27 julho 2014

O Dia de Faxina

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O DIA DE FAXINA


No começo, tudo parecia estar certo. Não havia nada de errado com as paredes nem com os pisos. Tudo branco.
A primeira visita foi rápida, no entanto, não puderam ver todos os cômodos, o quarto da frente estava trancado e a agente imobiliária não tinha a chave. Isso, contudo, não foi problema para que ficassem com a casa. Os papéis começaram a multiplicar-se e assinaturas passaram a ser desenhadas com mais freqüência.
Antes que o negócio fosse realmente fechado com a última assinatura, o casal pediu para que vissem a casa novamente. O cadeado do portão social foi aberto e o cachorro do vizinho começou a latir. Passaram todos pela área grande da garagem, onde caberiam quatro carros, possivelmente. Adentraram pela porta da sala, o chão continuava igual, um pouco mais sujo de pisadas de barro, algo que pareceu natural para o casal. As paredes da sala estavam um pouco úmidas devido à forte chuva da noite anterior. Ele e ela ficaram meio receosos de ficar com a casa, uma vez que, antes mesmo de ser vendida já apresentava alguns vícios. Foram informados pela agente imobiliária que qualquer problema seria sanado pelo proprietário e que as paredes seriam cobertas com impermeabilizante.
O negócio foi fechado, as assinaturas coletadas, dezenas de documentos assinados e entregues, impostos e altas taxas pagas e a chave entregue.
O casal, feliz, dividiu suas conquistas com familiares e após o assentamento da luz da felicidade, foram indagados por entes queridos sobre as cópias das chaves. O casal recebeu apenas uma chave de cada porta e, no entanto, cada porta tem duas chaves; Preferiram não se preocuparem com as tais chaves, decidiram que trocariam as fechaduras.
Eram duas crianças felizes com seu brinquedo novo. Foram dar uma limpada no piso branco e averiguar os possíveis problemas que seriam resolvidos pelo ex-proprietário. O brinquedo veio com alguns defeitos: os pisos do quarto da frente – aquele que estivera trancado na primeira visita – estavam manchados do que parecia ferrugem; a porta da cozinha, empenada; alguns pisos, pela casa, estavam com pequenos trincos; não havia porta no banheiro; as paredes precisavam de uma pintura e a parede que outrora estivera molhada, ainda estava úmida... Elaboraram um documento com uma lista dos problemas e entregaram à imobiliária.
Dias depois, a chave foi pedida ao casal para que o pedreiro do ex-proprietário arrumasse o que era preciso. Demoraram cerca de um mês. O casal visitava, periodicamente, os pedreiros, mas o expediente deles era curto. A chave foi entregue de volta ao casal e os pisos e a parede continuavam com problemas.
Os pisos não foram trocados, a parede continuava a molhar com as chuvas e outros problemas passaram a ser percebidos. Um árduo caminho com a justiça.
A justiça entendeu que era problema do casal. E o ex-proprietário, um vereador da cidade, comemorou o fato de estar finalmente livre dele e dela, que cobravam quase todos os dias, pelos direitos.
O jeito foi chamar um pedreiro de confiança e fazer um orçamento. Fizeram.
Não tinham dinheiro; Não haviam comprado móveis ainda; Tinham as prestações da casa, impostos, conta de água e luz e outras despesas, como transporte para trabalhar, compra do mercado para a casa dos pais, entre outras coisas.
O jeito foi parcelar no cartão. Parcelaram.
Os pisos foram trocados – menos os azulejos do banheiro e da cozinha. As paredes foram pintadas de branco e apenas uma, na sala, ficou da cor de um salmão quase laranja. A caixa d’água e coisas com encanamentos também foram solucionados e o mais difícil ficou para depois: arrumar a parede dos fundos que ficava grudada com a parede de uma casa vizinha no terreno de trás.
Estavam felizes.
Dias antes de se mudarem definitivamente, ele comprou um saco de sal grasso e foi questionado por ela. Essa teve uma resposta simples e o marido pediu a ela que não reclamasse e que não o impedisse. Ela concordou e, no dia seguinte, foram até a casa fazer uma última limpeza.
Pararam o carro em frente ao portão, abriram o cadeado. Traziam no carro um balde, uma caixa do que parecia sabão em pó, uma vassoura, uma garrafa transparente de refrigerante reutilizada com cloro – um líquido meio amarelado – e um rodo. Abriram o cadeado do portão social e colocaram para dentro da garagem todas as coisas que trouxeram. Devido ao que ouviram e o pouco que puderam perceber, não deixavam nem os portões e nem os cadeados abertos: era um bairro com alto índice de furtos.
Abriram a porta da sala e adentraram carregando uma parte das coisas e deixaram próximo à pia, ao lado do balcão de cozinha americana. Abriram a porta da cozinha e deram uma olhada na lavanderia para verificar qualquer coisa de errado. Ele voltou à garagem pelo quintal, pegou o que havia deixado para trás e entrou novamente, dessa vez pela porta da sala, e colocou próximo aos demais materiais de limpeza.
  Antes de começarem com água, sabão e cloro, Mesquita preferiu jogar primeiramente um punhado de sal grosso em cada canto da casa e decidiu começar pelo quarto da frente. Não haviam, ainda, aberto as janelas de madeira – talvez por esquecimento – e ele, após ligar a lâmpada do quarto, abriu o pequeno saco de sal. Jogou um punhado no canto direito próximo a janela, depois passou para o canto esquerdo, foi até a parede oposta e jogou outro punhado quando de repente, a porta do quarto fechou-se violentamente fazendo um grande eco dentro do quarto vazio. Aquele barulho ecoou dentro da cabeça dele e de sua esposa, Virginia. Seus corações pareciam saltar pelo peito e o ar parecia incapaz de circular pelo pulmão.
Virginia abriu a porta. Ainda não estava com medo, estava apenas assustada. Seu marido aproximou-se, fechou um pouco a porta para que pudesse jogar um pouco de sal naquele canto da parede. A lâmpada apagou-se.
_ A lâmpada queimou. – Mesquita enfatizou.
_ Que estranho.
_ Estranho mesmo. Primeiro a porta, depois a lâmpada.
_ Nossa, pior. O negócio está carregado aqui em.
Virginia e Mesquita, confiantes e contentes por verem que a limpeza estava surtindo algum efeito, foram para o último quarto. Caminharam tranquilamente pela sala, depois pela cozinha, pelo pequeno corredor e adentraram o quarto. Ela foi diretamente abrir a janela – fez isso inconscientemente enquanto ele foi até o canto direito próximo a janela e jogou seu punhado de sal. Depois em outro canto e mais outro. Depois de jogado a terceira porção de sal naquele cômodo, a lâmpada estourou-se seguida pela lâmpada do pequeno corredor. Mesquita e Virginia entreolharam-se: começavam a sentir medo. O quarto punhado de sal foi jogado próximo à porta e, receosos, esperaram por alguma manifestação. Nada, no entanto, aconteceu.
No momento em que ele saía, seguido pela esposa, do quarto, a porta fechou-se atrás deles com extrema violência e o barulho feito com a pancada parecia ser a mistura da madeira com um grito ensurdecedor. Assustaram-se ambos.
_ Me, tem alguma coisa errada aqui. – A voz dela tremulava um pouco.
_ Também estou achando. Não imaginei que o sal faria isso.
Mesquita tentou abrir a porta, era, contudo, como se alguém a segurasse pelo lado de dentro. Agora davam fortes sinais de medo e Virginia, sem saber o que fazer e como fazer, jogou um pouco de sal contra a porta que por sua vez, abriu-se imediatamente, na mesma força com que se fechara. Outro susto.
Estavam ambos agora um pouco ofegantes e seus peitos subiam e desciam no doce balanço do medo e da adrenalina. Ele lembrou a esposa do celular e pediu-a que filmasse dali por diante.
_ Mas e se aparecer alguma coisa no vídeo? – Virginia perguntou assustada. Seu marido não soube responder e ficou com os olhos voltados para o chão como quem procura alguma resposta. Não a encontrou. E pediu a esposa que filmasse mesmo assim.
Ela foi ate a cozinha, onde deixara sua bolsa sobre a pia coberta por jornais velhos. Procurou o celular dentro da bolsa e no momento em que o encontrou, a porta da cozinha, ao seu lado, fechou-se lentamente em gemidos. Assustada correu para perto do marido que a esperava na porta do banheiro com o saco de sal grosso na mão esquerda. Olharam-se. Ele entrou no banheiro enquanto ela permanecia na porta, filmando.
O primeiro punhado de sal, jogado no canto próximo ao chuveiro, foi suficiente para que algo extraordinário acontecesse, algo que deixaria quente qualquer nervos. Estavam ambos de olhos arregalados e bocas abertas quando os azulejos começaram a cair um por um. Não caiam apenas, pareciam pesar toneladas e espatifavam-se em pedaços. Mesquita tentava proteger o rosto com os braços enquanto sua esposa gritava pedindo para que ele parasse de jogar o sal. Ele, no entanto, jogou mais. A porta fechou-se deixando Virginia de fora. Ela gritava batendo na porta e já não filmava mais nada, apesar da câmera do celular ainda estar ligada. Ele, trancado dentro do banheiro, teve que se abaixar porque os azulejos passaram a ser arremessados contra a parede oposta. Mesquita gritava pedindo ajuda de sua esposa que, por sua vez, tentava com todas as forças abrir a porta.
_ Corre! Vai pedir ajuda pra alguém. Vai pedir ajuda pro vizinho do lado!
Ela foi...
Quando saía pela porta da sala, Virginia escutou o marido, que vinha logo atrás, informando que já conseguira sair. Tinha alguns cortes no braço e um na testa.
_ Vamos embora Me!
_ Não podemos, essa é a nossa casa!
_ Tem alguma coisa nessa casa, por favor, deixa esse sal grosso de lado e vamos dar um jeito de vender.
_ Não amor, tenho que continuar com o sal. Estamos expulsando seja lá o que estiver dentro dessa casa. Temos que tirar para podermos nos mudar. Cadê o celular?
_ Esta aqui. – Ela o retirou do bolso e o entregou ao marido.
_ Não... Fica com você! Continua filmando.
_ Não...
_ Filma... Vamos. – Ele voltou para dentro de casa.
Antes que continuassem a jogar o sal grosso, Mesquita teve a idéia de deixar algum obstáculo nas portas da cozinha e da sala para que elas não se fechassem. Colocam dois pedaços do sarrafo que estavam no quintal e que foram usados para segurar as grades nas janelas. As portas não fechariam mais.
Virginia segurava o celular enquanto tremia de frio. Seu marido começou a jogar um punhado no canto da cozinha próximo ao pequeno corredor, depois outro punhado no canto do balcão que dividia a sala da cozinha, depois outro punhado próximo à pia junto à extremidade do balcão, e por último, um punhado perto da porta. Nada aconteceu. Ele começou então a jogar outros punhados do lado da sala e, mais uma vez, nada aconteceu.
Foram até a área da lavanderia e, novamente, Mesquita jogou um punhado de sal em um dos cantos próximo a parede. Punhado esse que caiu como uma pedra sobre o piso. Esse trincou e a trinca feita pelo sal serpenteou para dentro da casa, passou pela cozinha e parou próximo ao pequeno corredor.
Naquele momento, parados na lavanderia, Mesquita olhou para esposa que tinha os olhos inundados de lágrimas. Ela segurava o celular como se ele fosse um revolver e sem perceber, começou a rezar o pai nosso em voz alta.
Venha a nós e ao vosso reino” As portas dos quartos e do banheiro começaram a bater repetidamente. Correram para dentro de casa para ver o que acontecia, as portas da sala da cozinha também bateram com extrema força e se abriram e se fecharam violentamente. De novo e de novo. O barulho era ensurdecedor. Virginia deixou o celular cair no chão e, com as duas mãos, tentava tampar os ouvidos.
De repente tudo parou...
Um silêncio assustador passou a tomar conta de todos os cômodos da casa. As portas da cozinha e da sala, sincronizadamente, abriram-se no gemido lento causado pelas dobradiças. Mesquita acompanhou cada centímetro de abertura enquanto sua esposa mantinha os olhos fechados. De repente, dentro daquele silêncio mórbido, o saco de sal, que estava na mão de Mesquita, foi arremessado contra o chão. Era como se alguém o tivesse tirado de suas mãos. O sal fez um rastro sentido à porta da sala que se fechou violentamente, tão forte que sua maçaneta quebrou-se.
Não sabiam o que fazer. Ficaram cerca de cinco minutos imóveis entre a sala e a cozinha quando, finalmente, Mesquita foi até a porta da sala, pegou do chão a maçaneta e abriu a porta. Escutavam-se apenas os latidos de algum cachorro vizinho, crianças brincando na rua e uma vizinha dando bronca em alguém.
_ Pronto. Acho que terminamos. – Mesquita tentava carregar na voz a certeza e otimismo.
_ Será? Amor, acho que não venho pra cá mais não.
_ Como assim?
_ Estou apavorada. – Virginia entregou-se aos braços do marido e começou a chorar copiosamente.
_ Calma amor, calma. Vai dar tudo certo. Já expulsamos o que tínhamos que expulsar. Você não viu a hora que o sal caiu sentido à porta depois que ela se abriu. Então, seja o que for, já foi embora.
_ Você tem certeza? – Ainda em choros.
_ Sim. – Ele sabia que não tinha certeza de nada, mas preferiu acreditar no que dissera para a esposa. Ele também precisava acreditar.
Estavam muito cansados e decidiram deixar para fazer o resto da faxina outro dia. Virginia não entrou mais na casa naquele dia. Foi seu esposo quem fechou a janela do último quarto, deu uma olhada rápida no estrago dentro do banheiro, trancou a porta da cozinha e por fim, fechou a porta da sala. Entraram no carro, ainda estavam com medo e levaram um assusto com a ignição do carro.
Foram embora.

***

Ao chegarem à casa dos pais dela, os familiares perguntaram o que havia acontecido já que Mesquita tinha alguns cortes, mas ninguém acreditava na história contada pelo casal. Ela ficou na casa dos pais enquanto ele foi para casa, onde moravam de aluguel, próximo ao antigo hospital São Sebastião.
Ela preferiu deixar o celular com o seu esposo.
Durante toda a noite, Virginia teve pesadelos. Sonhava com um homem barbudo dentro da nova casa. Não conseguia ver seu corpo, via apenas seu rosto chegando muito próximo ao seu. Tinha uma feição de ódio. Ele vinha sempre em sua direção com muita velocidade enquanto ela gritava. Não havia mais ninguém na casa e as portas da cozinha e da sala estavam fechadas. Não havia luz também, a não ser a pouca luminosidade vindo do final do entardecer.
Mesquita também não conseguiu dormir. Sonhava com alguém puxando seus pés dentro de um enorme tanque cheio de água turva. Acordava varias vezes debatendo-se na cama.
Já era por volta das três horas da manhã quando levou um enorme susto devido ao pesadelo que tivera. Não conseguia fechar os olhos e lembrou-se do celular da esposa. Levantou-se, foi até o interruptor e acendeu a luz, foi até a estante onde estava o celular e retornou a cama. Sentado com as costas apoiada na cabeceira, começou a procurar pelas imagens. Havia apenas dois vídeos. Sentia medo, mas sua curiosidade falava mais alto. Começou a assistir ao primeiro vídeo. Seus olhos arregalaram-se novamente ao ver o que aconteceu com os azulejos do banheiro. Estava ofegante, a imagem do vídeo começou a ficar muito tremula já que sua esposa sacudia-se muito devido ao medo e aos gritos. Algo, no entanto, o deixou realmente apavorado. No momento em que sua esposa colocou o celular no bolso e começou a bater na porta do banheiro aos gritos, algo foi filmado próximo à porta do quarto, ao lado onde ela estava. Era a imagem de um homem em pé, imagem essa um tanto borrada. Ele olhava para sua esposa, momentos antes de sair correndo para pedir ajuda.
Mesquita pensou em ligar para a esposa para contar o que ela havia filmado, no entanto, após alguns minutos de reflexão, preferiu não ligar. Primeiro: para não acordá-la; segundo: porque sabia que sua esposa ficaria mais apavorada do que ele e isso seria um grande problema na mudança. Começou então, a ver o segundo vídeo. Ficou, mais uma vez, admirado e amedrontado com o que vira, mas nesse, não havia imagem de pessoas ou qualquer outra coisa. Colocou o aparelho celular ao lado de sua cama, deitou-se e se cobriu. Não desligou a luz porque estava com medo do escuro ou do que poderia encontrar no instante em que fosse desligar ou então no memento em que voltasse para a cama. Mesquita demorou cerca de duas horas para dormir finalmente e antes que pegasse no sono, apagou os dois vídeos do celular.
Dormiu.

***

Era por volta das dez horas da manhã quando Mesquita acordou com o barulho do aparelho celular. Era sua esposa que o ligava.
Ela estranhou o fato do marido ainda estar dormindo, já que ele costumava levantar cedo. Ela perguntou sobre o vídeo e ele respondeu dizendo que a câmera não havia filmado nada e que a imagem ficou completamente escura.
Virginia, depois, chegou a pedir para ver o vídeo, mas seu marido informou-a que já havia excluído por assim achar melhor. Ela concordou.
Após o almoço, foram novamente à casa para fazer outra faxina, porém, com produtos de limpeza e para averiguar os danos causados. Mesquita comportou-se estranhamente, principalmente quando Virginia pedira-o que abrisse a janela do último quarto e ele recusou-se.
Para a dor do bolso do casal, teriam que trocar os azulejos do banheiro e trocar novamente os pisos da lavanderia e da cozinha. Mesquita ficou um tanto irritado com a idéia de novos gastos e com a demora para se mudarem. Virginia então sugeriu que gastassem apenas com o banheiro naquele momento e deixassem o resto para depois. Sugeriu também a mudança para a casa, logo após o concerto do banheiro e que fizessem os demais reparos com o tempo. Dessa forma poupariam o dinheiro gasto com o aluguel.

***

Demorou quase um mês para que o banheiro ficasse pronto e Mesquita e Virginia tinham uma dívida maior e não sobrara dinheiro para fazer a mudança. Amigos e familiares ajudaram.

***

Dois meses morando juntos na própria casa. O casal parecia ter esquecido o ocorrido no dia em que Mesquita insistiu em fazer a faxina com sal grosso. Algo, contudo, ainda estava por acontecer. No sexagésimo e sexto dia, às seis horas da manha, Virginia acordara com muita sede e foi até a cozinha. O casal dormia no quarto da frente – que era maior. Mesquita tinha um pesadelo: sonhava que na parede de sua casa – a da sala – fazia um barulho como se ratos corressem pelo interior dos blocos e que sua esposa segurava uma faca de cozinha; com essa faca, ela fazia um grande corte na parede como tentativa de tirar os ratos, mas sua própria barriga abria-se no mesmo instante em que ela cortava a parede; Mesquita via os olhos da esposa virarem-se enquanto a barriga dela, aberta, despejava no piso, dezenas de ratos decapitados e inundados em uma imensa poça de sangue.  Ela o pedia socorro com a mão avermelhada, porém, ele não conseguia mover-se, nem mesmo chorar.
Virginia que estava na cozinha, pegava água na geladeira. Olhava pela janela que dava para o quintal enquanto virava o copo d’água lentamente. Viu um vulto do lado de fora e assustou-se. Ela teve certeza de que alguém estava no quintal e, involuntariamente, ela tentou esconder-se e olhou para as duas portas – da cozinha e da sala – para ver se estavam trancadas. Elas estavam. Virginia então se virou para voltar para o quarto quando viu o que parecia ser uma sombra na parede próxima ao pequeno corredor. Gritou!
Mesquita acordou-se de seu pesadelo com o grito da esposa. Arrepiou-se por completo e se levantou em um pulo. Correu até a porta do quarto que dava para a sala e viu sua esposa com o rosto na mão como quem tenta se proteger de algo. Ficou imóvel, quando viu que a porta do último quarto – que dava de frente para a porta do quarto da frente – estava entreaberta e que alguém o olhava pela fresta. Lembrou-se do vídeo. Tentou gritar pelo nome da esposa, mas não conseguiu.
Virginia tirou as mãos de frente do rosto e se assustou com o marido em pé, em frente à porta do quarto, parado igual estátua. Ela pôde ver que ele olhava para ela e depois para o corredor e tinha os olhos carregados de lágrimas. Ela olhou para o que achou ser a sombra de alguém e notou que era uma mancha úmida na parede, exatamente no formado de uma pessoa.
A porta, entreaberta, do último quarto começou a ranger. Virginia percebeu que o barulho vinha de perto de banheiro e, por instinto, foi até a porta da cozinha – ao seu lado – para abrir e sair correndo. Alguma coisa bateu na porta pelo lado de fora. Ela assustou-se recolhendo o braço e colocando-o contra o peito. Virou-se para o marido que continuava em pé, imóvel e percebeu que ele tentava falar algo e que lágrimas escorriam pela face. Ela se assustou novamente quando outra batida na porta ecoou mais forte. Correu para perto do seu marido que continuava imóvel com os olhos lacrimejados. Virginia olhou para o corredor, para onde seu marido não parava de olhar, e viu a porta entreaberta. Um arrepio veio das pontas de seus pés e subiu pela espinha dorsal e como uma infecção, alastrou-se pelos braços até subir pulsando dentro de sua cabeça: Ela também viu a silhueta de alguém pela fresta da porta e esta começou, naquele instante, a gemer em abrir-se.
_ Mesquita!!! – Ela gritou desesperada.
Ele continuava parado tentando gritar ou chorar.
_ Mesquita!!! Se mexe!!! Tem alguém na casa!!! Mesquita! – Virginia segurou pela mão do marido e o puxou sentido à porta da sala. Ele, no entanto, deu apenas alguns passos, o que deixou sua esposa mais apavorada. Ela, virada para a janela, gritava por socorro como quem direciona o som para que alguém pudesse ouvir.
As portas do quarto e a do banheiro fecharam-se violentamente fazendo um estrondo dentro da casa e as paredes tremerem. Mesquita acordou. Sua esposa já não o enxergava – devido às lágrimas – quando ambos olharam sentido o corredor; uma sombra esticava-se, no chão, para a direção deles. Não havia ninguém em pé, mas a sombra estava lá, parada.
Virginia e Mesquita escutaram alguém chamar e, no portão, batiam palmas. Ela correu para a porta e a destrancou. A sombra do chão sumira. Virginia correu gritando para a vizinha que havia alguma coisa na casa. A porta fechou-se novamente e a mulher, no portão, de olhos arregalados, viu o marido de Virginia, em pé e imóvel. ‘Talvez ele seja violento’, pensou a vizinha.
Virginia voltou correndo e começou a bater na porta gritando para que abrisse enquanto sua vizinha, assustada, correu de volta para casa fazendo o sinal da cruz. A porta se abriu e Mesquita caiu desacordado sobre sua esposa. Ela o puxou, com dificuldade, para longe da porta enquanto o marido da vizinha pulava o portão branco e a vizinha ligava para a polícia. Já do lado de dentro do quintal, o vizinho pediu para que sua esposa ligasse também para o SAMU.
Outros vizinhos se aproximavam do portão para verem o que acontecia. Virginia chorava com o marido no colo, enquanto via rostos de pessoas no seu portão, curiosas e cochicheiras.

***
Após longos minutos, a ambulância chegou e os paramédicos informaram que Mesquita encontrava-se em óbito. Virginia não acreditava e gritava aos choros. Após a polícia chegar, Virginia teve que dar breves esclarecimentos e a vizinha serviu de testemunha a favor de Virginia, que já era vista como a principal suspeita do crime. Ela foi levada para a delegacia e teve a prisão temporária decretada, mas conseguiu um habeas corpus.
Virginia não voltou mais para a sua casa, que ficou fechada por alguns dias para que a polícia fizesse a perícia no local. Ela voltou para a casa dos pais e não dormia mais, passava as noites e os dias acordada e sempre assustada com as portas da casa.
Após trinta dias, o laudo do IML saiu e ficou constatado que a morte de Mesquita foi por afogamento. Os médicos deram a justificativa de que foi devido a uma grande emoção. Virginia não acreditava na versão e a polícia também não acreditava na versão dela. Ainda há uma investigação de quem seria a terceira pessoa que estaria na casa.
Virginia tem pavor de ouvir o nome do bairro onde comprou seu imóvel, no Jardim Nova América em Suzano e não voltou para pegar suas coisas. A casa está à venda, do jeito em que ela foi deixada.

Quando coisas estranhas e que são impossíveis de serem explicadas acontecem com algumas pessoas, elas, as pessoas, passam a ser vistas como loucas e Virginia ainda corre sérios riscos...

Samir S. Souza