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30 julho 2017

SUÍCIDIO

imagem retirada do google

SUICÍDIO

Nesta hora, escondida do minha marido, eu não sei quem sou – não mais. Não sei se sou uma mulher, uma garota ou uma galinha. Acho que estou mais para galinha pelo fato de estar no meu computador, escondida, escrevendo essa pequena história de uma mulher cujo esposo, se acordar e a encontrar no computador, desconfiará de adultero e causará uma grande desavença – como já aconteceu algumas vezes.

Uma galinha tem sentimentos além do medo e dos sustos constantes? Pois se tiver, então não sou exatamente uma galinha. Mas o que sou? Muitos que se suicidam, o fizeram por acharem que não se encaixavam neste mundo. Eu acho que me perdi. Acho também que sei o caminho para me encontrar, mas, nesta vida, precisamos ter coragem e eu sou uma galinha, ou me tornei em uma.

Costumava escrever. Escrevia muito e sobre várias coisas; tudo o que me afligia, tudo o que me indignava. Porém, depois do meu casamento, deixei de expelir o que em mim doía. A proibição de ler até tarde da noite, de escrever de madrugada ou a qualquer horário – enquanto ele estivesse – apesar de causar cólera em mim, escrevi muito raramente. Eu podia ler, eu podia escrever quando ele não estava em casa, tinha que controlar meus pensamentos e inspiração para que não houvesse brigas – porque a galinha tinha que dedicar o seu tempo. Não bastava cozinhar, lavar e outras coisas.

Meu primeiro suicídio foi matar a parte de mim – pessoa – que escrevia e lia para refletir e enxergar o mundo com mais poesia apesar da dor. Morri um pouco a cada dia nos quais eu “tinha” que escutar reclamações do tipo: o trabalho; a comida não está bonita; o frango não está do jeito que ele gosta; a roupa não está tão cheirosa; a casa não está tão limpa; estou indo muito à casa da minha mãe; não estou dando atenção; não estou trepando com a freqüência desejada e muitas outras coisas;

Meu suicídio aconteceu várias vezes, quando a pessoa em mim fugia e dava lugar à galinha, que apesar de cacarejar um ‘não’, tinha que cumprir com sua "obrigação". Tantos ‘nãos’ que não foram respeitados. Fui cobrada pelo marido sobre a falta de carinho, mas aprendi que carinho é basicamente estímulos sexuais que precisam terminar em orgasmos clássicos. Desde quando galinha tem orgasmos?

Fico me perguntando quantos maridos e esposas se tornam galinhas. Quantos suicídios são cometidos...

Começo a temer que a galinha em mim também esteja fugindo. E o que serei depois disso? O que ficará no lugar? Hoje a pessoa em mim está um pouco forte, afinal estou escrevendo (é que meu marido não está em casa).

Meu suicídio acontece em vários dias. Há dias em que é menos, em outros é muito. E não depende de mais ninguém além de mim, para que a galinha saia da lama e volte para qualquer lugar e a pessoa em mim reviva, veja, observe, viva, ligue o computador a qualquer hora, escreva sem receios, que seja e esteja.

Xô galinha, xô!

Acho que ela ainda está aqui... (precisos desligar, meu marido está chegando)



Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 30/07/2017
Código do texto: T6068881

15 setembro 2016

CANÇÃO DE NINAR

imagem google

O asfalto brilhava sob as luzes dos carros e das luzes alaranjadas dos postes. O dia ainda estava claro, mas o céu era de um cinza escuro que há dias chorava sem dizer o motivo. O vento era gelado e, por alguns instantes, a garoa encorpava e tornava-se chuva leve... Era o choro mais doloroso, daqueles que não se pode mais segurar, mas que dura pouco e depois volta ao choro contido.

Vermelho. O carro estava parado e ele passou a mão na cabeça e depois na garganta que doía. Já estava próximo de casa e paradoxalmente queria chegar o quanto antes e, no entanto, virar a primeira direita e sumir no mundo. Verde. Seguiu caminho.

De dentro do carro, via as luzes acessas da varanda. Estacionou, saiu do veículo e subiu apressadamente os três molhados degraus de madeira pintados de branco que o levava até a varanda pintada de um verde muito claro. Não percebia mais chuva, nem cor e nem frio. Teve uma vontade enorme de chorar, mas segurou. Os seus dias têm sido muito pesados depois que sua mãe – Dona Nina – ficou enferma de cama devido a uma infecção. Jamais aceitara colocá-la em uma casa de repouso e há pouco tempo, dividia-se entre a tarefa de cuidá-la e trabalhar.

Uma jovem moça veio recebê-lo na porta, seus olhos estavam lacrimejados. Ele não perguntou nada, sua garganta doeu mais e sem poder falar nada entrou apressado. O ar tinha um cheiro específico de medicação. Foi em direção ao um quarto que ficava logo ao lado do hall de entrada. Sua mãe estava acordada, deitada sobre a cama, os cabelos brancos ondulados soltos, os lençóis brancos com detalhes azuis bordados por ela mesma quando ainda tinha saúde. Mal conseguia mexer a cabeça, mas fez o que podia e deu um pequeno sorriso ao ver o filho, mas logo seu rosto foi tomado de uma dor e algumas tosses. No quarto, também estavam o médico que fora chamado e que guardava uma seringa que havia acabado de usar para aplicar morfina e sua irmã que chorava e segurava um lenço azul sobre a boca. O médico fez um gesto para ele e ambos saíram do cômodo.

No hall de entrada, havia algumas pessoas – eram netas, sobrinhas, primos e primas – todos tinham os olhos vermelhos e ele nem as tinha notado a presença quando entrou. Sua vontade foi de explodir em choro, mas segurou para não desesperar os outros que apesar das lágrimas, ele sabia que estavam sendo fortes com toda a força que eles possuíam. O médico disse, em meio ao cochicho, que a situação de sua mãe era muito delicada e que muito provavelmente ela não acordaria amanhã.

Uma dor, maior que aquela que fincara seu coração nos últimos dias, acertou seu ser que, naquele momento, também se despedia de uma parte de si. Seus olhos inundaram-se e o médico, sem força para enfrentar aqueles olhos afogados em dor, abaixou a cabeça.

Tirou a blusa, olhou para todos que ali estavam e voltou para o quarto onde estava sua mãe. Foi seguido pelo médico e pela sua esposa.

Sua irmã ainda estava em pé em frente à cama. Ele agachou-se perto da cabeça da mãe e encostou-se na mesinha sobre onde havia um abajur que ele ganhara dela quando ele ainda tinha sete anos... Ela perguntou, com uma voz muito baixa, se ele estava com fome e se queria café. Ele sorriu e disse que estava tudo bem – sua voz saiu um pouco tremula e embargada devido à dor do choro contido.

Ele sabia que sua mãe, cujo amor pelos filhos era maior do que qualquer coisa, preocupar-se-ia com eles até o último instante. Lembrou-se das vezes que ele e os irmãos sentavam-se no chão para comer, porém seu pai e sua mãe não, e quando a estes era perguntado por que não comeriam, o motivo era que não estavam com fome naquele momento... Quando cresceu, aprendeu que eles não comiam porque não tinham o suficiente. Ele aproximou-se do ouvido mãe:

_ Estamos bem, de verdade. Está tudo certo e tudo – sua voz embargou – vai ficar bem. Eu tomo conta de tudo.

Uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado de sua mãe que olhava para o teto. Ele percebeu e a secou com o polegar e continuou:

_ Agora a senhora precisa descansar um pouco. Passou no jornal hoje, que amanhã vai fazer sol. Se fizer, eu levo a senhora até a varanda.

Ele abaixou a cabeça, segurou o choro e começou a cantarolar uma canção de ninar para sua mãe.

Boa noite meu anjo,
é hora de fechar os olhos e esquecer todas as preocupações.
 Você nunca deixará de estar comigo e a qualquer lugar que você for eu estarei com você.
Boa noite meu anjo,
 é hora de dormir e descansar o corpo e a alma.
Há tanto que eu deveria ter tido e não disse.
Mas amanhã, nos encontraremos, e em meio a um abraço apertado eu direi mil vezes ‘eu te amo’.
 Boa noite meu amor maior,
 é hora de sonhar. Um sonho de uma vida cheia de alegrias, rodeada de pessoas amadas.
Desculpe-me todas as vezes que, de alguma maneira, eu te magoei.
Boa noite meu anjo,
 é hora de dormir e se amanhã a senhora já tiver partido,
 que Deus nos guie e, em breve, te encontro do outro lado.
A senhora sempre será parte de mim..”

Um choro mais longo interrompeu a canção. Ele olhou para a irmã e em seguida mirou o rosto da mãe. Ela estava de olhos fechados, não havia expressão de dor e nem de tristeza. Ela dormia... Ele sabia o que aquilo significava. Segurou forte a mão daquela mulher que lhe dera a vida milhares de vezes, a beijou e sentiu o perfume de sua carne. Sua irmã se entregava à dor... Sua esposa estava ao seu lado e o abraçou depois que ele se levantou. Ele chorava, mas ainda era um choro contigo. Depois de abraçar sua esposa, ele deixou o quarto. Sem ver ninguém em seu frente, foi para a varanda e viu a cadeira onde costumava colocar sua mãe: o vazio apertou fortemente alguma coisa dentro do seu estômago. Foi então em direção à pequena estrada que dava para o portão... Não conseguia continuar forte.

Entregou-se ao choro. A garoa virou chuva, e a chuva virou tempestade... Seu choro era um grito de dor que impulsionava seu peito com força. Ajoelhado, na lama, coberto de dor, sem luz, sem sentido. Por que nascemos? Por que morremos? Por que essa dor é tão grande que corrói o interior de alguém que simplesmente ama? Ama com tudo o que tem e que pode. Desejou intensamente voltar ao passado para que pudesse ter a chance de ser uma pessoa melhor.

Uma voz doce, um pouco receosa misturada a um choro que não se entende o porquê, o despertou, por alguns segundos, de sua dor. Ele olhou e viu sua filha de cinco anos, molhada e com os olhos vermelhos. “Não chora papai, a vovó vai ficar bem... não vai?

Chorando, ele confirmou com a cabeça e a tomou em seus braços... Ela, naquele instante, era a coluna que o mantinha em pé... Sem saber o que falar, ele chorou, apenas chorou. O choro mais doloroso, mais difícil de chorar... E com dificuldade, olhou para a filha e disse que a amava. Amava-a muito e muito.


Samir S. Souza
Recanto das Letras 15/09/2016
Código do texto: T5761727 

22 março 2013

As Colunas, O Teto Azul e A Servente




AS COLUNAS, O TETO AZUL e A SERVENTE

As colunas chegaram...

Foram colocadas em um terreno pré-preparado. Preparado há tanto tempo que muitas coisas se perderam e outras apodreceram. Terreno infestado por insetos escondidos por entre os capins. Os capins aparecem e crescem sempre, e os insetos brotam de onde ainda não descobrimos e creio que nem teremos tempo para descobrir. Talvez seja melhor assim.

As colunas chegaram... Solitárias, cada qual escolheu um ponto onde se fixar. As colunas ficaram... Solitárias, cada qual escolheu uma outra para se olhar. As colunas ficaram e solitárias escolheram todas para somar.

Soma essa feita em um terreno pedregoso, lamacento e depósito de merda, muita merda. As colunas sujaram-se um pouco, o que é inevitável, mas suas estruturas não foram abaladas. As colunas foram trazidas para sustentar um teto azul com manchas brancas. Não se sabe se é dentro da parte azul ou da branca onde estão os livros mais significantes da Terra. Um teto abstrato com peso pressãomente concreto. As colunas estão de pé. Sustentando coisas que só elas podem saber.

A servente de pedreiro já estava à espera das colunas quando essas chegaram. Ela trazia um sorriso no rosto e suas mãos pequenas acenavam. Seus olhos diziam políticas que docemente perfuravam escudos. As colunas, como forma de segurança, fixaram alguns centímetros solo adentro. Alguns dizem que elas, fantasticamente, criariam raízes. E creio que todas já deram brotos.

No teto, que outrora se desbotava, foi passado giz de cera azul e com giz de gesso algumas manchas brancas também foram intensificadas. Creio que algumas das colunas pretendiam pintar poucas estrelas, estrelas que deixariam pingar laudas de poemas concretos, de gráficos de coisas abstratas positivamente, de desenhos aquarelas pintadas, simplesmente, pela vontade das colunas.

Foi então, que a servente de pedreiro que parecia não gostar muito do azul pôs em prática um plano. Será que são das manchas brancas de que ela não gosta? Talvez, a idéia das estrelas causasse-lhe medo. Enfim, o engenheiro, de sua redoma de vidro, mandou sugestões solúveis iguais a pó e ela, a servente, as transformou em plano.

Sem o engenheiro ou sem a servente, o teto continua sustentado. Mas e sem as colunas o que será do teto? Sem colunas, não há vão entre o chão e o céu. E para todos respirarmos é necessário haver o vão entre o chão e o céu.

Foi então que a servente teve a idéia de uma votação. Larvas que bebericam sobre as fezes foram convocadas, insetos foram trazidos para zumbirem. Todos votaram. Pelo o quê? Pela queda das colunas. Estas receberam a proposta de cederem porque um milagre estaria previsto. O céu azul de manchas brancas não cairia sobre suas cabeças e muitas estrelas surgiriam como pequenos botões de rosas. Justificativa? Deus estaria interessado naquele teto, talvez para fazer um pequeno quiosque de jardim onde passaria algumas horas lendo. O cair das colunas seria a única forma delas permanecerem sustentando aquele teto. Algumas colunas gostaram da idéia, outras nem tanto.

E os insetos e larvas votaram.

As colunas terão que cair. Cairão para então receberem a mão da servente que as ajudará a se colocarem onde estavam. Sem raiz e sem estrela de tinta. Apenas estrela de papel crepom. Colunas não criam raízes, pelo menos não deveriam.

As colunas chegaram, ficaram, botões de rosas surgiram de dentro do concreto e algumas grandes quantidades de merda foram removidas com vassouras sem cerdas. Serviço sujo feito pelas colunas.

Tudo o que é já parece ser o que era. Tudo o que foi virou fumaça de brasa recém apagada.

Será que já acabou? Acabou.


Samir S. Souza
Publicado no Recanto das letras em 22/03/2013
Código do texto: T4202880

07 março 2013

O Jovem que Não Precisava Trabalhar




O JOVEM QUE NÃO PRECISAVA TRABALHAR


Estavam no ônibus que ia para Ferraz. Subiram em Suzano após longos minutos de espera. Ela ia para o trabalho e aproveitava a viagem para deixar seu filho de aproximadamente sete anos no colégio. Um garoto diferente dos demais. Era ávido inocentemente e observador. Claro que tinha momentos iguais aos demais garotos de sua idade, momentos esses de bobices para sermos delicados com as palavras. Mas naquela manhã, ele estava atento.

Após passarem pela estação de Calmon Viana, na Avenida Brasil na altura do numero 650, próximo a passarela de pedestres, ao lado do ponto de ônibus, onde uma mulher negra desceu e outra gorda esperava seu ônibus, todos, que estavam nos últimos bancos daquele que ia para Ferraz, viram quando um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos, um pouco fora de si, gritava apontando para quem estava dentro o ônibus, que ele não precisava trabalhar.

Um grande tubo de metal torcido e parafusado cheio de anônimos de caras pálidas e amassadas, de bocas cheias de bocejos e olhos lacrimejados com pálpebras pesadas de sono e cansaço. Um tubo pintado para disfarçar metal que cortava ruas e avenidas margeadas de anônimos e alguns mortos vivos. Tubo que fazia curvas imprudentemente fazendo seus anônimos internos a quase se igualarem a gados e vacas. Antes que o motorista tirasse o pé do freio e avançasse, ela, a mãe do garoto esperto, após ver e ouvir aquele jovem gabar-se de que não precisava trabalhar, pensou consigo que era sorte dele.

Seu filho também o viu, já que estava sentado ao lado da janela, e automaticamente olhou para a mãe. Por alguns segundos ficaram calados, cada qual com seus pensamentos ou imaginações. Por fim, ele questionou:

_ Por que ele não precisa trabalhar?

Ela se riu e respondeu:

_ Talvez ele seja rico meu bem.

Ele fez cara redonda de quem tenta demonstrar entendimento, mas sem definitivamente entender e após quatro ou cinco segundos disse:

_ Se o papai fosse rico, ele não acordaria cedo. Ele mesmo disse.
_ Eu também não. Talvez, aquele moço nem tenha dormido ainda.
_ Ah bom. Mas por que a senhora e o papai têm que trabalhar e ele não?
_ Por que algumas pessoas têm mais dinheiro do que as outras.
_ E por quê?
_ Por que é assim mesmo. A vida, às vezes, é injusta.

Ele deixou transparecer aquela expressão que algumas pessoas demonstram, discretamente, quando dissemos algo que era melhor não termos dito e disse:

_ Injusta? Mas Deus não faz nada para que seja justa?
_ Ora meu amor, é claro que faz. – Ela disse meio desconcertada e um pouco arrependida por ter falado, na opinião dela mesma, demais.
_ Então porque a senhora e o papai não “para” de trabalhar?

Ela se riu mais uma vez e disse:

_ Por que não somos vagabundos. Temos que trabalhar para ter as coisas.
_ Então aquele homem é vagabundo?
_ Não sei. Pode ser que não.
_ Mas Deus não nos dá as coisas?
_ Dá, mas temos que lutar por elas, temos que trabalhar para merecer.

Ele virou o rosto para a janela e mirou o céu neblinado e após alguns segundos virou-se para sua mãe. Talvez ele tenha refletido um pouco se deveria continuar com aquela conversa ou não. E preferiu tirar sua última dúvida:

_ Se aquele homem não trabalha então ele não tem as coisas ne?
_ Algumas pessoas tem as coisas sem trabalharem muito ou sem mesmo trabalhar.
_ E isso não é injusto? Então Deus é injusto com a senhora e o papai.

Ela ficou um pouco chocada com tal afirmação e apressou-se de tentar concertar.

_ Cuidado menino! Não pode falar assim de Deus. Deus castiga!

Ele se encolheu e quando o ônibus parou ao lado da estação de Poá, levou a conversa para outro nível. Um nível filosófico, uma conversa chocante emergida da boca de uma criança. Ou um monstro pequeno?

_ Mãe...
_ Sim.
_ Se eu deixar de acreditar em Deus, deixa de existir o castigo?

Ela arregalou os olhos:

_ O quê? Que história é essa?
_ Se eu apagar Deus da minha mente ele não pode me castigar, não é?
_ Claro que não meu filho. Não tem como apagar Deus da nossa mente.
_ Por quê? A senhora não esqueceu o número de telefone da minha madrinha? Então.
_ Mas de Deus não se esquece menino! Deus é tudo!
_ Tudo? – E dessa vez, foi a vez dele arregalar os olhos.
_ Quem te falou essas coisas? Quem anda te ensinando essas coisas hein? Foi na escola?
_ Não. Ninguém me falou.
_ E da onde você tirou essas conversas?
_ Eu não sei. Só perguntei.
_ Você acredita em Deus não acredita?
_ Acredito... – Mas soou duvidoso ainda.
_ Então não tem com esquecer Deus. É impossível esquecer do que a gente acredita. Você entendeu?

Ele balançou a cabeça de modo que afirmava o entendimento.

E antes de levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse no próximo ponto, ela finalizou aquela conversa alegando não querer ouvir mais aquelas coisas. Ele limitou-se com um “está bem”.

 No sacolejo do ônibus, ela equilibrou-se entre sua bolsa, mochila do filho, segurar-se e segurar a mão dele e ainda passar por entre anônimos que costumam parar em frente à porta. Alguns anônimos necessitam desesperadamente de portas.

Desceram.

Ele ficou a olhar os pneus distanciarem e esqueceu, pelo menos naquele momento, do que pensara momentos antes e se entreteu com uma grande lesma sobre a calçada e, em pensamento, agradeceu a Deus por não ter nascido lesma. Sua mãe chamou sua atenção para andar logo, já que ela não tinha o dia todo. Ele correu para perto dela e seguiram para a escola.

Ele, não se sabe por que, olhou para trás como quem sente saudade de alguma coisa que ficou. E sempre fica.

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 07/03/2013
Código do texto: T4176740

26 fevereiro 2013

A Viagem



A VIAGEM


Verde. Carros vão e vem em alta velocidade. No chão, grandes retângulos brancos indicam o lugar certo e, ao lado, grandes quadrados contornados de laranja anunciam zona de conflito. Todas as cores desbotadas pelo atrito dos pneus com o solo e pelo tempo. A grande sombra do antigo Hospital e Maternidade debruça sobre a Marques Figueira enquanto o sol, radiante e amarelo ouro, parece esparramar-se no horizonte. Carros vão e vem. Caminhões fazem pequenos tremores. Ônibus freiam bruscamente devido à imprudência dos transportes alternativos.

Verde. Carros vão e vem. Amarelo. Todos em atenção. Vermelho.

Verde. Veículos viram para esquerda e direita saindo da Felício de Camargo. Sob o toldo da antiga entrada do hospital, espera um homem e uma mulher; ele com capas de volante e ela com balas e chocolates. Ambos vendem seus produtos no momento em que o semáforo está vermelho para os carros.

Dentro da sombra feita pelo prédio, nas calçadas, esperam ele, lá, e ela, cá, pelo momento em que verde pedestre libera passagem para que eles se encontrem. Ela, de vestido bonito e rosado, maquiagem clara e leve, cabelos presos e brincos discretos. Bonita e delicada. Ele, de calça jeans azul claro, camiseta branca com listras claras no tom cinza muito discretas. Bonito.

Ela trazia uma pequena bolsa de mão e um sorriso no rosto. Seus olhos não deixavam de mirar ele que trazia uma sacola de plástico branco e por onde se podia ver um embrulho de presente. Ela o esperava e ele ia sua direção. Olhos de ambos pareciam imãs e seus pensamentos deveriam ser o mesmo: que beleza! É tudo meu! Não vejo a hora de viajar, de conhecer a Chapada Diamantina com você! De viajar de ônibus ao seu lado e fazer as paradas para tomar um caldo de cana, comer uma pamonha e tirar algumas fotos. Cochilar no seu ombro até que cheguemos ao Vale do Capão onde sentiremos calor e estranharemos o clima e as casas simples de povo humilde. Será que poderemos sair à noite para tomar alguma coisa e ver o céu estrelado? Será que vai ter Lua? Será que nos desentenderemos enquanto estivermos lá? Quero levá-la na Cachoeira da Fumaça. Quero mostrá-lo a Sempre Viva. Vamos ter ótimos momentos juntos. Acho que lembrarei sempre desses dias.

Sinal amarelo. Um palio cinza virou a esquerda e se foi. Vermelho. Todos os carros estão parados. A figura do homem verde acendeu. Tudo parecia estar em completo silêncio. _ Que lábios bonitos ele tem. Ela pensou.

Um som agudo e estridente. Agudo e grave ao mesmo tempo. Grossamente encheu o espaço e quebrou o silêncio cristal. Ele já estava sobre a faixa quando um arrepio floresceu de sua espinha dorsal. Ela gritou e o enorme caminhão atingiu-o em cheio arrastando seu corpo por metros.

Tudo, por alguns segundos, pareceu voltar ao silêncio. Parecia não haver qualquer buzina, qualquer som humano ou ronco de motor. Por alguns segundos, a figura verde sinalizando passagem ao pedestre ficou acesa eternamente e o som do atrito da carne contra o asfalto, por alguns segundos, ficou imperceptível. Ela, em pé, de mãos vazias, de peito cheio, de olhos afogados, de cabelos ao vento que pareciam desesperar-se. Não sabia exatamente o que fazer. Correr até ele? Gritar? Quem irá me ajudar? Mãe? Mãe cadê você? Mãe!!! O que eu vou falar? Por que eu não marquei o encontro na praça? É tudo culpa minha! Eu sou uma burra mesmo! Mãe? Mãe? Mãe! Pai!

As lágrimas que afogavam sua visão começaram a escorrer pela sua face quando sirenes, gradativamente, começaram a surgir e ela parecia, ali, parada, em choque, querer fazer algo, mas seus músculos a abandonaram sozinha com a dor.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 26/02/2013
Código do texto: T4161440

15 janeiro 2013

Ausência Presente



 imagem google

AUSÊNCIA PRESENTE


O vapor da água quente que caía do chuveiro embaçou todos os vidros. Era por volta das cinco e pouco da tarde. O sol já abria seus braços dourados próximo ao horizonte enquanto a lua pálida e quase transparente já se posicionava no horizonte oposto. Uma típica tarde gelada de outono. Passou a mão no espelho porque o embaçado incomodava-o, mesmo ele sabendo que nem depois de passada a mão ou a toalha, ainda não conseguiria olhar-se nitidamente. Parou por um instante, de toalha branca nas mãos, gotas mornas escorriam pelo corpo magro e branco e seus curtos cabelos pretos escorriam até a testa. Secou o rosto. Parou novamente, como que se cada movimento seu fizesse barulho: queria ouvir atentamente, já que teve a impressão de ouvir sua mãe chamá-lo. Pensou que talvez fosse ela advertindo para que desligasse o chuveiro, já que ele tinha o costume de se demorar no banho, ou talvez ainda, para que ele enxugasse o banheiro – ter que torcer o pano frio depois de um banho quente dava muita preguiça, ainda mais em tardes frias.
Esperou por alguns segundos e não ouvir seu nome. Começou então a se enxugar. Colocou a tolha na cabeça e tentou secar, o máximo, o cabelo, depois passou a tolha nos braços, peito e barriga. Agachou-se e secou parcialmente suas pernas. Passou a toalha para trás e esfregou as costas em um movimento de vai e vem – para esquerda depois para a direita. Colocou uma camiseta branca e após isso, passou a toalha na virilha – sempre teve o costume de secar bem a região porque lembrava-se do que o pai havia tido sobre micoses e coceiras devido a umidade na região. Aproveitou o momento para verificar e admirar os possíveis novos e os já crescidos pêlos. Colocou uma cueca azul bebê e, logo em seguida, uma bermuda preta com detalhes brancos.
Após entrar em seu quarto cujas paredes eram brancas e algumas emboloradas próximo ao teto, sentou em sua cama onde estavam uma calça jeans, uma camiseta preta com detalhes brilhosos, uma blusa vermelha de marca cara e um boné preto com tiras verdes – roupas que usaria mais tarde na festa de aniversário de um de seus amigos. Tudo estendido como se as roupas estivessem sendo usadas naquele momento por alguém deitado no coxão. Secou os pés e o chinelo com a toalha. Foi até o espelho ao lado esquerdo do quarto, próximo ao guarda-roupa carvalho santorini, e penteou os cabelos, passou desodorante e se perfumou.
Foi quando escutou sua mãe chamá-lo pelo nome. Percebeu pelo tom de voz, que ela já estava um pouco irritada. Talvez, por chamá-lo várias vezes. Pegou a toalha molhada sobre a cama e saiu pelo corredor, no andar de cima da casa. Desceu as escadas quase correndo, não porque tinha pressa, mas porque quase sempre o fazia daquele modo.
Quando chegou à cozinha, sua mãe estava em frente ao fogão de seis bocas, com uma grande panela na boca de trás: estava fazendo doce de abóbora. Sobre a mesa, no centro da cozinha, estava o bule de café e o coador de pano suspenso na boca de uma caneca onde fora fervida a água. Sua mãe apenas olhou para trás, segurando uma colher de pau, quando viu o filho entrar na cozinha segurando a toalha.
_ Ah, você estava tomando banho. Por isso não escutou eu te chamar.
_ A senhora precisa de alguma coisa?
_ Pega dois reais na minha bolsinha, dentro da gaveta, e vai comprar pão.
_ Quantos?
_ Pega só seis pãezinhos de sal. Se você vir que o pão é velho, pega o de leite, mas só se for de hoje viu?
_ Sim senhora.
Após pendurar sua toalha no varal, que ficava na parte coberta dos fundos da casa, ele trocou de chinelo e saiu. Parecia não querer muito ir à padaria, mas sabia que arrumaria problemas se negasse ao pedido da mãe.
Desceu a rua onde havia alguns carros estacionados e quando chegou ao final dela, que dava para a avenida principal de seu bairro, virou à direita, na esquina onde havia um muro conservado de uma igreja. Caminhou até a próxima esquina, onde a padaria ficava de frente para. Adentrou no estabelecimento e aquele cheiro quente, um tanto adocicado entrou em suas narinas. Gostava daquele cheiro.
Na padaria, estava uma senhora, muito chegada de sua mãe, que o cumprimentou com um sorriso e perguntou pela figura materna e após ter a resposta dele, de que ela estava em casa fazendo doce de abóbora, disse que passaria lá mais tarde.
Ele pediu o pão francês e saiu da padaria carregando um médio saco de papel marrom escuro. Voltava pelo mesmo caminho por onde veio. Antes de chegar à esquina na qual viraria à esquerda e subiria a rua de casa, encontrou uma amiga de escola. Pararam e conversaram cerca de cinco minutos. Despediram-se com sorrisos e piadas que só eles entenderiam. Ele seguiu até a esquina, virou e subiu.

***

Vinte minutos depois, ele ainda não havia chegado em casa e sua mãe já dera falta dele. Ela estava com a filha mais velha e com ela brincou sobre o atraso do filho dizendo que ele fora fazer o pão e depois comprá-lo. Após ter terminado de cozer o doce, pediu à filha para que o experimentasse e dissesse se haveria necessidade de mais açúcar.
Trinta minutos depois e ele ainda não chegou. Ela, aquela senhora com a testa um pouco borbulhada de suor devido ao calor das panelas grandes sobre o fogão, olhou angustiada para o relógio retangular com uma imagem da bíblia por dentro de um vidro, e seu peito encheu-se mais de vazio e frio. Retirou seu avental branco com manjas amareladas deixadas pela abóbora e foi até o portão de sua casa. Olhou em sentido à avenida, lá em baixo, na esperança de ver seu filho subir a rua. Ele não vinha. No céu, restavam poucos vestígios rosa alaranjados deixados pelo sol. Voltou para dentro de casa e após virar o botão, sobre a beira do fogão, apagando o fogo, foi até o quarto do filho.
Passou pelo banheiro e notou que estava molhado. Disse, em voz alta, que ele nem teve coragem de passar o pano no chão. Sua filha estava no quarto dela, de porta aberta, parecia procurar alguma roupa dentro de uma gaveta da cômoda branca.
No quarto do filho, encontrou sua roupa de sair sobre a cama, a mochila da escola no chão e algumas apostilas coloridas espalhadas sobre ela e sobre as apostilas, um estojo branco. Ela (a mãe dele) estava à procura do celular do filho e jurou que chamaria sua atenção, quando ele chegasse, por não ter levado o aparelho com ele e já sabia também qual seria a resposta do filho, já que ela mesma o proibiu de ficar com o celular todo o tempo, devido reclamações de seus professores da escola.
Mais cinco minutos se passaram, e a cada minuto que completava seu clico, a angústia aumentava dando lugar à agonia. Passou a mão pelos cabelos, talvez quisesse arrumar alguns fios que estivessem fora de seus lugares, e foi até a padaria em busca de seu filho. Provavelmente o padeiro teve problema com a fornalha ou com a massa do pão. Era nítido que ela estava à beira do desespero e qualquer um seria capaz de perceber, pelo seu semblante, que ela estava em busca de alguém. A padaria estava vazia, estavam apenas as duas atendentes por detrás do balcão próximas aos bolos e aos pães e um rapaz que retirava de cima do outro balcão – no bar – duas garrafas de cervejas vazias, três copos sujos e colocava estes dentro da cuba de pequena pia de alumínio.
Uma das atendentes conhecia a família e era amiga da filha mais velha daquela senhora, que ali em pé, desesperada, foi informada da presença do filho momentos antes naquele estabelecimento.
_ Ele comprou pão francês e saiu. – Contou a atendente.
_ Ele estava com alguém?
_ Não. Ele estava sozinho, inclusive, a Fátima também o cumprimentou e disse que passaria na sua casa depois. Mas ela ficou aqui ainda por uns cinco minutos.
_ E você sabe dizer para que lado ele foi? – Perguntou a mãe desesperada.
_ Ele saiu e seguiu reto. Mas fica calma, ele deve estar na casa de alguém, algum amigo da escola.
A esperança agora estendia seus braços solúveis em direção à casa da vizinha Fátima e foi para lá que a mãe foi. Seu coração estava apertado e batia cada vez mais.
Bateu palmas para chamar alguém e, ao mesmo tempo, gritou pelo nome da vizinha. Ela veio apressada após perceber a voz eufórica daquela senhora sem rumo que nem esperou o portão ser aberto para perguntar pelo filho. Fátima disse que o viu na padaria e que logo em seguida ele deixou e estabelecimento e seguiu em direção à igreja.
Já estava escurecendo e as lágrimas começavam a escorrer pela sua face. De volta em casa, aquela senhora encontrou o marido inquieto querendo saber o que realmente aconteceu. Ela não era capaz de dizer exatamente o que houve, apenas afirmava, em meio às lagrimas, que o filho sumiu.
Foi então que a filha mais velha começou a ligar para alguns amigos do irmão, mas ninguém o tinha visto.
O marido foi tomar banho e a confusão apossou-se daquela casa. Uma verdadeira confusão de idéias e sentimentos começou a deslocar todas as coisas de seus lugares colocando-os de ponta cabeça no teto ou na rua, onde a esperança acompanhada de um pouco de imaginação, tentava percorrer todas as direções possíveis em procura dele.
Enquanto o marido tomava banho para talvez pensar melhor, aquela senhora colocou uma das cadeiras da cozinha no quintal e sentou. Esfregava, com a mão direita, o peito como se estivesse sentindo dor. Chorava agora, mas um choro que parecia não querer sair. Sua filha observa aflita e sem saber o que fazer enquanto sua mãe perguntava para onde aquele menino teria ido, com quem e por qual motivo. Perguntava à filha por onde começariam a procurá-lo. Minutos depois, ela colocou a cadeira próxima ao portão e de tempo em tempo, ela saia na calçada com a esperança de vê-lo subindo a rua.
Desespero, choro, angústia, medo, dúvida e esperança. Tudo misturado dentro do caos. Naquela noite, ninguém chegou a jantar e nem a dormir. No dia seguinte, foram à delegacia e após breves investigações, chegaram à amiga que havia falado com ele momentos antes dele virar a esquina e desaparecer, e mais uma vez, nada de fato foi descoberto.
Ninguém viu nada de estranho naquele dia, e ninguém viu se ele foi colocado ou se entrou de vontade própria em algum veículo.
A comida não tem mais gosto, as noites parecem intermináveis e a saudade é banhada pela dúvida de tudo. Todos se questionam como é capaz alguém desaparecer sem dar nenhuma pista, sem deixar qualquer vestígio, como se uma fenda fosse aberta sob os pés e engolisse a pessoa.
Exatamente hoje, faz três anos que Jefferssonn da Silva Oliveira* desapareceu. Hoje, teria treze anos. Vestia uma camiseta branca e bermuda preta com detalhes brancos. Desapareceu depois de ir à padaria próxima de casa. [imagem] Quem o vir ou tiver qualquer notícia que seja, por favor, ligue para [número telefônico] ou disque para a polícia.

*nome fictício.

SOUZA, Samir S. O mundo do meio (ou de olhos fechado): contos / Samir S. Souza. - pag. 118 - São Paulo 2012.

04 setembro 2012

Domingo de Maria

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DOMINGO DE MARIA


Seus olhos não piscam. Estão inundados na imensidão azul do céu. Sua consciência, subestimada pelos os que a cercam, parece estar perdida para além do universo onde nascem e morrem as estrelas. Poucas nuvens passam lentamente, para quem sabe, pelo quadrado da janela, cumprimentar aquela senhora deitada em sua cama.
Naquele instante, próximo dali, passou uma ambulância com sua sirene aos gritos e aquele som agudo desesperado causou certo desconforto naquela senhora que fechou os olhos e uma expressão sutil de dor tomou conta de sua face até que não se pôde mais ouvir as sirenes e ela voltou a olhar em direção ao céu.

Era domingo e escutavam-se pessoas na rua, crianças rindo e gritando – talvez estivessem correndo. Alguém gritou “duas alfaces e alguns tomates”, era voz de mulher. Uma leve brisa adentrou o quarto e um leve cheiro de frango assado alcançou a Dona Maria que chegou a acreditar que estava próximo da hora do almoço. Um frágil sorriso surgiu dando um pouco de cor ao seu semblante sofrido e triste. Era como se ela fosse levada ao passado e, de olhos fechados, recordava-se dos domingos em que ela mesma preparava o almoço para a família.

Lembranças foram quebradas com o rouco barulho de uma tosse seca – era Dona Rute que, com dificuldade, saia do quarto para ir até o pátio tomar um pouco de sol com os demais.

De olhos abertos – castanhos claros – tudo o que estava fora daquela janela parecia apenas sonho, nada era real. Uma lágrima escorreu. A solidão é dolorosa e vem acompanhada de fantasmas. Desde que fora internada pela sua filha caçula, há seis meses, Dona Maria não recebeu mais visitas. No primeiro mês, ainda conseguia caminhar, mas logo adoeceu e a ferida da sua perna, que passa a maior parte do tempo inchada, piorou. Por ficar muito tempo deitada e por não fazerem sua higienização adequadamente, ela está com outra ferida.

Naquele instante, Dona Maria lembrou-se da filha caçula, do filho mais velho que se mudara de cidade com a esposa e do marido que morrera de cirrose há alguns anos. De todas as lembranças e saudades, uma era mais dolorosa: a da filha. Dona Maria gostaria de entender o porquê de algumas coisas. Lembrou-se do dia em que queimou o braço com o óleo quente de uma das panelas que virara contra ela – estava preparando a janta de sua filha que logo chegaria cansada do serviço. A moça fora pra cima da mãe com raiva daquele descuido. Chamou a senhora de burra e imprestável. Dizia que chegava cansada do serviço e ainda tinha que socorrer velha teimosa. Dona Maria, por sua vez, queria dizer que estava apenas fazendo um arroz fresco, mas raramente lhe era permitido que terminasse suas frases. Qualquer um viria que ela estava em carne viva.

Aquela senhora chorava calada e apesar de tudo, gostaria que sua filha fosse vê-la. Quem sabe levá-la só para um rápido passeio pela avenida ou um pequeno sorvete. Imaginou que ela também estaria sentindo sua falta e pediu a Deus para que não a deixasse tão ocupada para que pudesse fazê-la uma visita de domingo. Logo, outra lembrança tomou conta:

Certo dia, já de noite, quando estavam as duas sentadas no sofá assistindo à novela, Dona Maria – que passara o dia inteiro sem falar com ninguém – quis saber sobre a filha que sem responder qualquer coisa fez apenas um sonoro shiii para que sua mãe não falasse mais. Às vezes, é mais forte do que nós e quando menos esperamos, queremos compartilhar algo com quem amamos. E naquele momento, mais uma vez, a ela foi pedido silêncio. Esperou então para falar quando estivesse passando as propagandas:

_ Hoje não tinha pão e nem bolacha. Fiz só um pouquinho de café porque o pó está acabando. Você pode...

_ Cacete mãe! Não vê que eu estou vendo TV. Não! Não tenho dinheiro. Já te dei cinqüenta reais semana passada.

_ Não minha filha, eu não estou dizendo...

_ Cala a boca! Não posso nem assistir em paz. Já passo o dia inteiro fora de casa com várias pessoas falando no meu ouvido e agora tenho que aturar a senhora.

Naquela noite, Dona Maria terminou de ver a novela sozinha. Via a televisão embaçada por causa das lágrimas que queriam escorrer, mas que ela não deixava. E perguntou-se como é que sua filha poderia tratá-la assim se era ela, apesar de toda dificuldade, quem limpava a casa, lavava a roupa, passava o uniforme de serviço e fazia a comida.

Hoje, muitas coisas ainda passam pela cabeça de Dona Maria que, deitada em sua cama sozinha com seus fantasmas, continua esperando a hora de qualquer visita. Mesmo as pessoas muito fortes não conseguem manter a força todo o tempo e aquela solitária senhora virou sua cabeça em direção à parede da janela e começou a chorar. Silenciosamente, ela desabou. Segurava os soluços, e a dor que sentia parecia querer saltar-lhe pelos olhos. Levou sua mão enrugada, um pouco áspera e tremula ao rosto. Nestas horas, ninguém sabe dizer exatamente do que sente vergonha.

Engoliu o choro, tentou respirar fundo e olhou pela janela. Um pássaro, talvez preto, parecia grudado com alfinete na nuvem que parecia um tufo de algodão colado na pintura azul. O pássaro voou: Para onde será que estava indo? O que será que estava procurando? O que será que encontraria no caminho? Essas foram as perguntas que Dona Maria fez a si mesma e desejou ser um passarinho e logo depois, disse que estava velha demais para voar, tão velha que ninguém a queria.

Queria levantar, pegar uma vassoura e fazer uma pequena limpeza naquele quarto. Já nem percebia o cheiro daquele lugar. Sentiu dor ao tentar levantar-se e se envergonhou ao perceber que estava usando fraldas. Encostou as costas novamente no colchão e sua ferida doeu: parecia queimar. Ficava muito tempo deitada com dor e em uma única posição e isso cansava muito e Dona Maria desejou que algum daqueles jovens que aparecem sem avisar, entrasse por aquela porta para ler um livro ou jogar conversa fora.

Já era quase três horas da tarde quando começou a sentir algo estranho e um pouco de dificuldade para respirar. Em um dado momento, ficou sonolenta. Conversou com Deus – uma conversa particular. Foi quando Dona Maria recebeu em sua janela, a visita de um beija-flor: azul, verde e um leve tom alaranjado. Escutava-se o forte-bater-de-asas-sem-parar e o brilho das penas e a mistura de suas cores com os movimentos quase hipnotizaram aquela senhora que, por alguns minutos, esquecera-se do desconforto da fralda, da dor e da solidão. Aquele delicado ser serenou o dia de Dona Maria. Ela, por sua vez, cochilou sem perceber olhando contente e atentamente aos movimentos, formas e cores da pequena ave.

Muitas coisas nesta vida ficam sem explicações e talvez seja melhor que não as tenhamos. É provável que aquela senhora tornou-se passarinho, quem sabe um beija-flor. Sem despedidas, Dona Maria deixou sua casca velha sobre a cama, e provavelmente, aceitou companhia para seu vôo solitário.


Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 11/07/2012
Código do texto: T3772510



"Conto entregue no Centro de Educação e Cultura Francisco Carlos Moriconi em Suzano para o 8º Concurso Literário de Suzano. - Conto não premiado"

27 julho 2012

Os Namorados (Quando o Medo "Se Torna Realidade")

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OS NAMORADOS (QUANDO O MEDO “SE TORNA REALIDADE”)


Eles estavam em frente a casa dela, um casal de namorados que, atualmente, é menos comum de se verem parados nos portões das casas. Ele havia acabado chegar e ela notou que seu semblante estava enrijecido. Ela logo se antecipou no cumprimento como tentativa de deixá-lo mais calmo.

_ Oi amor. – Disse ela.

_ Amor o cacete. Sua vagabunda do caralho! Quem você pensa que eu sou? Em sua vadia? Eu te vi ontem abraçada com um carinha e logo depois entrou no carro dele. Estava indo pra onde sua filha da puta? Ia dar pra ele em alguma esquina é sua cadela? Você é tão filha da puta que nem se preocupou de sair com alguém longe daqui... – Ele dizia em meio a gritos de raiva.

_ Do que você está falando? Que carinha? Onde?

_ É tão cadela que se faz de santa. Vai me dizer que é mentira que você estava abraçada com um maluco moreno lá no estacionamento do supermercado lá embaixo? E que você ainda entrou no carro dele. É mentira minha? Você é uma vagabunda, uma porca imunda. Pra quantos mais você dá em sua cadela? Tava indo pra onde com ele? Ia dar o cuzinho igual você dá pra mim vadia filha da puta? E que carro é esse na garagem? Ah não acredito... é o mesmo carro de ontem. Cadê ele? Chama ele ai sua vagabunda.

Neste instante apareceu um rapaz moreno saído da porta de vidro que escondia o quintal da rua. Segundos depois, a janela da sala, logo ao lado, abriu-se e um senhor apareceu seguido de uma senhora. Ela chocada, ele com expressão de pedra.

O namorado deu um passo para frente como quem fosse passar por cima de quem estava em sua frente para enfrentar, aos socos, o rapaz moreno que vinha em direção ao portão. Ela deixava cair algumas lágrimas e estava vermelha. Algumas pessoas na rua permaneciam paradas observando o ocorrido enquanto o namorado continuava com as ofensas gritadas.

_ Melhor se acalmar rapaz. – Disse o senhor pela janela.

_ Sua filha não vale nada... – E foi interrompido com um estrondoso grito de sua namorada que parecia estar em chamas de ódio:

_ Já chega! Cala sua boca! Ele é meu irmão! Meu irmão! – Saiu correndo para dentro de casa e foi seguida pelo irmão. A janela também se fechou. E ele ficou parado, olhando para as grades de ferro do portão...

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 27/07/2012
Código do texto: T3800177

05 junho 2012

Merenda


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MERENDA

O sol ainda não dava seu sorriso quando ela acordou. Estava um tanto aflita e pensava o que daria para seus dois filhos, um de cinco e outro de dois anos, comerem no almoço. Pensava na hora do meio dia porque sabia que seus meninos já estavam acostumados a passar as manhãs em jejum, mesmo o mais novo, muitas vezes, reclamar de fome e o mais velho pedir um pão que fosse.
O marido saíra por volta das três e meia da manhã para o serviço. Trabalhava em porto de areia carregando caminhão grande para receber um salário mínimo. Bebia uma cachaça, isso era verdade, e talvez isso complicasse um pouco mais a situação financeira da família.
Ela lavava, no punho enquanto ouvia Eli Corrêa pelo radinho AM, uma camiseta verde já desbotada em um tanque improvisado. Camiseta essa do seu filho mais velho, quando este apareceu pela porta da cozinha pisando descalço no chão de terra batida esfregando um dos olhos e dizendo que estava com fome. Ela fingiu, com muita dor no peito, não ter ouvido nada e o mandou entrar e colocar um chinelo.
Era ainda dez horas da manhã quando ela pegou uma tapuer, uma que não fosse muito transparente, e disse para o mais velho que logo voltaria e que era para eles o irmão ficarem dentro de casa e não deixar ninguém estranho entrar. O mais novo ficou chorando com sua barriga saliente pela metade por uma blusinha cinza já de tamanho perdido enquanto o irmão tentava convencê-lo a parar com o choro.
Ela desceu a rua e foi até a escola pública, na entrada do bairro. Chegou de vagar, olhando para todos os lados como se esperasse que alguém a repreendesse por estar ali. Uma professora com avental azulado apareceu e a olhou e logo em seguida viu a vasilha em sua mão. A professora ia ao banheiro, no entanto, já sabendo do que se tratava e com um semblante de pena, perguntou àquela senhora de chinelo, pés sujos e parte da roupa molhada, se ela já fora atendia e abriu o portão para que ela pudesse entrar e ir até a cozinha.
Ela foi.
Naquele dia, havia dado aos alunos sopa de letrinhas e a merendeira encheu a tapuer até a boca. Fechou a vasilha e entregou àquela senhora que, parada diante da porta da cozinha da escola, parecia sentir vergonha e gratidão.
Sentiu o calor da sopa nas mãos, agradeceu e saiu com um quase sutil sorriso no rosto. Antes de atravessar a rua, notou que um grupo de mulheres no ponto de ônibus a olhava e cochichava, mas não deu importância. Quando subia a rua, escutou uma menina maldosa dizer qualquer coisa a respeito da comida da escola, sentiu um vazio no peito e uma vergonha acompanhada de dor, mas logo se lembrou de seus meninos e, feliz, subiu mais apressada dizendo a si mesma que não estava fazendo nada de errado. Vergonha era matar ou roubar.
Chegou em casa e encontrou o caçula com o rosto manchado pelas lágrimas, mas logo o garoto parou com o choro e sua mãe o colocou no colo para dar a sopinha. O outro segurava um prato de plástico sobre os joelhos e estava agachado perto da televisão enquanto levava colheradas para dentro da boca bem aberta na tentativa de não derramar nada – para não apanhar.
Ela guardou um pouco da sopa. Ia mais tarde à casa da Neuza para lavar e passar algumas roupas em troca de alguns trocados e pensava se iria ou não ao mercadinho pedir, fiado, alguns pés de galinha para servir de mistura na janta.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 05/06/2012
Código do texto: T3707760
 

16 julho 2011

Lucas da Aldeia e Barbara do Mistério

imagem disponível em www.imagemdeposito.com


LUCAS DA ALDEIA E BARBARA DO MISTÉRIO


Era uma vez, em uma aldeia muito distante ao pé de uma linda e gigantesca colina, vestida de uma vegetação verde e árvores com flores de um tom laranja e rosas que enfeitavam algumas copas de algumas árvores onde um garoto teve sua mente aprisionada pelos adultos que tentavam protegê-lo.
Ninguém sabe dizer qual era o seu nome, mas correm das bocas para as bocas que era Lucas. Poucos sabem também o que sucedeu a esse garoto que, ainda muito jovem, precisou travar uma batalha para libertar sua mente.
Da colina, descia um riacho de águas cristalinas que correriam por entre as pequenas, médias e grandes pedras amarronzadas. Era gelada e pura. Às margens do riacho, crescia uma espécie de capim muito delicado que não se pode mais encontrar hoje. Era de um verde escuro próximo ao solo, mas de um verde claro e vivo em suas extremidades. Quando o sol reluzia sobre as extremidades do capim, as águas do riacho vestiam-se de um verde jamais visto pelos homens que hoje andam sobre a terra. Do centro do tufo de capim, do seu coração, crescia uma linda flor que desabrochava sobre um médio caule aveludado e de um tom azulado misturado ao roxo. Uma flor absurdamente linda de um tom amarelo vermelho alaranjado se abria para o céu. Todos a chamariam de filha do sol.
Certo dia, sem se dar conta das belezas que o rodeavam, assim como era de costume de todos naquela aldeia, Lucas foi até o riacho pegar água para beber e voltou para sua barraca muito parecida com as casas de pau a pique. No caminho até o riacho, três belíssimas borboletas sobrevoaram próximas dele e pousaram-se sobre uma grande folha de samambaia como se estivessem a observá-lo. De volta para a barraca, havia dois beija-flores pequenos, um deles parecia ter as penas da cor cinza, mas com os movimentos podiam-se ver as cores vivas do azul, verde e roxo. O outro tinha as cores laranja, verde e rosa. Sobrevoaram a cumbuca onde ele trazia água cristalina que refletia a luz do sol e o azul escuro do céu. Os beija-flores sobrevoaram por alguns segundos e pareciam conversar entre eles, e logo voaram para onde ninguém mais pudesse vê-los.
No horizonte, o céu trazia lentamente uma grande nuvem branca e a brisa fria parecia querer trazer alguma novidade que passava por entre as pessoas e as casas sem que a notícia fosse percebia. O sol brilhava intensamente, mas ninguém o via. As borboletas, milagrosamente, saiam de seus casulos e eram como insetos. Os beija-flores eram como qualquer coisa que voava.
Lucas teve conhecimento de que muito antes dele nascer, houve outro menino que percebeu as coisas ao seu arredor e ficou louco. Dizia a todos que os beija-flores eram coloridos e que realmente beijavam as flores, que as borboletas eram absurdamente delicadas e que as nuvens podiam tomar formas de animais ou até de pessoas. As outras crianças da aldeia começaram a olhar para o céu em busca de um cachorro, um cavalo ou uma flor. As meninas de treze anos, recém casadas, já não eram nem mais adolescentes e também passaram a tentar ver as cores dos beija-flores.
Uma loucura contagiosa, uma doença maligna que açoitava a aldeia, uma peste pronta a engolir tudo e todos. Uma maldição mandada como forma de castigo àqueles que enlouquecessem. Foi assim que os mais velhos da aldeia viram tal fenômeno e o menino teve que ser morto para servir de exemplo a todos. Sua cabeça fora cortada e colocada em um mastro próximo ao riacho e seu corpo enterrado em um campo a seis dias de distância da aldeia.
Lucas tinha medo de pegar a praga, no entanto, certo dia, uma linda garota chegou à aldeia sobre um jumento. Não trazia nada além das roupas que vestia e parecia estar sedenta, faminta e fraca. Seus cabelos eram lisos de um castanho claro, seus olhos eram castanho escuro e tinha alguns arranhões no rosto. Sua beleza inocente encheu o interior daquele garoto que, assustado, tentava não olhar para aquela criatura tão vulnerável.
Deram-na o de comer e o de beber. Ofereceram-na um canto coberto de folhas para dormir.
Na mesma noite, a velha anciã da aldeia, uma velha muito sábia corcunda de pele muito enrugada mandou chamar aquele garoto que aprendeu a obedecer aos mais velhos e respeitar as suas decisões. Aquela senhora, sozinha com o garoto, contou o que acontecera naquele dia. Confessou a ele o que ele guardava para confessar e o confortou com palavras mansas e leves, ditas num tom cansado e meio rouco. Disse que o dia seguinte não seria fácil e que as estrelas diziam muito sobre o que estava prestes a acontecer. Alertou sobre possíveis perigos e que as escolhas seriam necessárias e que para cada uma, um perigo estaria no caminho.
Ao sair da cabana da velha sábia, ele olhou para o alto e pela primeira vez observou o céu grafite e várias estrelas brilhando. Parou ao lado de uma árvore muito parecida com as palmeiras e ficou a contemplar os pingos de luz que pareciam borbulhar. Levantou a mão direita como quem tenta apanhar uma estrela e seu rosto demonstrou uma pequena decepção ao descobrir que elas estavam muito mais altas do que ele imaginara. Até imaginou que aqueles pontos brilhosos eram na verdade pequenos furos em uma capa de couro usada pelos Deuses para tampar o sol e trazer a noite.
De repente, assustou-se quando um pequenino brilho mexeu-se. Ficou mais assustado quando aquele brilho meio esverdeado aproximou-se dele. Nunca tivera visto um vaga-lume e achou que seu pedido tornara-se realidade. Ficou muito intrigado ao perceber que o ponto de luz possuía pernas e isso causou certa gastura quando o inseto pousou sobre seu braço. Perguntou-se se todas as estrelas eram bichinhos com pernas.
Olhou para trás e viu a velha senhora observando-o. Ela tinha um sutil sorriso e no cruzamento de brilhos dos dois olhares, ela abaixou sua cabeça e com o braço esquerdo, lentamente, fechou a entrada da cabana com uma espécie de cortina de couro.
Já deitado, Lucas de barriga para cima, não conseguia deixar de pensar no rosto daquela linda garota. Nunca sentira nada igual em toda a sua vida. Nunca sentira o que era aquele ânimo e medo ao mesmo tempo e nem provavelmente sabia que estava sentindo alegria e medo sincronizadamente. Sua vontade era de ficar por horas a fio observando aquele rosto angelical e paradoxalmente lutava para se manter longe daquela criatura que mexeu tanto com ele. Por fim, adormeceu.
No dia seguinte, acordou com gritos. Abriu os olhos, olhou para os lados e correu para fora. Mulheres gritavam e atiravam pedras contra aquela linda garota que chorava e tentava desprender-se dos braços de dois homens. Abria a boca, mas não emitia qualquer grito. Lucas correu para perto das pessoas e perguntou por que ela estava sendo castigada.
_ Ela não fala e nem ouve! – Berrou uma senhora gorda de vestido rosado e um lenço verde em volta da cabeça.
Amarraram-na a um cipó. Trouxeram um longo chicote. Os grandes líderes da aldeia, três homens e quatro mulheres muito velhos, observavam tudo, com exceção da anciã que conversara com o garoto na noite anterior. Ela permanecia sempre de cabeça baixa e mirava apenas o chão.
Aquela garota deveria ter mais ou menos a mesma idade de Lucas, e disso ele tinha noção. Sentiu um vazio na boca do estomago, suas pernas tremiam e sua visão ficou um pouco tonta. Uma sensação de vulnerabilidade tomou conto do seu corpo e um sentimento de ódio por isso inundou sua mente que se afogava em pena, súplica, medo, coragem, solidão, esperança, desânimo, um cavalo, fuga, os campos, as estrelas, o vaga-lume, a anciã entre outras coisas.
Se aquela garota fosse mais nova, atirá-la-iam de um penhasco, mas como já era quase uma adolescente, decidiram queimá-la. Provavelmente fora abandonada ou chegou à aldeia fugida.
Sabe Deus por que algumas coisas são da forma que são e por que acontecem da forma que acontecem. Aos braços do mistério entregamo-nos todos sem que possamos fazer qualquer coisa que realmente funcione e responda nossas indagações. Ao espaço sideral mandamos nossas mentes que nós mesmos não temos controle e nem conhecimento do seu total poder. Todos nós guardamos um universo fantástico e misteriosamente infinito dentro do que chamamos de crânio.
Lucas tinha uma enorme dificuldade para tomar decisões e o fato de sua mente estar lutando para se libertar dificultava ainda mais a tarefa. A imagem sofrível daquela garota presa sob a luz do sol e o úmido ar do sereno não saia de sua cabeça. Sabia que podia fazer algo e que precisava. Não o se perdoaria se deixasse os acontecimentos seguirem os caminhos iniciais e temia pela própria vida – não queria sua cabeça sobre o mastro.
Barbara, esse era o nome da doce garota. O dia já chegava ao seu fim e o sol já estava se pondo e a cede tomara conta de todo o seu corpo. Estava cansada e a fome também fazia companhia. Cabisbaixa, uma leve brisa passou pelo seu rosto elevando um pouco as pontas do seu cabelo. Olhou para sua esquerda e viu um tufo de capim banhado pela luz da lua. Parecia que brilhava um verde claro das pontas do capim e do centro, sobre o caule, estava o que parecia um casulo grande de cor azulada.
Barbara não conseguia parar de olhar e talvez, a flor soubesse disso. A única flor das margens, a única que não estava dormindo desabrochou lentamente mostrando o seu sol interior. Aqueceu por alguns instantes as esperanças de Barbara que nunca tivera visto algo parecido. Ergueu seus olhos e começou a contemplar as estrelas e a grande lua pálida. Uma pedra passou muito próxima da sua cabeça e assustada ela percebeu que não estava sozinha.
_ Deixa ela em paz! – Soou um pouco trêmulo e abafado, mesmo demonstrando muita convicção.
_ Como é que é? – Questionou um homem calvo com uma vestimenta de couro que servia de proteção às pernas e braços.
Lucas permaneceu calado e ao perceber que estava amedrontado o homem continuou.
_ Eu sabia que tinha algo de errado com você! Você trouxe a praga de volta às nossas casas. Besta!
A agressividade assustou Lucas, mas também o deu uma sensação de raiva e essa raiva trouxe coragem. Os gritos de ambos chamaram atenção de todos na aldeia.
Barbara foi desamarrada e junto a Lucas correram entre as cabanas enquanto todos, muito curiosos, faziam um paredão de pessoas lado a lado e gritavam peste!... peste!... peste!... As tochas ardiam uma luz avermelhada, o chão de barro poeirou com os passos apressados dos dois, agora fugitivos.
Romanticamente havia um cavalo logo à frente. Estava selado e pronto para ser montado. De sua direção vinha a velha anciã. Tentava esconder a mão ensangüentada. Cortara-se no momento em que preparava o cavalo. Lucas entendeu o que acontecia naquele momento, apesar de sua pressa e medo serem maior e parecer dominar toda sanidade. Ficou feliz, mas segundos depois, uma tristeza preocupou sua humanidade. Sabia que aquela senhora seria condenada por traição e que provavelmente seria morta como exemplo.
Barbara foi empurrada para cima do animal e ficou desajeitada assim como Lucas também ficou, uma vez que nenhum deles sabia montar. Os calcanhares bateram na barriga do animal que parecia saber o que deveria fazer. O galope foi aumentando e o vento da noite batia sobre o rosto do garoto e correia por entre os cabelos de Barbara. O vento ajudava a secar as lágrimas daquela criatura inaudível e seu rosto tinha as linhas percorridas pelas gotas de lágrimas.
Já longe da aldeia, quando o cavalo demonstrou cansaço e quando Lucas já começara a sentir culpa pelo o que fez, o cavalo parou para comer a pouca vegetação que estava a sua disposição. Não havia riacho e nem sinal de água. Estavam todos cansados, com sede, com fome e com medo. A diferença entre ela e ele era que ela estava dolorida e espancada.
Sem explicação alguma, ele sentia um enorme carinho por ela. Não sabia exatamente o que sentia, mas quando ela parava em sua frente e mesmo ela com o rosto manchado pelas lagrimas e alguns vermelhidões, achava-a linda. Nunca sentira nada por qualquer garota da aldeia. Sentia agora uma estranha satisfação, uma estranha alegria, mesmo naquela situação conturbada.
Amarrou o cavalo a uma grande pedra e deitaram no chão. Ela sempre se mantinha um pouco distante dele. Pela sua expressão, dava-se para perceber que ela não entendia muito bem o que acontecia, entendia com clareza que queriam fazê-la mal.
Lucas, em seu pedacinho de terra, observava Barbara de rosto dado para as estrelas. Ficou intrigado e também se entregou aos céus. Contemplaram a presença, a mágica presença da lua e das estrelas. Algumas libélulas e vaga-lumes sobrevoavam o trio, seriam talvez guardiões ou mensageiros? Adormeceram.
No horizonte, o céu já denunciava a chegada do sol devido à cor rosada e esbranquiçada. Lucas acordou assustado com pisadas de cavalos. Eram sete e o cavaleiro que guiava o animal, onde vinha junto um dos anciãos, desceu do cavalo e com um leve chute nas pernas, acordou Bárbara. Estavam todos assustados. Lucas tentou se soltar e gritava para sua amada correr, mas ela não conseguia entender, apenas sabia que estava para morrer.
_ Não!!! Ela não! Por favor! Matem-me, mas deixe-a ir... Deixe-a com sua pouca sorte!
_ Cala a boca demônio! Tu pagarás de qualquer forma. – Gritou um dos homens puxando-o pelo cabelo.
Barbara chorava por ver Lucas chorando que por sua vez, chorava por ver o destino de Barbara. E mais uma vez, Lucas suplicou:
_ Por favor Senhor Aliel! Deixe-a ir. Faça todo o ritual, o sacrifício que for necessário, mas deixe-a ir!!! – Neste momento começou a cantarolar uma cantiga. Sua voz tremula misturada ao choro dava à cantiga uma sonoridade triste, tão triste que poucos homens hoje seriam indiferentes.
Por fim, o senhor ancião deixou que Barbara fosse embora. Fizeram gesto com os braços para explicá-la que teria que ir. Ela correu... correu o máximo que podia e seus olhos enchiam-se de lágrima. Sua visão embaçava-se pela tristeza. Chegou a cair, mas levantou-se e continuou a correr até que não agüentou mais. Parou, olhou para trás e não pode ver ninguém – já estava muito longe. Olhou para frente e não viu casa nenhuma, nada, apenas um grande campo verde amarronzado, com poucas baixar árvores e alguns tufos de mato.
Lucas foi punido com a morte. Sofreu muito para limpar a aldeia do pecado e da maldição. Seus olhos foram arrancados, seus tímpanos furados, sua língua cortada e sua boca costurada. Em seu peito cravaram uma estaca de ferro. Levaram seu corpo para um campo distante da aldeia, não foram muito longe quando várias borboletas brancas e laranjas pousaram sobre o seu corpo, cobrindo-o por completo. O susto e medo fizeram os homens abandoná-lo pelo caminho.
Ninguém mais naquela aldeia teve notícias de Bárbara, mas fato é que ela continuou a fugir em sua caminhada até onde e quando Deus permitiu.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 16/07/2011
Código do texto: T3099016

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