07 março 2013

O Jovem que Não Precisava Trabalhar




O JOVEM QUE NÃO PRECISAVA TRABALHAR


Estavam no ônibus que ia para Ferraz. Subiram em Suzano após longos minutos de espera. Ela ia para o trabalho e aproveitava a viagem para deixar seu filho de aproximadamente sete anos no colégio. Um garoto diferente dos demais. Era ávido inocentemente e observador. Claro que tinha momentos iguais aos demais garotos de sua idade, momentos esses de bobices para sermos delicados com as palavras. Mas naquela manhã, ele estava atento.

Após passarem pela estação de Calmon Viana, na Avenida Brasil na altura do numero 650, próximo a passarela de pedestres, ao lado do ponto de ônibus, onde uma mulher negra desceu e outra gorda esperava seu ônibus, todos, que estavam nos últimos bancos daquele que ia para Ferraz, viram quando um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos, um pouco fora de si, gritava apontando para quem estava dentro o ônibus, que ele não precisava trabalhar.

Um grande tubo de metal torcido e parafusado cheio de anônimos de caras pálidas e amassadas, de bocas cheias de bocejos e olhos lacrimejados com pálpebras pesadas de sono e cansaço. Um tubo pintado para disfarçar metal que cortava ruas e avenidas margeadas de anônimos e alguns mortos vivos. Tubo que fazia curvas imprudentemente fazendo seus anônimos internos a quase se igualarem a gados e vacas. Antes que o motorista tirasse o pé do freio e avançasse, ela, a mãe do garoto esperto, após ver e ouvir aquele jovem gabar-se de que não precisava trabalhar, pensou consigo que era sorte dele.

Seu filho também o viu, já que estava sentado ao lado da janela, e automaticamente olhou para a mãe. Por alguns segundos ficaram calados, cada qual com seus pensamentos ou imaginações. Por fim, ele questionou:

_ Por que ele não precisa trabalhar?

Ela se riu e respondeu:

_ Talvez ele seja rico meu bem.

Ele fez cara redonda de quem tenta demonstrar entendimento, mas sem definitivamente entender e após quatro ou cinco segundos disse:

_ Se o papai fosse rico, ele não acordaria cedo. Ele mesmo disse.
_ Eu também não. Talvez, aquele moço nem tenha dormido ainda.
_ Ah bom. Mas por que a senhora e o papai têm que trabalhar e ele não?
_ Por que algumas pessoas têm mais dinheiro do que as outras.
_ E por quê?
_ Por que é assim mesmo. A vida, às vezes, é injusta.

Ele deixou transparecer aquela expressão que algumas pessoas demonstram, discretamente, quando dissemos algo que era melhor não termos dito e disse:

_ Injusta? Mas Deus não faz nada para que seja justa?
_ Ora meu amor, é claro que faz. – Ela disse meio desconcertada e um pouco arrependida por ter falado, na opinião dela mesma, demais.
_ Então porque a senhora e o papai não “para” de trabalhar?

Ela se riu mais uma vez e disse:

_ Por que não somos vagabundos. Temos que trabalhar para ter as coisas.
_ Então aquele homem é vagabundo?
_ Não sei. Pode ser que não.
_ Mas Deus não nos dá as coisas?
_ Dá, mas temos que lutar por elas, temos que trabalhar para merecer.

Ele virou o rosto para a janela e mirou o céu neblinado e após alguns segundos virou-se para sua mãe. Talvez ele tenha refletido um pouco se deveria continuar com aquela conversa ou não. E preferiu tirar sua última dúvida:

_ Se aquele homem não trabalha então ele não tem as coisas ne?
_ Algumas pessoas tem as coisas sem trabalharem muito ou sem mesmo trabalhar.
_ E isso não é injusto? Então Deus é injusto com a senhora e o papai.

Ela ficou um pouco chocada com tal afirmação e apressou-se de tentar concertar.

_ Cuidado menino! Não pode falar assim de Deus. Deus castiga!

Ele se encolheu e quando o ônibus parou ao lado da estação de Poá, levou a conversa para outro nível. Um nível filosófico, uma conversa chocante emergida da boca de uma criança. Ou um monstro pequeno?

_ Mãe...
_ Sim.
_ Se eu deixar de acreditar em Deus, deixa de existir o castigo?

Ela arregalou os olhos:

_ O quê? Que história é essa?
_ Se eu apagar Deus da minha mente ele não pode me castigar, não é?
_ Claro que não meu filho. Não tem como apagar Deus da nossa mente.
_ Por quê? A senhora não esqueceu o número de telefone da minha madrinha? Então.
_ Mas de Deus não se esquece menino! Deus é tudo!
_ Tudo? – E dessa vez, foi a vez dele arregalar os olhos.
_ Quem te falou essas coisas? Quem anda te ensinando essas coisas hein? Foi na escola?
_ Não. Ninguém me falou.
_ E da onde você tirou essas conversas?
_ Eu não sei. Só perguntei.
_ Você acredita em Deus não acredita?
_ Acredito... – Mas soou duvidoso ainda.
_ Então não tem com esquecer Deus. É impossível esquecer do que a gente acredita. Você entendeu?

Ele balançou a cabeça de modo que afirmava o entendimento.

E antes de levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse no próximo ponto, ela finalizou aquela conversa alegando não querer ouvir mais aquelas coisas. Ele limitou-se com um “está bem”.

 No sacolejo do ônibus, ela equilibrou-se entre sua bolsa, mochila do filho, segurar-se e segurar a mão dele e ainda passar por entre anônimos que costumam parar em frente à porta. Alguns anônimos necessitam desesperadamente de portas.

Desceram.

Ele ficou a olhar os pneus distanciarem e esqueceu, pelo menos naquele momento, do que pensara momentos antes e se entreteu com uma grande lesma sobre a calçada e, em pensamento, agradeceu a Deus por não ter nascido lesma. Sua mãe chamou sua atenção para andar logo, já que ela não tinha o dia todo. Ele correu para perto dela e seguiram para a escola.

Ele, não se sabe por que, olhou para trás como quem sente saudade de alguma coisa que ficou. E sempre fica.

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 07/03/2013
Código do texto: T4176740

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