06 janeiro 2011

O Homem Que Dançava na Varanda

imagem google


O HOMEM QUE DANÇAVA NA VARANDA

Era um quintal grande, talvez o maior de todas as moradias da rua, gramado, mas não cuidado. Próximo do muro, perto do portão, cresceu uma laranjeira e um estreito caminho feito de paralelepípedos que ligava a rua à pequena casa que ficava próxima ao fundo do quintal, estava sendo engolido pelos matos que cresciam pelas frestas entre as pedras.  Um muro baixo e pintado de branco cercava tudo.
Notava-se pelo seu aspecto de abandono que a casa fora pintada fazia anos, no entanto, o que chamava atenção dos vizinhos e de todos que passavam por aquela rua, era o fato da varanda ser a única parte exterior da casa ser, recentemente, pintada de branco – suas telhas e seus pilares de madeira.
A cor vermelho-vinho das paredes que se descascavam alimentava a imaginação das crianças que acreditavam que o senhor – o único morador – era um feiticeiro que conversava com fantasmas e que vendia a alma de crianças para o diabo.
Seu José, o Doido, como era apelidado em segredo pelos visinhos, tinha com freqüência, problemas com as crianças que, toda vez que o via, gritavam apelidos como macumbeiro, feiticeiro e tudo o que poderia ser criada pelas mentes perturbadas daquelas crianças. Alguns dos vidros de sua casa estavam quebrados e foram prometidas reposições pelos pais de alguns pirralhos, mas promessas que nunca foram cumpridas.
Não havia muito contato entre o Doido e a vizinhança que pouco sabia e muito se indagava a respeito dele e tentava por meio de fofocas saber de onde Seu José teria vindo e porque teria se mudado, se não tinha família, filhos, esposas e porque nunca recebia visitas.
Quando sua laranjeira começava a dar frutos, Seu José sabia que estava por vir umas das épocas mais trabalhosas e estressantes, já que era preciso espantar a gritos crianças que ficavam trepadas no seu muro com pedaços de bambus gritando e rindo, aparentemente em busca de laranjas.
Era, aproximadamente, cinco horas da tarde, estava frio e tinha acabado de chover. Três pequenos meninos resolveram subir no muro para tentar pegar algumas laranjas. No momento em que o mais velho sentava no topo da parede de tijolos, presenciou Seu José trajado de um velho terno marrom, uma calça preta e descalço.
Com o susto, o primeiro pensamento do menino foi descer e sair correndo, mas uma fina coragem, dessas que sem explicação alguma, desabrocha nos momentos em que somos pegos de repente e sentimos medo, fez com que ficasse ali sentado no muro, apenas observando calado enquanto os outros dois meninos, curiosos, questionavam o que estava acontecendo.
Seus olhos perderam toda a percepção do que estava ou acontecia ao seu redor, apenas ficou ali de olhos presos naquele senhor que sem nenhuma explicação, começou a dançar de olhos fechados. Pra lá e pra cá, eram os movimentos que seus pés faziam. O braço esquerdo estava estendido para o alto com a palma da mão aberta e o direito curvava-se a altura de sua barriga como se estivesse segurando alguém pela cintura. Girava o corpo, vinha e ia pela varanda toda.
A testa do jovem franziu nos primeiros segundos, mas logo deu espaço a uma expressão de riso, parecia que uma piada maldosa estava por eclodir. Ficou sério, apenas observando. Aqueles dois minutos foram longos o suficiente para que tal imagem nunca mais pudesse ser esquecida.
Seu José abriu seus olhos e, por uma fração de segundos, deu conta de que estava sendo assistido e seu susto causou o susto alheio. Colocou a mão direita sobre o peito e dois segundo depois, enfurecido e gritando qualquer coisa, foi de encontro ao garoto que em um passo de mágica pulou do muro e sai correndo alertando os amigos a correrem também.
No dia seguinte, o assunto que corria de orelha a orelha era a cena que um dos garotos tinha testemunhado. Pela vizinhança, corria boatos de que S. José teve uma crise no último pôr-do-sol e estava dançando completamente nu, na varanda de sua casa. Em uma roda de fofocas no portão de uma das casas, escutavam-se de quatro mulheres vestidas de saia e cabelos cumpridos, que S. José estava masturbando-se e que era preciso ter cuidado com suas crianças, porque o diabo não está para brincadeira e o fim dos tempos estaria chegando.
Seu José andava sempre com o rosto amarrado, e saía pouco de casa também, o que deixava seus vizinhos intrigados em relação à alimentação, higiene e tudo o que as pessoas normais precisam comprar para viver. Já sabiam que em sua casa não havia eletricidade e que um jovem homem, que morava ao seu lado, de vez em quando, doava alguns alimentos.
Três dias depois do que talvez tenha sido o primeiro ocorrido, um dos moradores que chegava do trabalho, logo após um fim de tarde chuvoso, passa a ter certeza de que os meninos não estavam mentindo. Lá estava S. José, na varanda, descalço, com sua calça social preta e seu terno marrom, dançava o que parecia ser uma valsa, braço esquerdo para o alto e braço direito simulando segurar a cintura de alguém.
Observou-o apenas, e passou a não se preocupar tanto com as coisas que ouvira nos dias anteriores e algumas imagens criadas pelos boatos deram lugar a um sentimento de pena. Pena de um pobre velho louco.
No dia seguinte, mais uma vez, a pauta era o que o marido de uma das moradoras havia visto. Era fascinante como alguns moradores tinham tamanha imaginação para criar histórias ou pelo menos, reformulá-las. Talvez a fofoca fosse para essas pessoas, que se empenhavam a fazer nada a maior parte do dia, um instrumento de realização de fantasias que por valores ou por medo, deixavam correr suas honestidades.
Pararam dois carros de polícia, cerca de cinco policias bateram ao portão de S. José, que meio assustado veio recebê-los. Para surpresa daquele pobre e velho morador, haviam feito uma denúncia contra ele e para seu enfurecimento, teve conhecimento de que tornara-se um homem de amizades íntimas com crianças.
Tentou explicar tudo, mas não o foram dadas razões. Pediu para que perguntassem ao vizinho ao lado, mas se recusaram acreditar. E com os olhos lagrimejados, teve uma visão embaçada através da bolsa de lágrimas, de um rapaz que não conhecia e que, por instantes, desejou que ele morresse por ter criado tamanha história sem fundamento. Ele tinha aproximadamente quinze anos e morava no sobrado de frente para a casa de Seu José, e perguntou aos policiais o que estava acontecendo e, perplexo, não sabia se ria ou se gritava ao mundo que tudo não passava de besteiras.
Uma das moradoras tentou agredir Seu José com uma pedra, mas foi impedida por um policial. Ela vestia uma sai longa e estava com seu cabelo amarrado à altura da cintura. Ela foi questionada pelos policiais, que confusos, tentaram entender melhor quais foram as pessoas que viram aquele senhor, nu, na varanda acompanhado de duas crianças.
Aquela mulher, com sua imagem de honestidade e temor a Deus, informou que não foi ela quem viu, mas ficou sabendo de uma amiga que ficou sabendo da vizinha dela que ficou sabendo da cunhada que ficou sabendo que o marido de uma amiga viu. Ela foi questionada pelo comandante o porquê do marido da amiga da cunhada da vizinha da amiga dela não ter denunciado o caso e já entendendo o que estava acontecendo, perguntou ao garoto de quinze anos o que ele tinha para dizer.
_ Olha seu policial, essa história de que ele estava abusando de duas crianças é pura mentira. Eu sei porque eu fico na janela do meu quarto observando ele, porque todos nós aqui, achamos ele um pouco estranho e eu não sei porque não consigo deixar de pensar como é que ele vive. O homem que mora aqui do lado, de vez em quando dá comida pra ele e as crianças aqui não param de encher o saco dele, ficam gritando que ele é macumbeiro, feiticeiro, essas coisas. Todos nós chamamos ele de O Louco, porque ele fica na varanda dançando. Eu no começo achei estranho, mas a gente sempre ouve que não pode contrariar louco. Eu até acho engraçado quando ele começa a dançar e eu nunca vi ele pelado e muito menos com criança nenhuma. Ele fica sem sapato e com um terno marro bem velho e fica dançando uma valsa. Eu não sei Seu Policial, mas ele parece sofrer, ontem eu o vi dançando e depois de repente ele começou a chorar, sentou na varanda e ficou lá um pouco e depois entrou. Ele nem tem luz na casa dele. E essa mulher aqui, ela é louca, ela fica o dia todo falando da vida dos outros e depois fica dizendo pra todo mundo que ela é crente.
Foram todos levados à delegacia para prestar esclarecimentos ao delegado. Após liberados, aquela moça assinara uma advertência por calunia.
Duas semanas passaram e foi a primeira vez, depois de toda a confusão que Seu José foi visto novamente dançando na varanda com seu traje humilde. Estava com um aspecto triste e parecia estar desnutrido, com a barba e os cabelos grandes. Desde então passaram vinte dias sem que ninguém o tenha visto novamente, nem no quintal, nem na rua, nem em lugar algum. No vigésimo quinto dia, o homem que morava ao lado de sua casa, estava no portão segurando algumas chaves. Uma ambulância havia acabado de sair do local e acabava de estacionar dois carros de polícia.
Alguns vizinhos formaram uma muralha de pessoas, no meio da rua em frente à casa do Doido. Os policiais desceram e um deles perguntou ao homem, com as chaves, o que ele era daquele senhor.
_ Sou filho dele.
Ao escutarem aquelas palavras, cochichos tornaram o momento surdo e alguns segundos depois não era possível ouvir nenhum barulho daquelas pessoas que estavam ali. Olharam sincronizadamente umas para as outras e para aquele homem que entrava naturalmente no quintal junto aos policiais.
Estacionou um veículo com as letras IML. Todos tiveram certezas para suas desconfianças. Ao retirarem um caixote cumprido do veículo, os vizinhos puderam ouvir um dos policias advertindo que o corpo já estava em estado de decomposição.
Naquele exato momento, o tempo parou por alguns instantes.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 07/11/2010
Código do texto: T2602517


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