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DE QUEM É ESSE MARACUJÁ?
Um belo maracujá andava pela rua esta manhã. Não sei dizer seu nome e
nem onde morava, para onde estava indo ou que procurava. Sei que era um
maracujá, qualquer um é capaz de identificar um: a mesma casca enrugada – são
poucos os casos de maracujás lisos – e as pálpebras pesadas sobre um brilho
suplicador, tristonho e esperançoso. Os lábios um pouco moles, ora sorrisos
sutis, ora sem expressão nenhuma. E o rolar lento, cauteloso entre a multidão
que não tem tempo para perder, nem um segundo que seja.
Muitos frutos não gostam de maracujá, dizem que são
muito azedos e há aqueles que simplesmente não gostam por achar uma fruta não
muito bonita. Outros adoram, adoram os derivados e há aqueles que amam a polpa
pura. No entanto, igual a qualquer outro fruto, há maracujás que não são tão
azedos, são doces dentro do seu azedo, mas é esse gosto que trava a boca, que
parece diminuir a língua, que parece arder em gelo que faz o maracujá ser o que
é. O que seria da banana se tivesse o gosto da jaca?
O maracujá do qual estou falando estava sozinho. É
impressionante como muitos maracujás ficam sozinhos e alguns por muito tempo.
Carregava uma sacola branca de plástico, não era possível ver o que havia
dentro. Vestia uma calça marrom desbotada e uma camisa branca de listras
pretas. Estava ali, parado na esquina, enquanto os carros passavam em um vai e
vem. A faixa de pedestres, cinza escuro – branco – cinza escuro – branco –
cinza escuro – branco, parecia não servir para nada. Alguns outros frutos
estavam próximos dele, e também queriam atravessar a avenida. Alguns corriam
entre os breves intervalos dos carros que buzinavam. O maracujá olhou para um
abacate que colocou a cabeça um pouco para fora da janela de seu carro e gritou
para um pêssego rígido que saísse do meio do caminho.
Não vi para que lado foi aquele maracujá, o meu
ônibus chegara e estacionou tampando minha visão no exato momento em que alguns
carros pararam e o maracujá, junto a três morangos, duas bananas, um abacate,
uma maça e uma pêra atravessaram a rua.
Kafka tinha para ele a metamorfose em uma barata,
hoje eu tenho para mim que muitas frutas, quase todas, quando chegam em um
determinado tempo de suas vidas, viram maracujás. Todos maracujás pertencem a
alguém – e quando mais jovens, outras frutas pertenceram a eles (e ainda
pertencem) – e todos os maracujás, apesar de serem um pouco ressecados e enrugados
por fora, são úmidos com sua polpa repleta de sementes. Alguns frutos já
perderam um dos seus ou os seus maracujás, mas nunca, jamais os esquecerão;
coisas da vida.
Por incrível que pareça, quando sentei em um dos
bancos do ônibus, abri um livro de contos da Clarice Lispector e comecei a ler
uma história de uma maracujá que por ser maracujá fazia companhia para ela
mesma, já que ninguém se interessava em conversar com ela por ser maracujá.
Tantas coisas são tão tristes e chegam a ser humilhantes. Percebi, talvez eu
esteja errado já que ainda sou um banana, que é a carência de muitos maracujás
que os fazem falar bastante e que é preciso ter paciência, respeito, carinho,
amor, cautela, zelo pelo meu maracujá (e por todos os outros) que está em casa
agora, preparando o meu almoço. Pelo meu outro maracujá que também vai chegar,
mais tarde em casa, cansado e que a primeira coisa que faz é perguntar pelos
seus frutos e cumprimentá-los.
Como gostaria de ter conversado um pouco com aquele
maracujá da esquina, diante da faixa de pedestres, com uma sacolinha em mãos,
suas as roupas um pouco desbotadas. Todo fruto tem sua história.
Um dia, eu também me tornarei um maracujá e espero
que não muito azedo e não tão esquecido.
Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 24/05/2012
Código do texto: T3686339
Publicado no recanto das letras em 24/05/2012
Código do texto: T3686339
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