14 setembro 2013

Uns


UNS

Um e um são dois. Um nasceu em certo momento e outro noutro momento. Belos cada qual com suas belezas. Feios cada qual em seus momentos desleixados e despreocupados. Mergulhados dentro dos seus uns, cada um tem sua coloração e seus odores camuflados por essências externas – muitas vezes usadas como ferramentas para qualquer coisa e quase tudo.

Um tem olhos castanhos claros e Um tem olhos castanhos escuros. Adultos, cada qual com suas peculiaridades internas e externas. Pernas salientes, nádegas carnudas e redondas, peitos belos, pêlos excitantes, peles macias, queimadas pelo sol, brancas pela proteção das roupas. Um está lá, em um canto do cômodo enquanto Outro está em outro canto. Cantos que ninguém ouve, cantos sublimes com arranjos extasiantes em uma desafinação grosseiramente afinada.

Completamente diferentes com seus sonhos secretos, desejos inconfessáveis e células milagrosamente ajustadas que trabalham em conjunto dentro de dois corpos – cada um com suas embreagens muito bem engrenadas – em uma batalha cada qual. Começam a cantar a mesma canção.

Pele sobre pele. Mão espalmada no ar parece espelho que reflete a outra mão também na mesma posição. Um e Um é cada um com seu qual. Áureas misturam-se e se tornam em uma única áurea cobrindo dois corpos, dois um. Um e Um são dois que juntos, grosseiramente, dançam na mais bela e suave coreografia, ora sincronizados, ora sozinhos dentro de um mesmo querer que ultrapassa qualquer barreira de tijolo vermelho quente.

Odores misturam-se e dançam no ar como fagulhas que sobem de uma fogueira de São João e rodopiam entorno de Um e Um criando a mais incrível, palpável e visível sinestesia.

Um e Um agora são apenas um. Um único momento, um desejo, uns sentimentos iguais em comum. Dois seres diferentes e ao mesmo tempo idênticos. Um sonho, um mesmo sentir de modos diferentes...


Serão um enquanto durarem os próximos minutos... Minutos iguais para cada um, mas com segundos diferentes para os dois. Tudo é único e eterno enquanto há.

Samir S. Souza

29 abril 2013

Baterias e Carregadores

Tarde de domingo na ilha de grande - Jatte Seurat 1884 - 1886


BATERIAS E CARREGADORES



Era início de tarde de domingo. O sol ardia após o almoço e parecia que o dia repousava-se sobre o asfalto quente, sobre as calçadas e sobre os campinhos de futebol do bairro. O domingo, após o almoço, parecia deitar-se sobre o quintal onde batia, parcialmente, a luz do sol.

Nas ruas, apenas o tremular quente e abafado do concreto. Carros recém lavados e estacionados dentro de garagens ou em frente a três ou quatro portões, roupas e lençóis brancos balançavam em alguns varais. Cachorros de rua repousavam suas barrigas no chão fresco de algumas sombras feitas por muros.

O domingo nada mais é do que a espera pelo fim do repouso, a espera pelo início do sacrifício. Naquele dia, ela esperava por mais. Esperava por muito mais.

Renata esperava pelo namorado que, naquele final de semana, não conseguiu folga. Ele sairia por volta das quatro da tarde. Ela esperava pelo o início daquela espera pelo fim do dia junto ao ser que, de modo fascinante, é capaz de tornar essa espera tão leve e cheia de boas aspirações. Seria ele quem recarrega as baterias dela? Será que ela também recarrega as dele? Somos mais baterias ou carregador?

Não havia muito que fazer. Ela tentou ler alguma coisa. Pegou um livro qualquer na pequena prateleira em seu quarto e olhou para capa. Era um livro de contos de Lispector. Abriu no sumário e escolheu um conto pelo título. Começou a lê-lo, mas logo colocou o livro onde estava: ela não queria coisas tristes. Preferiu ler as primeiras páginas de um romance de Steven King, mas aquela história de cidades fantasmas e pessoas que, misteriosamente, desapareciam mexia com sua imaginação e ela não queria ler algo muito longo. Desistiu do livro e com o dedo indicador, passou pelas bordas de cerca de dez livros como quem procura algo específico e como quem não saber possuir todos eles. Por fim, desistiu de ler qualquer coisa e sentou-se em sua cama.

Virou para trás e olhou pela janela. Não havia muito que olhar a não serem outras casas e as copas de duas ou três árvores distantes que apareciam por detrás de alguns sobrados.  Viu o céu e como estava azul. Logo se lembrou dos finais de semana em que saiu com seu namorado para cidades próximas de onde moravam. Cidades essas que ainda não haviam conhecido. Lembrou-se do dia em que fizeram trilha e como o clima estava agradável naquele dia.

Ficou perdida em suas lembranças que, de algum modo, voavam pelo lado de fora da janela. O canto desesperado do João-de-Barro serviu para tirar o feitiço que caía sobre os olhos dela, mas também trouxe uma sensação de solidão quente, de saudade de alguma coisa que ela não lembrava exatamente do que. Uma saudade de alguma coisa emocionante e que exigisse coragem que ela ainda não teve. Levantou-se e foi até a sala, ligou a televisão e pulou de canal em canal à procura de qualquer coisa interessante e não encontrou. Ficou mais triste e entediada. Era como se ela não existisse para o resto do mundo. Questionou para si mesma qual era a sua função, se viver seria aquilo mesmo. Perguntou-se se fazia algum sentido trabalhar a semana inteira e ficar em casa descansando ao domingos em frente à televisão cuja programação não diferenciava muito de programas de auditório que se estendem durante quase toda a tarde e que, no entanto, transmitem quase nada.

As horas passaram, e chegou o momento do encontro com seu namorado. Tomaram café-da-tarde juntos e depois saíram. Foram esperar pelo início do sacrifício juntos.

A semana passou, dia após dia. As segundas e terças-feiras costumam ser, misteriosamente, mais cumpridas do que as sextas e os finais de semana.

Renata e seu namorado não saíram no sábado à noite por que ele trabalhara até tarde, mesmo depois de ele ter feito o convite. O domingo era deles e pela manhã, ela recebeu uma mensagem do seu amado perguntando que horas ela iria até a casa dele. Ela ficou de ir após o almoço. Ele não gostou alegando ser tarde demais.

Talvez, ele quisesse passar mais tempo com ela. Ela, talvez, quisesse almoçar com os pais.

Ela entendeu a posição do namorado, mas ao questionar pelo motivo o qual ele ficara irritado, ela recebeu a resposta de que ela sabia que ele não gostava de ficar em casa aos finais de semana, e que ele não iria esperar por ela. Ele não iria esperar ela chegar.

Renata teve seus olhos cobertos de lembranças. Lembranças de vários dias monótonos de espera. Todos nós esperamos por algo. Pelo o que exatamente?

Naquele domingo, ela não almoçou com os pais. Almoçou na casa dele onde estavam a mãe dele, tias, primos e primas. Ele a acompanhou na mesa, mas já havia almoçado. Enquanto ela comia, lembrou-se da mãe que ficou em casa preparando o almoço e desejou que, pelo menos, seu pai almoçasse com ela. Renata reconheceu que, naquele momento, não passava de uma ave.

Passaram o restante da tarde e noite juntos. Passaram bem, felizes e as baterias foram recarregadas, apesar de carregadores. Fizeram amor e dormiram bem... A espera havia chegado ao fim.

No dia seguinte, pela manhã, começava o início de luta. E por mais irônico que pareça: início da espera pelo final de semana.

Será que somos mais carregadores? Talvez...

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 24/04/2013
Código do texto: T4257655


22 março 2013

As Colunas, O Teto Azul e A Servente




AS COLUNAS, O TETO AZUL e A SERVENTE

As colunas chegaram...

Foram colocadas em um terreno pré-preparado. Preparado há tanto tempo que muitas coisas se perderam e outras apodreceram. Terreno infestado por insetos escondidos por entre os capins. Os capins aparecem e crescem sempre, e os insetos brotam de onde ainda não descobrimos e creio que nem teremos tempo para descobrir. Talvez seja melhor assim.

As colunas chegaram... Solitárias, cada qual escolheu um ponto onde se fixar. As colunas ficaram... Solitárias, cada qual escolheu uma outra para se olhar. As colunas ficaram e solitárias escolheram todas para somar.

Soma essa feita em um terreno pedregoso, lamacento e depósito de merda, muita merda. As colunas sujaram-se um pouco, o que é inevitável, mas suas estruturas não foram abaladas. As colunas foram trazidas para sustentar um teto azul com manchas brancas. Não se sabe se é dentro da parte azul ou da branca onde estão os livros mais significantes da Terra. Um teto abstrato com peso pressãomente concreto. As colunas estão de pé. Sustentando coisas que só elas podem saber.

A servente de pedreiro já estava à espera das colunas quando essas chegaram. Ela trazia um sorriso no rosto e suas mãos pequenas acenavam. Seus olhos diziam políticas que docemente perfuravam escudos. As colunas, como forma de segurança, fixaram alguns centímetros solo adentro. Alguns dizem que elas, fantasticamente, criariam raízes. E creio que todas já deram brotos.

No teto, que outrora se desbotava, foi passado giz de cera azul e com giz de gesso algumas manchas brancas também foram intensificadas. Creio que algumas das colunas pretendiam pintar poucas estrelas, estrelas que deixariam pingar laudas de poemas concretos, de gráficos de coisas abstratas positivamente, de desenhos aquarelas pintadas, simplesmente, pela vontade das colunas.

Foi então, que a servente de pedreiro que parecia não gostar muito do azul pôs em prática um plano. Será que são das manchas brancas de que ela não gosta? Talvez, a idéia das estrelas causasse-lhe medo. Enfim, o engenheiro, de sua redoma de vidro, mandou sugestões solúveis iguais a pó e ela, a servente, as transformou em plano.

Sem o engenheiro ou sem a servente, o teto continua sustentado. Mas e sem as colunas o que será do teto? Sem colunas, não há vão entre o chão e o céu. E para todos respirarmos é necessário haver o vão entre o chão e o céu.

Foi então que a servente teve a idéia de uma votação. Larvas que bebericam sobre as fezes foram convocadas, insetos foram trazidos para zumbirem. Todos votaram. Pelo o quê? Pela queda das colunas. Estas receberam a proposta de cederem porque um milagre estaria previsto. O céu azul de manchas brancas não cairia sobre suas cabeças e muitas estrelas surgiriam como pequenos botões de rosas. Justificativa? Deus estaria interessado naquele teto, talvez para fazer um pequeno quiosque de jardim onde passaria algumas horas lendo. O cair das colunas seria a única forma delas permanecerem sustentando aquele teto. Algumas colunas gostaram da idéia, outras nem tanto.

E os insetos e larvas votaram.

As colunas terão que cair. Cairão para então receberem a mão da servente que as ajudará a se colocarem onde estavam. Sem raiz e sem estrela de tinta. Apenas estrela de papel crepom. Colunas não criam raízes, pelo menos não deveriam.

As colunas chegaram, ficaram, botões de rosas surgiram de dentro do concreto e algumas grandes quantidades de merda foram removidas com vassouras sem cerdas. Serviço sujo feito pelas colunas.

Tudo o que é já parece ser o que era. Tudo o que foi virou fumaça de brasa recém apagada.

Será que já acabou? Acabou.


Samir S. Souza
Publicado no Recanto das letras em 22/03/2013
Código do texto: T4202880

07 março 2013

O Jovem que Não Precisava Trabalhar




O JOVEM QUE NÃO PRECISAVA TRABALHAR


Estavam no ônibus que ia para Ferraz. Subiram em Suzano após longos minutos de espera. Ela ia para o trabalho e aproveitava a viagem para deixar seu filho de aproximadamente sete anos no colégio. Um garoto diferente dos demais. Era ávido inocentemente e observador. Claro que tinha momentos iguais aos demais garotos de sua idade, momentos esses de bobices para sermos delicados com as palavras. Mas naquela manhã, ele estava atento.

Após passarem pela estação de Calmon Viana, na Avenida Brasil na altura do numero 650, próximo a passarela de pedestres, ao lado do ponto de ônibus, onde uma mulher negra desceu e outra gorda esperava seu ônibus, todos, que estavam nos últimos bancos daquele que ia para Ferraz, viram quando um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos, um pouco fora de si, gritava apontando para quem estava dentro o ônibus, que ele não precisava trabalhar.

Um grande tubo de metal torcido e parafusado cheio de anônimos de caras pálidas e amassadas, de bocas cheias de bocejos e olhos lacrimejados com pálpebras pesadas de sono e cansaço. Um tubo pintado para disfarçar metal que cortava ruas e avenidas margeadas de anônimos e alguns mortos vivos. Tubo que fazia curvas imprudentemente fazendo seus anônimos internos a quase se igualarem a gados e vacas. Antes que o motorista tirasse o pé do freio e avançasse, ela, a mãe do garoto esperto, após ver e ouvir aquele jovem gabar-se de que não precisava trabalhar, pensou consigo que era sorte dele.

Seu filho também o viu, já que estava sentado ao lado da janela, e automaticamente olhou para a mãe. Por alguns segundos ficaram calados, cada qual com seus pensamentos ou imaginações. Por fim, ele questionou:

_ Por que ele não precisa trabalhar?

Ela se riu e respondeu:

_ Talvez ele seja rico meu bem.

Ele fez cara redonda de quem tenta demonstrar entendimento, mas sem definitivamente entender e após quatro ou cinco segundos disse:

_ Se o papai fosse rico, ele não acordaria cedo. Ele mesmo disse.
_ Eu também não. Talvez, aquele moço nem tenha dormido ainda.
_ Ah bom. Mas por que a senhora e o papai têm que trabalhar e ele não?
_ Por que algumas pessoas têm mais dinheiro do que as outras.
_ E por quê?
_ Por que é assim mesmo. A vida, às vezes, é injusta.

Ele deixou transparecer aquela expressão que algumas pessoas demonstram, discretamente, quando dissemos algo que era melhor não termos dito e disse:

_ Injusta? Mas Deus não faz nada para que seja justa?
_ Ora meu amor, é claro que faz. – Ela disse meio desconcertada e um pouco arrependida por ter falado, na opinião dela mesma, demais.
_ Então porque a senhora e o papai não “para” de trabalhar?

Ela se riu mais uma vez e disse:

_ Por que não somos vagabundos. Temos que trabalhar para ter as coisas.
_ Então aquele homem é vagabundo?
_ Não sei. Pode ser que não.
_ Mas Deus não nos dá as coisas?
_ Dá, mas temos que lutar por elas, temos que trabalhar para merecer.

Ele virou o rosto para a janela e mirou o céu neblinado e após alguns segundos virou-se para sua mãe. Talvez ele tenha refletido um pouco se deveria continuar com aquela conversa ou não. E preferiu tirar sua última dúvida:

_ Se aquele homem não trabalha então ele não tem as coisas ne?
_ Algumas pessoas tem as coisas sem trabalharem muito ou sem mesmo trabalhar.
_ E isso não é injusto? Então Deus é injusto com a senhora e o papai.

Ela ficou um pouco chocada com tal afirmação e apressou-se de tentar concertar.

_ Cuidado menino! Não pode falar assim de Deus. Deus castiga!

Ele se encolheu e quando o ônibus parou ao lado da estação de Poá, levou a conversa para outro nível. Um nível filosófico, uma conversa chocante emergida da boca de uma criança. Ou um monstro pequeno?

_ Mãe...
_ Sim.
_ Se eu deixar de acreditar em Deus, deixa de existir o castigo?

Ela arregalou os olhos:

_ O quê? Que história é essa?
_ Se eu apagar Deus da minha mente ele não pode me castigar, não é?
_ Claro que não meu filho. Não tem como apagar Deus da nossa mente.
_ Por quê? A senhora não esqueceu o número de telefone da minha madrinha? Então.
_ Mas de Deus não se esquece menino! Deus é tudo!
_ Tudo? – E dessa vez, foi a vez dele arregalar os olhos.
_ Quem te falou essas coisas? Quem anda te ensinando essas coisas hein? Foi na escola?
_ Não. Ninguém me falou.
_ E da onde você tirou essas conversas?
_ Eu não sei. Só perguntei.
_ Você acredita em Deus não acredita?
_ Acredito... – Mas soou duvidoso ainda.
_ Então não tem com esquecer Deus. É impossível esquecer do que a gente acredita. Você entendeu?

Ele balançou a cabeça de modo que afirmava o entendimento.

E antes de levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse no próximo ponto, ela finalizou aquela conversa alegando não querer ouvir mais aquelas coisas. Ele limitou-se com um “está bem”.

 No sacolejo do ônibus, ela equilibrou-se entre sua bolsa, mochila do filho, segurar-se e segurar a mão dele e ainda passar por entre anônimos que costumam parar em frente à porta. Alguns anônimos necessitam desesperadamente de portas.

Desceram.

Ele ficou a olhar os pneus distanciarem e esqueceu, pelo menos naquele momento, do que pensara momentos antes e se entreteu com uma grande lesma sobre a calçada e, em pensamento, agradeceu a Deus por não ter nascido lesma. Sua mãe chamou sua atenção para andar logo, já que ela não tinha o dia todo. Ele correu para perto dela e seguiram para a escola.

Ele, não se sabe por que, olhou para trás como quem sente saudade de alguma coisa que ficou. E sempre fica.

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 07/03/2013
Código do texto: T4176740

26 fevereiro 2013

A Viagem



A VIAGEM


Verde. Carros vão e vem em alta velocidade. No chão, grandes retângulos brancos indicam o lugar certo e, ao lado, grandes quadrados contornados de laranja anunciam zona de conflito. Todas as cores desbotadas pelo atrito dos pneus com o solo e pelo tempo. A grande sombra do antigo Hospital e Maternidade debruça sobre a Marques Figueira enquanto o sol, radiante e amarelo ouro, parece esparramar-se no horizonte. Carros vão e vem. Caminhões fazem pequenos tremores. Ônibus freiam bruscamente devido à imprudência dos transportes alternativos.

Verde. Carros vão e vem. Amarelo. Todos em atenção. Vermelho.

Verde. Veículos viram para esquerda e direita saindo da Felício de Camargo. Sob o toldo da antiga entrada do hospital, espera um homem e uma mulher; ele com capas de volante e ela com balas e chocolates. Ambos vendem seus produtos no momento em que o semáforo está vermelho para os carros.

Dentro da sombra feita pelo prédio, nas calçadas, esperam ele, lá, e ela, cá, pelo momento em que verde pedestre libera passagem para que eles se encontrem. Ela, de vestido bonito e rosado, maquiagem clara e leve, cabelos presos e brincos discretos. Bonita e delicada. Ele, de calça jeans azul claro, camiseta branca com listras claras no tom cinza muito discretas. Bonito.

Ela trazia uma pequena bolsa de mão e um sorriso no rosto. Seus olhos não deixavam de mirar ele que trazia uma sacola de plástico branco e por onde se podia ver um embrulho de presente. Ela o esperava e ele ia sua direção. Olhos de ambos pareciam imãs e seus pensamentos deveriam ser o mesmo: que beleza! É tudo meu! Não vejo a hora de viajar, de conhecer a Chapada Diamantina com você! De viajar de ônibus ao seu lado e fazer as paradas para tomar um caldo de cana, comer uma pamonha e tirar algumas fotos. Cochilar no seu ombro até que cheguemos ao Vale do Capão onde sentiremos calor e estranharemos o clima e as casas simples de povo humilde. Será que poderemos sair à noite para tomar alguma coisa e ver o céu estrelado? Será que vai ter Lua? Será que nos desentenderemos enquanto estivermos lá? Quero levá-la na Cachoeira da Fumaça. Quero mostrá-lo a Sempre Viva. Vamos ter ótimos momentos juntos. Acho que lembrarei sempre desses dias.

Sinal amarelo. Um palio cinza virou a esquerda e se foi. Vermelho. Todos os carros estão parados. A figura do homem verde acendeu. Tudo parecia estar em completo silêncio. _ Que lábios bonitos ele tem. Ela pensou.

Um som agudo e estridente. Agudo e grave ao mesmo tempo. Grossamente encheu o espaço e quebrou o silêncio cristal. Ele já estava sobre a faixa quando um arrepio floresceu de sua espinha dorsal. Ela gritou e o enorme caminhão atingiu-o em cheio arrastando seu corpo por metros.

Tudo, por alguns segundos, pareceu voltar ao silêncio. Parecia não haver qualquer buzina, qualquer som humano ou ronco de motor. Por alguns segundos, a figura verde sinalizando passagem ao pedestre ficou acesa eternamente e o som do atrito da carne contra o asfalto, por alguns segundos, ficou imperceptível. Ela, em pé, de mãos vazias, de peito cheio, de olhos afogados, de cabelos ao vento que pareciam desesperar-se. Não sabia exatamente o que fazer. Correr até ele? Gritar? Quem irá me ajudar? Mãe? Mãe cadê você? Mãe!!! O que eu vou falar? Por que eu não marquei o encontro na praça? É tudo culpa minha! Eu sou uma burra mesmo! Mãe? Mãe? Mãe! Pai!

As lágrimas que afogavam sua visão começaram a escorrer pela sua face quando sirenes, gradativamente, começaram a surgir e ela parecia, ali, parada, em choque, querer fazer algo, mas seus músculos a abandonaram sozinha com a dor.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 26/02/2013
Código do texto: T4161440

15 janeiro 2013

Ausência Presente



 imagem google

AUSÊNCIA PRESENTE


O vapor da água quente que caía do chuveiro embaçou todos os vidros. Era por volta das cinco e pouco da tarde. O sol já abria seus braços dourados próximo ao horizonte enquanto a lua pálida e quase transparente já se posicionava no horizonte oposto. Uma típica tarde gelada de outono. Passou a mão no espelho porque o embaçado incomodava-o, mesmo ele sabendo que nem depois de passada a mão ou a toalha, ainda não conseguiria olhar-se nitidamente. Parou por um instante, de toalha branca nas mãos, gotas mornas escorriam pelo corpo magro e branco e seus curtos cabelos pretos escorriam até a testa. Secou o rosto. Parou novamente, como que se cada movimento seu fizesse barulho: queria ouvir atentamente, já que teve a impressão de ouvir sua mãe chamá-lo. Pensou que talvez fosse ela advertindo para que desligasse o chuveiro, já que ele tinha o costume de se demorar no banho, ou talvez ainda, para que ele enxugasse o banheiro – ter que torcer o pano frio depois de um banho quente dava muita preguiça, ainda mais em tardes frias.
Esperou por alguns segundos e não ouvir seu nome. Começou então a se enxugar. Colocou a tolha na cabeça e tentou secar, o máximo, o cabelo, depois passou a tolha nos braços, peito e barriga. Agachou-se e secou parcialmente suas pernas. Passou a toalha para trás e esfregou as costas em um movimento de vai e vem – para esquerda depois para a direita. Colocou uma camiseta branca e após isso, passou a toalha na virilha – sempre teve o costume de secar bem a região porque lembrava-se do que o pai havia tido sobre micoses e coceiras devido a umidade na região. Aproveitou o momento para verificar e admirar os possíveis novos e os já crescidos pêlos. Colocou uma cueca azul bebê e, logo em seguida, uma bermuda preta com detalhes brancos.
Após entrar em seu quarto cujas paredes eram brancas e algumas emboloradas próximo ao teto, sentou em sua cama onde estavam uma calça jeans, uma camiseta preta com detalhes brilhosos, uma blusa vermelha de marca cara e um boné preto com tiras verdes – roupas que usaria mais tarde na festa de aniversário de um de seus amigos. Tudo estendido como se as roupas estivessem sendo usadas naquele momento por alguém deitado no coxão. Secou os pés e o chinelo com a toalha. Foi até o espelho ao lado esquerdo do quarto, próximo ao guarda-roupa carvalho santorini, e penteou os cabelos, passou desodorante e se perfumou.
Foi quando escutou sua mãe chamá-lo pelo nome. Percebeu pelo tom de voz, que ela já estava um pouco irritada. Talvez, por chamá-lo várias vezes. Pegou a toalha molhada sobre a cama e saiu pelo corredor, no andar de cima da casa. Desceu as escadas quase correndo, não porque tinha pressa, mas porque quase sempre o fazia daquele modo.
Quando chegou à cozinha, sua mãe estava em frente ao fogão de seis bocas, com uma grande panela na boca de trás: estava fazendo doce de abóbora. Sobre a mesa, no centro da cozinha, estava o bule de café e o coador de pano suspenso na boca de uma caneca onde fora fervida a água. Sua mãe apenas olhou para trás, segurando uma colher de pau, quando viu o filho entrar na cozinha segurando a toalha.
_ Ah, você estava tomando banho. Por isso não escutou eu te chamar.
_ A senhora precisa de alguma coisa?
_ Pega dois reais na minha bolsinha, dentro da gaveta, e vai comprar pão.
_ Quantos?
_ Pega só seis pãezinhos de sal. Se você vir que o pão é velho, pega o de leite, mas só se for de hoje viu?
_ Sim senhora.
Após pendurar sua toalha no varal, que ficava na parte coberta dos fundos da casa, ele trocou de chinelo e saiu. Parecia não querer muito ir à padaria, mas sabia que arrumaria problemas se negasse ao pedido da mãe.
Desceu a rua onde havia alguns carros estacionados e quando chegou ao final dela, que dava para a avenida principal de seu bairro, virou à direita, na esquina onde havia um muro conservado de uma igreja. Caminhou até a próxima esquina, onde a padaria ficava de frente para. Adentrou no estabelecimento e aquele cheiro quente, um tanto adocicado entrou em suas narinas. Gostava daquele cheiro.
Na padaria, estava uma senhora, muito chegada de sua mãe, que o cumprimentou com um sorriso e perguntou pela figura materna e após ter a resposta dele, de que ela estava em casa fazendo doce de abóbora, disse que passaria lá mais tarde.
Ele pediu o pão francês e saiu da padaria carregando um médio saco de papel marrom escuro. Voltava pelo mesmo caminho por onde veio. Antes de chegar à esquina na qual viraria à esquerda e subiria a rua de casa, encontrou uma amiga de escola. Pararam e conversaram cerca de cinco minutos. Despediram-se com sorrisos e piadas que só eles entenderiam. Ele seguiu até a esquina, virou e subiu.

***

Vinte minutos depois, ele ainda não havia chegado em casa e sua mãe já dera falta dele. Ela estava com a filha mais velha e com ela brincou sobre o atraso do filho dizendo que ele fora fazer o pão e depois comprá-lo. Após ter terminado de cozer o doce, pediu à filha para que o experimentasse e dissesse se haveria necessidade de mais açúcar.
Trinta minutos depois e ele ainda não chegou. Ela, aquela senhora com a testa um pouco borbulhada de suor devido ao calor das panelas grandes sobre o fogão, olhou angustiada para o relógio retangular com uma imagem da bíblia por dentro de um vidro, e seu peito encheu-se mais de vazio e frio. Retirou seu avental branco com manjas amareladas deixadas pela abóbora e foi até o portão de sua casa. Olhou em sentido à avenida, lá em baixo, na esperança de ver seu filho subir a rua. Ele não vinha. No céu, restavam poucos vestígios rosa alaranjados deixados pelo sol. Voltou para dentro de casa e após virar o botão, sobre a beira do fogão, apagando o fogo, foi até o quarto do filho.
Passou pelo banheiro e notou que estava molhado. Disse, em voz alta, que ele nem teve coragem de passar o pano no chão. Sua filha estava no quarto dela, de porta aberta, parecia procurar alguma roupa dentro de uma gaveta da cômoda branca.
No quarto do filho, encontrou sua roupa de sair sobre a cama, a mochila da escola no chão e algumas apostilas coloridas espalhadas sobre ela e sobre as apostilas, um estojo branco. Ela (a mãe dele) estava à procura do celular do filho e jurou que chamaria sua atenção, quando ele chegasse, por não ter levado o aparelho com ele e já sabia também qual seria a resposta do filho, já que ela mesma o proibiu de ficar com o celular todo o tempo, devido reclamações de seus professores da escola.
Mais cinco minutos se passaram, e a cada minuto que completava seu clico, a angústia aumentava dando lugar à agonia. Passou a mão pelos cabelos, talvez quisesse arrumar alguns fios que estivessem fora de seus lugares, e foi até a padaria em busca de seu filho. Provavelmente o padeiro teve problema com a fornalha ou com a massa do pão. Era nítido que ela estava à beira do desespero e qualquer um seria capaz de perceber, pelo seu semblante, que ela estava em busca de alguém. A padaria estava vazia, estavam apenas as duas atendentes por detrás do balcão próximas aos bolos e aos pães e um rapaz que retirava de cima do outro balcão – no bar – duas garrafas de cervejas vazias, três copos sujos e colocava estes dentro da cuba de pequena pia de alumínio.
Uma das atendentes conhecia a família e era amiga da filha mais velha daquela senhora, que ali em pé, desesperada, foi informada da presença do filho momentos antes naquele estabelecimento.
_ Ele comprou pão francês e saiu. – Contou a atendente.
_ Ele estava com alguém?
_ Não. Ele estava sozinho, inclusive, a Fátima também o cumprimentou e disse que passaria na sua casa depois. Mas ela ficou aqui ainda por uns cinco minutos.
_ E você sabe dizer para que lado ele foi? – Perguntou a mãe desesperada.
_ Ele saiu e seguiu reto. Mas fica calma, ele deve estar na casa de alguém, algum amigo da escola.
A esperança agora estendia seus braços solúveis em direção à casa da vizinha Fátima e foi para lá que a mãe foi. Seu coração estava apertado e batia cada vez mais.
Bateu palmas para chamar alguém e, ao mesmo tempo, gritou pelo nome da vizinha. Ela veio apressada após perceber a voz eufórica daquela senhora sem rumo que nem esperou o portão ser aberto para perguntar pelo filho. Fátima disse que o viu na padaria e que logo em seguida ele deixou e estabelecimento e seguiu em direção à igreja.
Já estava escurecendo e as lágrimas começavam a escorrer pela sua face. De volta em casa, aquela senhora encontrou o marido inquieto querendo saber o que realmente aconteceu. Ela não era capaz de dizer exatamente o que houve, apenas afirmava, em meio às lagrimas, que o filho sumiu.
Foi então que a filha mais velha começou a ligar para alguns amigos do irmão, mas ninguém o tinha visto.
O marido foi tomar banho e a confusão apossou-se daquela casa. Uma verdadeira confusão de idéias e sentimentos começou a deslocar todas as coisas de seus lugares colocando-os de ponta cabeça no teto ou na rua, onde a esperança acompanhada de um pouco de imaginação, tentava percorrer todas as direções possíveis em procura dele.
Enquanto o marido tomava banho para talvez pensar melhor, aquela senhora colocou uma das cadeiras da cozinha no quintal e sentou. Esfregava, com a mão direita, o peito como se estivesse sentindo dor. Chorava agora, mas um choro que parecia não querer sair. Sua filha observa aflita e sem saber o que fazer enquanto sua mãe perguntava para onde aquele menino teria ido, com quem e por qual motivo. Perguntava à filha por onde começariam a procurá-lo. Minutos depois, ela colocou a cadeira próxima ao portão e de tempo em tempo, ela saia na calçada com a esperança de vê-lo subindo a rua.
Desespero, choro, angústia, medo, dúvida e esperança. Tudo misturado dentro do caos. Naquela noite, ninguém chegou a jantar e nem a dormir. No dia seguinte, foram à delegacia e após breves investigações, chegaram à amiga que havia falado com ele momentos antes dele virar a esquina e desaparecer, e mais uma vez, nada de fato foi descoberto.
Ninguém viu nada de estranho naquele dia, e ninguém viu se ele foi colocado ou se entrou de vontade própria em algum veículo.
A comida não tem mais gosto, as noites parecem intermináveis e a saudade é banhada pela dúvida de tudo. Todos se questionam como é capaz alguém desaparecer sem dar nenhuma pista, sem deixar qualquer vestígio, como se uma fenda fosse aberta sob os pés e engolisse a pessoa.
Exatamente hoje, faz três anos que Jefferssonn da Silva Oliveira* desapareceu. Hoje, teria treze anos. Vestia uma camiseta branca e bermuda preta com detalhes brancos. Desapareceu depois de ir à padaria próxima de casa. [imagem] Quem o vir ou tiver qualquer notícia que seja, por favor, ligue para [número telefônico] ou disque para a polícia.

*nome fictício.

SOUZA, Samir S. O mundo do meio (ou de olhos fechado): contos / Samir S. Souza. - pag. 118 - São Paulo 2012.