Renato e de seus amigos era de queimar suas vítimas começando de baixo para cima e até tinham colocado duas cordas em um grande galho de árvore para pendurá-los de ponta-cabeça.
Felizmente o plano foi deixado de lado, queriam acabar logo com tudo aquilo. Estavam todos dentro do casebre, com exceção de Digão que sempre se mantinha como sentinela. Cercavam Camila e  Kaique.
_ O que vamos fazer com eles? – perguntou Daniel.
_ Não sei, e se fizéssemos o mesmo que fizemos com a outra garota e, com ele, também cortássemos seu pau? – Rafaela sugeriu em tom de interrogação.
_ Não, acho melhor não, vai dar muito trabalho, sem falar no sangue todo. E nesse exato momento a polícia deve estar de cautela para ver se encontra qualquer coisa suspeita. O carinha que vocês levaram para o hospital, pode estar acordado agora, não cortamos sua língua e ele pode muito bem falar o que aconteceu. Ele só não sabe onde estamos.
_ Vamos soltar eles?
_ Não sei. – Renato parecia cansado e com preguiça.
_ Mas se soltarmos ele vão correndo para a polícia.
_ Não precisamos no preocupar com isso. Não podemos ser presos, amanha é eleição. Só se formos pegos em flagrante. Negamos tudo e mesmo se confessarmos, ainda não podem nos prender, só se arrumarem outros crimes cometidos antes dos dois dias que antecedem as eleições. – Renato informou enquanto sentava na cadeira de plástico.
_ Precisamos ser rápidos. – Advertiu Daniel.
Renato olhou para os dois sobreviventes e com um tom de voz suave e pausadamente disse:
_ Vocês pediram para eu ser homem, de fato não pedem, ordenam de forma agressiva como se os gays não fossem capazes de serem homens da forma que vocês acreditam que devam ser. Pois bem, creio agora que vocês estão certos de que eu sou homem. E devem estar certos também que as diferenças existem e sempre existiram. O fato é que hoje se tem mais conhecimento e muitos não se escondem mais atrás de casamentos de fachada, apesar disso ainda ser muito freqüente. Vejam bem, eu ainda não sei qual o complexo de vocês dois e também fiquei sem saber o da sua amiga e esse seu amigo. – Apontou para o corpo que estava ao lado dos dois. – Aquele seu amigo, o que eu levei daqui, agora pouco, disse pra gente que ele era gay. Ele era gay?
Os dois balançaram negativamente a cabeça e franziram a testa. Renato continuou:
_ O mais machão, nem preciso falar qual o complexo dele, se bem que ele deve ter vários.
Naquele momento, Renato percebeu que perdeu o motivo para toda aquela ação, perdeu a finalidade e nem sabia mais para quê. Levantou com o canivete em mão e calmamente cortou a garganta de ambos.
Recolheram seus instrumentos, jogaram o óleo quente, limparam as coisas que poderiam ter suas digitais. Queimaram as luvas, peças de roupas, tênis, o consolo e outros pertences, esperaram queimar até o fim para certificarem-se que não sobrariam indícios.
Caminharam, Renato, Daniel, Rafaela e Digão, passaram próximos a um lago onde jogaram as armas brancas. Telefonaram para Seu Pedro e, escondidos, o esperaram próximos à rodovia. Foram deixados cada um em suas casas.
Na mesma noite, circulava na mídia um atropelamento de uma moça que tivera seus olhos furados e tentava pedir ajuda quando teve seu tronco esmagado por um caminhão. No dia seguinte, a mídia e a sociedade tiveram breve conhecimento dos fatos. Era dia de eleição e as pessoas não deram muito crédito à história. À noite, só se via nos canais a contagem de votos.
Quatro dias depois da manifestação cidadã, policiais encontraram no casebre os três corpos e procuravam por um adolescente de dezesseis anos. Contava-se agora, a história. E a identidade do único sobrevivente mantinha-se guardada. Repórteres vasculhavam por informações feitos cães de rua à procura de comida na lixeira e, aos poucos, davam notícias esclarecedoras. A polícia ainda não tinha pistas concretas dos criminosos, mas sabia apenas algumas características.
Gustavo falecera e tal notícia foi dada pela mídia que relacionou o caso ao agressor que, agora, também se tornara vítima. Opiniões dividiam-se a respeito do caso que era visto pela polícia como algo pitoresco. No entanto, não foi informado o nome de Miguel e nem que ele precisaria fazer algumas reconstituições. Sabemos que nada será como antes para ele. Até o momento, não encontraram Caio.
Enquanto isso, a sociedade continuava. A ela eram apresentadas novas histórias que, dia após dia, seriam aos poucos esquecidas pelos coadjuvantes.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 13/12/2010
Código do texto: T2669467


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2 comentários:

Anônimo disse...

incrivel este! Como seria bom se alguns casos fosse mesmo verdade. Se bem que tem tudo haver com a realidade.

Anônimo disse...

nossa que demais! Tudo haver com a vida real.

muito bom mesmo