O JOVEM QUE NÃO
PRECISAVA TRABALHAR
Estavam no ônibus que ia para
Ferraz. Subiram em Suzano após longos minutos de espera. Ela ia para o trabalho
e aproveitava a viagem para deixar seu filho de aproximadamente sete anos no
colégio. Um garoto diferente dos demais. Era ávido inocentemente e observador. Claro
que tinha momentos iguais aos demais garotos de sua idade, momentos esses de
bobices para sermos delicados com as palavras. Mas naquela manhã, ele estava
atento.
Após passarem pela estação de
Calmon Viana, na Avenida Brasil na altura do numero 650, próximo a passarela de
pedestres, ao lado do ponto de ônibus, onde uma mulher negra desceu e outra
gorda esperava seu ônibus, todos, que estavam nos últimos bancos daquele que ia
para Ferraz, viram quando um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos, um
pouco fora de si, gritava apontando para quem estava dentro o ônibus, que ele
não precisava trabalhar.
Um grande tubo de metal torcido e
parafusado cheio de anônimos de caras pálidas e amassadas, de bocas cheias de
bocejos e olhos lacrimejados com pálpebras pesadas de sono e cansaço. Um tubo
pintado para disfarçar metal que cortava ruas e avenidas margeadas de anônimos
e alguns mortos vivos. Tubo que fazia curvas imprudentemente fazendo seus
anônimos internos a quase se igualarem a gados e vacas. Antes que o motorista
tirasse o pé do freio e avançasse, ela, a mãe do garoto esperto, após ver e
ouvir aquele jovem gabar-se de que não precisava trabalhar, pensou consigo que
era sorte dele.
Seu filho também o viu, já que
estava sentado ao lado da janela, e automaticamente olhou para a mãe. Por
alguns segundos ficaram calados, cada qual com seus pensamentos ou imaginações.
Por fim, ele questionou:
_ Por que ele não precisa
trabalhar?
Ela se riu e respondeu:
_ Talvez ele seja rico meu bem.
Ele fez cara redonda de quem
tenta demonstrar entendimento, mas sem definitivamente entender e após quatro
ou cinco segundos disse:
_ Se o papai fosse rico, ele não
acordaria cedo. Ele mesmo disse.
_ Eu também não. Talvez, aquele
moço nem tenha dormido ainda.
_ Ah bom. Mas por que a senhora e
o papai têm que trabalhar e ele não?
_ Por que algumas pessoas têm
mais dinheiro do que as outras.
_ E por quê?
_ Por que é assim mesmo. A vida,
às vezes, é injusta.
Ele deixou transparecer aquela
expressão que algumas pessoas demonstram, discretamente, quando dissemos algo
que era melhor não termos dito e disse:
_ Injusta? Mas Deus não faz nada
para que seja justa?
_ Ora meu amor, é claro que faz.
– Ela disse meio desconcertada e um pouco arrependida por ter falado, na
opinião dela mesma, demais.
_ Então porque a senhora e o
papai não “para” de trabalhar?
Ela se riu mais uma vez e disse:
_ Por que não somos vagabundos.
Temos que trabalhar para ter as coisas.
_ Então aquele homem é vagabundo?
_ Não sei. Pode ser que não.
_ Mas Deus não nos dá as coisas?
_ Dá, mas temos que lutar por
elas, temos que trabalhar para merecer.
Ele virou o rosto para a janela e
mirou o céu neblinado e após alguns segundos virou-se para sua mãe. Talvez ele
tenha refletido um pouco se deveria continuar com aquela conversa ou não. E
preferiu tirar sua última dúvida:
_ Se aquele homem não trabalha
então ele não tem as coisas ne?
_ Algumas pessoas tem as coisas
sem trabalharem muito ou sem mesmo trabalhar.
_ E isso não é injusto? Então
Deus é injusto com a senhora e o papai.
Ela ficou um pouco chocada com
tal afirmação e apressou-se de tentar concertar.
_ Cuidado menino! Não pode falar
assim de Deus. Deus castiga!
Ele se encolheu e quando o ônibus
parou ao lado da estação de Poá, levou a conversa para outro nível. Um nível
filosófico, uma conversa chocante emergida da boca de uma criança. Ou um
monstro pequeno?
_ Mãe...
_ Sim.
_ Se eu deixar de acreditar em
Deus, deixa de existir o castigo?
Ela arregalou os olhos:
_ O quê? Que história é essa?
_ Se eu apagar Deus da minha
mente ele não pode me castigar, não é?
_ Claro que não meu filho. Não
tem como apagar Deus da nossa mente.
_ Por quê? A senhora não esqueceu
o número de telefone da minha madrinha? Então.
_ Mas de Deus não se esquece
menino! Deus é tudo!
_ Tudo? – E dessa vez, foi a vez
dele arregalar os olhos.
_ Quem te falou essas coisas?
Quem anda te ensinando essas coisas hein? Foi na escola?
_ Não. Ninguém me falou.
_ E da onde você tirou essas
conversas?
_ Eu não sei. Só perguntei.
_ Você acredita em Deus não
acredita?
_ Acredito... – Mas soou duvidoso
ainda.
_ Então não tem com esquecer
Deus. É impossível esquecer do que a gente acredita. Você entendeu?
Ele balançou a cabeça de modo que
afirmava o entendimento.
E antes de levantar e dar o sinal
para que o ônibus parasse no próximo ponto, ela finalizou aquela conversa
alegando não querer ouvir mais aquelas coisas. Ele limitou-se com um “está
bem”.
No sacolejo do ônibus, ela equilibrou-se entre
sua bolsa, mochila do filho, segurar-se e segurar a mão dele e ainda passar por
entre anônimos que costumam parar em frente à porta. Alguns anônimos necessitam
desesperadamente de portas.
Desceram.
Ele ficou a olhar os pneus
distanciarem e esqueceu, pelo menos naquele momento, do que pensara momentos
antes e se entreteu com uma grande lesma sobre a calçada e, em pensamento,
agradeceu a Deus por não ter nascido lesma. Sua mãe chamou sua atenção para
andar logo, já que ela não tinha o dia todo. Ele correu para perto dela e
seguiram para a escola.
Ele, não se sabe por que, olhou
para trás como quem sente saudade de alguma coisa que ficou. E sempre fica.
Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 07/03/2013
Código do texto: T4176740
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