21 maio 2012

A Babá e o demônio Angelical


imagem promocional do filme "O Último Exorcismo"


A BABÁ E O DEMÔNIO ANGELICAL


Michele - Esse era o seu nome.

Estava pronta para sair. Bem perfumada – um cheiro, no entanto, leve e plumoso – , cabelos penteados e vestia uma calça moletom cor cinza e uma camiseta rosa claro. Sua blusa de lã fina estava dobrada sobre o sofá e ela repetia para si mesma que não poderia esquecê-la, já que mais tarde faria mais frio. A televisão estava ligada e a luz azulada que saía do aparelho enchia a sala criando sombras fantasmagóricas com a ajuda do abajur, sofá e a cabeça de sua mãe sentada assistindo.

Michele foi até a cozinha, abriu a geladeira e tirou uma caixa de leite. Após colocá-lo pela metade em um copo grande de vidro, foi até o fogão e verificou se havia café no bule que brilhava devido ao bom capricho de sua mãe. Entornou o líquido escuro dentro do copo onde estava o leite e ficou observando a rápida, mas delicada mistura do branco com o café e a forma de como aquele marrom chocolate subia pelo meio da brancura e em segundos tornava tudo marrom claro.

Pousou o bule na boca de trás do fogão e colocou o copo dentro do micro-ondas, apertou os botões lisos e modernos e programou para cinqüenta segundos.

Sua mãe, da sala, ao ouvir os sons agudos dos botões do aparelho sendo acionados, virou um pouco a cabeça para o lado, como que se estivesse facilitando a viagem do som da sua voz até a cozinha:

_ Você não vai jantar antes de ir?

_ Não, mãe. Não estou com fome. Vou tomar só um café com leite.

_ Vai comer pão?

_ Não, não quero.

_ Você devia ter me avisado, assim eu teria feito um bolo para você tomar café. Ou teria ido ao mercado comprar uma bolachas.

_ Não se preocupa mãe. Não estou com fome. Se eu sentir fome eu como alguma coisa lá.

_ E você vai poder?

_ Não sei. Se eu não puder, eu como quando eu chegar.

O telefone tocou assustando-as de alguma forma. Michele chegou a soltar um 'que susto', mas foi de imediato atendê-lo. Era a senhora Lourdes. Telefonara para perguntar se Michele iria mesmo e teve uma resposta positiva. Enquanto isso, as duas nem notaram os “bipes” do micro-ondas avisando o término do aquecimento do leite. A mãe de Michele pode ouvir um 'já estou a caminho' e observou a forma delicada de como sua filha pousou o telefone em sua base. Ela virou-se, encontrou-se com os olhos da mãe fixos nela e deu um sorrisinho – sua mãe retribuiu com um igual – e voltou até a cozinha. Tirou o copo do micro-ondas e pouso-o na pia. Abriu a primeira gaveta do gabinete e pegou uma colher de sobremesa também muito lustrosa. Virou-se e foi até o armário e dele retirou um pote com letras cursivas dizendo açúcar. Antes de adoçar o café com leite, Michele colocou na palma da sua mão esquerda, um punhado daquele pó, quase areia, branco e virou-o dentro da boca. Depois despejou uma colher rasa dentro do copo e mexeu o líquido em sentido horário. Colocou a colher dentro da cuba, guardou o pote de açúcar no mesmo lugar onde estava e sentou-se em uma das cadeiras para tomar seu café com leite. Estava bastante quente, e por vezes, pousou o copo sobre a mesa de mármore para segundos depois dar outros goles.


***


Michele escovava os dentes quando foi surpreendida pela mãe que aparecera de repente na porta. Ainda com a boca cheia de espumas, ela virou para a mãe e reclamou do susto de levara.

_ Desculpa. Não cria que te assustar. – Disse meio risonha. No fundo achou um pouco de graça e tentava aprisionar o riso dentro de si.

Michele continuava o vai e vem da escova e sua mãe continuou:

_ Qualquer coisa você me liga viu? Se precisar, vou com seu pai buscar você. Depois você deixa o telefone da casa da Lourdes em um papel perto da TV?

_ Hum hum. Respondeu entre as espumas e cuspiu.

_ Você tem o número do celular dela?

Ainda com a boca suja, Michele respondeu que sim e que colocaria junto ao outro perto da televisão.

_ Está bem, obrigada querida. – Respondeu a senhora já se direcionando a sala enquanto Michele inclinava sua cabeça sobre o lavatório e com a palma da mão esquerda colocava um pouco de água, que caia da torneira prateada, na boca, fez bochecho e cuspiu-a ainda um pouco esbranquiçada e espumenta.


***


Michele entrou apressada na sala, pegou sua blusa e se despediu da mãe com um beijo na bochecha.

_ Vai com Deus minha filha.

_ Fica com Deus. Nossa, ele ainda está com ela? – Perguntou sobre a personagem da novela e sua mãe apenas balançou a cabeça afirmando.

_ Mas ele já não sabe que ela não vale nada?

_ Sabe, mas você sabe como homem é bicho trouxa.

Michele limitou-se apenas com um "é" e um levantar simultâneo de sobrancelhas e ombros com um aparente ar de pena. Pena dos homens.

_ Preciso ir. Beijo.

Sua mãe apenas beijou o ar para retribuir o beijo da filha e escutou a porta fechar-se e a chave virar por fora: a tranca da porta. O azulado da sala ficou mais claro, quase um branco – comercial – e a mãe de Michele levantou-se para ir ao banheiro.


***


Era quase oito horas, a rua estava vazia, e o vento gelado assobiava de minutos em minutos. A calçada e o asfalto estavam úmidos devido à fina garoa que caíra minutos antes. Michele vestiu sua blusa. De braços cruzados, caminhava contra o vento enquanto seus cabelos pareciam querer voltar para o aconchego de sua casa. Ela caminhou cerca de três quarteirões e após virar à direita, seguiu por mais quatro na avenida, atravessou – um carro buzinou e de dentro do veículo, um rapaz gritou chamando-a de delícia. Chegou até a rua seis e viu que o carro do marido de Lourdes já estava estacionado em frente ao portão. Tocou a campainha e viu quando a dona da casa colocou a cabeça para fora da porta.

_ Entra querida! O portão está aberto.

Michele entrou. Complicou-se um pouco ao abrir o portão e enquanto adentrava na garagem pensava o quanto Lourdes deveria ser falsa e mentirosa já que ela (Michele) detestava ser chamada de querida e tinha para sim como uma característica de pessoas duvidosas, aquelas que chamavam as outras de querida ou querido.

Ficou parada na porta da sala enquanto Lourdes pegava um casaco marrom escuro e seu marido aproximava-se com a chave do carro na mão. Passou por ela e foi em direção ao portão. Dentro, estava Lúcia, uma menina de aproximadamente sete anos, cabelos louros e olhos castanhos claros. Vestia um vestido rosa claro, quase uma camisola infantil. Estava descalça e assistia a um desenho na televisão.

Lucia estava sentada no sofá que parecia enorme para ela e segurava um pedaço de pano próximo ao nariz. Do seu lado esquerdo, estava um raque moderno e muito bonito na cor magno, onde sobre estava uma televisão exageradamente grande, plana e tela fina. Havia uma mesinha de centro marfim onde estavam um pacote aberto de salgadinho, alguns biscoitos recheados dentro de um recipiente de plástico, um copo pequeno com um desenho de tartaruga e dentro dele um pouco, ainda, de refrigerante. Uma cortina clara cor creme caia até o chão e escondia atrás de si a janela larga que dava para a garagem. No extremo canto direito da sala, próximo a porta, estava um vaso com um grande comigo-ninguém-pode. Lúcia virou e deu uma rápida olhada para Michele que apesar de reparar nos móveis da casa e o modo que foram organizados, não deixara de reparar atentamente na menina. Na verdade, talvez nem tirou os olhos dela. Lúcia olhou rapidamente e voltou a assistir.

Lourdes orientou Michele a respeito do horário de Lúcia dormir e algumas questões alimentares. Michele, no entanto, pediu a ela que não se preocupasse porque tudo ficaria bem e, caso houvesse algum problema, qualquer que fosse, ligaria imediatamente.

Agradecimentos.

Michele sempre sorridente e meiga. Lourdes sempre simpática e um pouco acelerada. O marido calado e fora de cena, mas sempre observador. A garota... E a garota?

Enfim, Michele ficou sozinha com Lúcia.


***

Na primeira hora em que esteve cuidando da menina, nada de estranho aconteceu a não ser alguns olhares que vinham de Lúcia. Michele permaneceu a maior parte do tempo sentada na poltrona ao lado do sofá onde a garotinha estava sentada. O desenho não chamara atenção da babá que resolveu folhear algumas revistas de fofoca. Não havia, no entanto, fofocas recentes, mas tal fato não incomodava Michele que parecia estar mais preocupada com os cabelos, maquiagem e roupas das pessoas nas fotos. Ela sempre olhava à garota para verificar se já estava dormindo ou se precisava de alguma coisa. Em certo momento, por algumas frações de segundos, Michele a olhou e encontrou aqueles olhos claros mirando-a; um olhar petrificado e sério. Era mesmo uma garota sentada ou uma boneca de cera? Michele estranhou e sentiu um calo frio e sem saber o que fazer, apenas deu um tímido sorriso. Ela sabia que a garota provavelmente iria achar que se tratava de um sorriso amarelo, afinal, ela mesma acharia isso. Lúcia não demonstrou qualquer reação e apenas seu pescoço e sua cabeça moveram-se em direção à TV.

Preferiu achar que não era nada e continuou a reparar as pessoas das fotos e o quanto elas poderiam ser cafonas ou chiques. Sem perceber, olhou para Lúcia e mais uma vez, sentiu aquele vazio gélido na boca do estômago. Aqueles olhos castanhos, que naquele momento pareciam mais escuros, estavam voltados e pousados sobre ela: na babá. A expressão do rosto da garota era firme e rude. Não piscava, não sorria, não se mexia, nada além de olhar. Michele observou cada canto do rosto, o cabelo, as pernas estiradas para frente e cobertas por uma fina colcha branca com florzinhas cor-de-rosa, mas não conseguia tirar os olhos daquele olhar. Era como um imã que, por meio de alguma força insana, puxava seus olhos para os olhos da menina.

Michele não tinha como negar, estava assustada. Sorriu e perguntou à Lúcia se ela estava bem, porém não obteve resposta. A menina não parava de olhar.

_ Quer que eu faço um chocolate quente pra você?... Você quer dormir?... Está sentindo algo?

Silêncio.

Michele pensou em ligar para sua mãe simplesmente por ter sentido vontade ouvir a voz dela, mas não o fez. Foi então que Lúcia virou novamente para a televisão. Naquele momento, Michele não teve como deixar de olhar atentamente para a garota. Tentava ler algum sinal corporal que a deixasse mais calma ou que talvez, desse algum sinal do que fazer ou dizer. Lúcia coçou a cabeça do lado direito e Michele pensou consigo que era piolho.

Colocou a revista, que tinha em mãos, sobre a mesa do centro e levantou-se. Lúcia acompanhou, calada e séria, os movimentos da babá. Michele entrou por um pequeno corredor que dava à sala e assustou-se ao ver que era mais cumprido e mais estreito do que ela imaginara e lá na frente, podia-se ver a cozinha. As paredes do corredor eram de um amarelo muito claro e o piso de azulejos imitava madeira escura. Ao lado direto, havia portas com os batentes e as guarnições tudo muito bem envernizados, estavam fechadas. Passou pela primeira e deduziu ser o quarto do casal, passou então pela segunda porta e imaginou um quarto de menina bem arrumado com detalhes cor de rosa e desenhos de bonecas. Chegou à terceira porta que se encontrava entreaberta e percebeu que era o banheiro. Olhou para trás e pode ver apenas uma pequena ponta do sofá, a raque e a televisão de lateral, a luz esbranquiçada e opaca que saia da TV e o som do desenho, o qual Lúcia ainda assistia. Entrou no banheiro e fechou a porta.

Não demorou muito tempo lá dentro. Após a descarga e o cessar da água da torneira do lavatório, Michele abriu a porta. Pensava em várias coisas e até parecia estar falando sozinha. Lúcia estava em pé, parada de frente para a porta. O coração de Michele quase saltou pela sua boca junto ao grito que deu.

Lúcia não demonstrou qualquer reação. Estava parada, exatamente na frente de Michele e mantinha a cabeça inclinada de modo que encarava a babá. Talvez soubesse que isso causava medo e isso muito provavelmente a fazia se sentir melhor. Suas sobrancelhas estavam quase unidas uma a outra em sua testa e seus olhos tinham a expressão do ódio. Michele, parada, amedrontada, não conseguiu fazer nada além de esperar qualquer reação da garota.

Lúcia soltou um largo sorriso mostrando seus dentes brancos e parcialmente o rosa escuro do interior de seus beiços. A babá, mais uma vez, se assustou. Ela era, naquele momento, uma cadela maltratada a socos e a ponta pés que a qualquer movimento de seu dono, já era motivo de seus músculos agirem, mesmo que inconscientemente, em devesa de qualquer outra pancada que pudesse estar por vir. Sua cabeça estava sutilmente virada para a esquerda enquanto seus olhos, fixos na garota, perdiam toda a noção do que pudesse estar acontecendo ao redor. Mais tarde, Michele lembraria daquela cena no meio de um borrão preto; não lembraria nada do que cercava as duas. Enquanto Lúcia sorria quase angelicalmente, Michele ficou calada, estática.

_ Te assustei? – Lúcia perguntou sorrindo e, no entanto, não teve resposta.

Alguns segundos depois – hoje Michele juraria que foram minutos – Lúcia falou novamente:

_ O desenho acabou. Você coloca o Pica-Pau pra mim?

Uma voz suave de criança educada e bondosa tomou conta do estreito corredor amarelado. Lúcia chegou a quase a ingenuidade e Michele tentava entender o que havia de errado com a menina. Para ela, aquela voz não combinava em nada com a garota que se mostrou até o momento indiferente e até hostil.

_ Claro que coloco. – Michele respondeu logo depois de se agachar para ficar na altura de Lúcia. Ali, exatamente no meio do batente, agachada de olhos fixos nos olhos castanhos claros de Lúcia, Michele tentou demonstrar mais tranqüilidade e tentou transparecer estar confortável. Foi quando, pela primeira vez, olhou para o chão e reparou a soleira sob seu joelho direito e o pé esquerdo. Uma soleira irracionalmente preta, com linhas disformes de um vermelho sangue. Achou que as linhas haviam se mexido dentro da pedra escura, mas preferiu pensar que fosse um pouco de tontura por agachar muito depressa. Pousou as mãos no ombro de Lúcia e continuou:

_ Vou colocar o Pica-Pau, mas você não vai demorar muito viu? Já está quase na hora de você dormir. Quer que eu faça um chocolate quente, um mingau pra você ou um lanchinho leve?

_ Não obrigada.

_ Tem certeza que não quer comer nada?

_ Tenho sim.

Lúcia deu um passo à frente e sem que Michele pudesse prever qualquer movimento, deu um beijo na bochecha da babá que o recebeu com olhos arregalados e uma sensação do que parecia uma fina vontade de rir. Contudo, não era um riso de satisfação por estar conseguindo a confiança da garotinha, mas um riso desses que vem em momentos inapropriados como a morte de alguém ou uma notícia ruim. Um riso pelo susto e mistério que aquele beijo escondia.

Ainda com um sorriso rosado no rosto, Lúcia virou-se e começou a caminhar pelo corredor em direção à sala. Michele levantou-se e sentiu um pouco de desconforto em suas pernas, limpou as mãos na calça mesmo que inconscientemente e seguiu a garota. Reparou como os cabelos dela eram bonitos e sedosos, ondulados quase lisos e caiam até metade das costas. Talvez Lúcia sentisse os olhos da babá sobre ela, virou parcialmente a cabeça para Michele e lançou um olhar penetrante com uma expressão rude e agressiva. Naquele momento, Michele assumiu estar com medo. Assumiu para ela mesma e teve uma forte vontade de ligar para sua mãe dizendo que gostaria de ir embora o mais rápido possível. Alguma coisa dentro dela gritava insinuando haver algo de errado com aquela menina. Aquele olhar ameaçador e sinistro não durou mais que quarenta segundos.

Ao chegar na sala, Lúcia correu e pulou rindo no sofá e imediatamente sentou-se virada para a televisão. Michele pegou um controle cor cinza que estava sobre a mesinha do centro, apontou em direção a TV e apertou um dos botões. A fina gaveta do aparelho de DVD abriu trazendo o disco que Lúcia acabara de assistir. Com o dedo indicador, Michele suspendeu, pelo orifício do meio, o disco e logo em seguida com a ajuda do polegar guardou-o dentro do estojo que Lúcia abrira momentos antes e segurava com as duas mãos – ela mantinha o sorriso rosado e angelical. Michele pegou o estojo onde na capa havia o desenho de um pássaro de corpo azul, cabeça vermelha e pés brancos saindo de um pedaço de madeira cheio de furos cujos letreiros denunciavam uma palavra inglesa. Abriu-o retirou o disco e depositou na gaveta. Apertou um dos botões do próprio aparelho de DVD e observou o fechar suave e mágico.

Lúcia bateu palmas duas vezes quando o desenho finalmente começou. Ela estampava um sorriso aberto mostrando os dentes e seus olhos brilharam quando deram de encontro com os olhos de sua babá. Michele sentou-se na poltrona e também assistia ao desenho, já que simpatizava com o Pica-Pau e costuma assisti-lo quando menor.


***


Passaram-se cerca de trinta minutos quando Michele advertiu Lúcia de que ela precisava deitar, mas a garota recusou-se ir para cama e pediu para ficar só mais um pouco e Michele cedeu ao pedido.

_ Estou com fome. – disse a garota.

_ Posso fazer um mingau pra você, o que acha?

_ Ah não, eu queria chocolate.

_ Chocolate quente com um pedaço de bolo é claro. – Michele foi avisada pela Lourdes a respeito do bolo se caso ela ou sua filha sentissem fome.

_ Não! Quero chocolate de verdade. – Lúcia referia-se a barra de chocolate que estava guardado na parte mais alta do armário da cozinha.

_ Não. Esse chocolate não. Sua mãe disse que não era para você comer chocolate muito tarde.

_ Ah não... eu quero! Vai pegar!

_ Não Lúcia. Eu posso fazer um chocolate quente pra você, mas você não vai comer chocolate agora.

_ Vou sim! Vai pegar, estou mandando. Minha mãe está te pagando pra isso. – Já dizia em meio aos soluços que davam aviso prévio do choro manhoso que estava por vir.

Ao ouvir de uma pirralha que ela (a babá) estava ali porque sua mãe estava pagando e por isso teria que fazer o que ela queria, deixou Michele um pouco nervosa e chateada. Teve vontade de gritar com a garota, mas sabia que se fizesse aquilo, apenas Deus saberia qual versão Lourdes ouviria e isso a prejudicaria já que tinha o costume de ser chamada para trabalhar como babá por muitas outras senhoras, inclusive vizinhas de Lourdes. Controlou sua raiva e quando Lúcia começou a chorar cada vez mais alto, fingiu que nada estava acontecendo. A menina, no entanto, irritava com aquele choro agudo e falso. Era como se alguém estivesse fazendo muito mal a ela. Michele levantou-se da poltrona, caminhou até Lúcia e inclinou-se sobre ela. Olhou-a no olho e com o rosto quase grudado no rosto da menina disse:

_ Você pode chorar o quanto quiser. Eu não vou te dar chocolate. Você sabe melhor do que eu que sua mãe disse não. Agora está na hora de você dormir e não estou nem ai se você não está com sono, mas você vai deitar, por bem ou por mal.

No mesmo instante, Lúcia engoliu o choro. Seus olhos inundados de lágrimas brilhavam contemplando Michele.

_ Você vai querer chocolate quente ou mingau?

_ Mingau. – Respondeu um pouco engasgada.

Michele soltou um sutil sorriso de satisfação e pareceu querer mostrar à garota quem estava no comando e no controle. Foi até a cozinha enquanto, sem saber, Lúcia lançava olhares faiscantes e demoníacos em sua direção enquanto caminhava pelo corredor estreito.

A cozinha era praticamente da cor cinza. Tanto o fogão quanto a geladeira eram em inox e o armário branco com puxadores prateados. A pia, de alumínio, parecia de brinquedo e diferentemente de sua casa, Michele pensou por um segundo que se trava de uma pia de enfeite onde não poderia colocar muitas panelas ou deixar muita louça para ser lavada. Michele começou a abrir as portas do armário à procura dos ingredientes para o mingau. Um pouco desajeita, já que abrir os armários, gavetas, geladeira e cozinhar no fogão de outra pessoa davam a sensação de invasão de privacidade.

Após fazer o mingau à base de amido de milho, Michele voltou à sala segurando um pequeno prato de plástico cor de rosa. Já no corredor, teve um pressentimento ruim quando percebeu que a televisão estava desligada. Antes mesmo de chegar, Michele já inclinava a cabeça para ver mais rápido o que Lúcia estaria fazendo no sofá.

Televisão, aparelho de DVD desligados. No sofá, apenas a fina coberta que outrora era usada pela Lúcia. A luz estava ligada, mas não havia ninguém na sala. Do prato de plástico subia um leve vapor e um cheiro suavemente doce tomava conta do espaço. Michele pousou o prato sobre a mesinha do centro. Olhou atrás do sofá e não encontrou a garota. Chamou-lhe pelo nome, mas não obteve resposta. Era notável que estava um pouco perturbada e questionava-se onde ela teria ido e se escondido. A inquietação de Michele era também fruto da angústia por ter que dar algum esclarecimento – se fosse o caso e preciso – aos pais da menina que a confiaram sua segurança.

Michele gritava o nome de Lúcia. Abriu a porta da sala e foi até a garagem. Não a encontrou e verificou se o portão estava aberto, mas o encontrou trancado. Abriu-o e colocou os pés na calçada, olhou para sua direita e depois para a esquerda. Cerrava os olhos tentando enxergar o mais longe possível. Não sabia o que fazer e começou a lembrar dos olhares maquiavélicos vindos da angelical menina. Colocou os pés para o lado de dentro do portão, trancou-o e parou na porta da sala. Chamou pela Lúcia mais uma vez e reparou que a luz da sala estava desligada e sentiu um pouco de raiva pela piada que a menina estaria fazendo.

Um barulho na parte dos fundos da casa assustou Michele, que parada ao pé da porta, ainda do lado de fora da casa, olhou em direção ao quintal que dava para os fundos. Estava tudo desligado e ela se disse que não iria até lá sozinha e mais uma vez, gritou pela Lúcia. Outro barulho ecoou dos fundos gelando o estômago da babá cujo coração quase saltava pela sua boca. Um cala frio subiu pela espinha e suas pernas balançaram. Antes mesmo de adentrar a sala, apertou o interruptor que ficava próximo a porta e ligou a luz, fechou a porta e a trancou. Olhou para a mesa do centro e viu que já se formara uma fina camada sobre o mingau, algo semelhante ao que acontece com o leite e sua nata. Sua intenção era chegar até a cozinha. No corredor onde estava agora, achava-o mais estreito e teve receio de passar pelos cômodos cujas portas estavam fechadas. Olhou cuidadosamente dentro do banheiro quando passou por ele, mas não viu ninguém.

Chegou até a cozinha que parecia estar do mesmo jeito que ela deixara. A luz estava ligada e a panela de alumínio, que fora usada para cozer o mingau, estava suja sobre a pia. Foi até a porta da cozinha que dava para os fundos da casa e verificou se estava trancada, voltou até a janela e tentou olhar, por uma fresta, qualquer coisa no meio do escuro. Escutou um bater de palmas e acreditou ser alguém no portão, talvez alguém com a garota que fugira em busca dos pais. Passou pelo corredor quase correndo, chegou a sala e apressadamente virou a chave duas vezes e quando estava abrindo a porta, uma voz fina e doce soou atrás dela:

_ Você vai aonde?

Michele deu um grito e virou imediatamente para trás. Era Lúcia que se encontrava sentada no sofá com a coberta sobre as pernas e o prato com mingau sobre o colo. Levava naquele exato momento, uma colher cheia até a boca. Com as bochechas um pouco estufadas e os lábios esbranquiçados, sorriu para Michele que, com a mão no peito e ainda de olhos arregalados, foi até próximo da garota e agachou-se:

_ Onde você estava menina? Fiquei preocupada...

Lúcia franziu a testa e sua expressão era a de um ponto de interrogação. Engoliu parte do que estava dentro de sua boca e com esta ainda um pouco cheia, disse à Michele que não fora em lugar algum e perguntou se a babá estava louca.

_ Menina para de graça! Quando eu voltei da cozinha você não estava aqui e a televisão estava desligada. Eu até fui lá fora e quando voltei, a luz estava desligada e eu sei que quando sai, ela ficou ligada. Eu não sou louca.

_ Mas eu não sai daqui... – E voltou a colocar outra colherada na boca.

_ Saiu sim! Onde você se escondeu? Vou contar tudo para os seus pais. – Michele demonstrava ainda estar muito assustada e sua voz alta, por vezes trêmula, era quase a mistura do grito e do choro.

Lúcia olhava-a com olhos grandes e já demonstrava sinais de choro. Perguntou à baba porque ela estava falando daquela forma com ela, já que ela continuava negando ter saído para algum lugar e muito menos ter se escondido.

Neste instante, o celular de Michele, que estava sobre a poltrona, tocou e ela foi atendê-lo. Em questão de frações de segundo, ao virar de para pegar seu aparelho telefônico, Lúcia deixa escapar um sorriso e olhares maléficos. Era a mãe de Michele que ligava para saber se tudo estava bem. Após dizer que havia coisas estranhas, mas que não poderia falar naquele momento e falaria depois que chegasse em casa, Michele virou uma das abas de seu celular e colocou-o no único bolso de trás da calça moletom cinza. Virou-se para Lúcia que imediatamente levantou o prato rosado com as duas mãos em direção à baba e com a boca cheia, fez apenas um sinal com a cabeça para dizer que não queria mais.

Com o prato na mão direita, Michele informou à garota que era hora de dormir e foi preciso negar ao pedido de assistir um pouco mais.

_ Onde você dorme Lúcia? – Perguntou com muita serenidade.

_ No segundo quarto. Ele é só pra mim.

_ Nossa, você já tem um quarto só para você! Que legal!

Com seu sorriso rosado, Lúcia balançou a cabeça afirmando.

_ Acredita que eu não tenho um quarto só pra mim? Divido com a minha irmã.

_ Quanto anos você tem? Já é bem grande não é para dividir o quarto? – Lúcia perguntou com um ar de indignidade, talvez passasse pela sua cabeça que qualquer pessoa mais velha e maior do que ela tinha a obrigação de dormir sozinha. Algo parecido com o pensamento de crianças e poucos jovens que depois de questionar sua idade e perguntar com quem mora, ficam surpresos ao ouvir que você ainda mora com os pais.

Michele riu e apressou a garota a deitar-se. Lúcia foi na frente, abriu a porta do quarto e ela mesma ligou a luz. Diferente do que Michele havia imaginado, no quarto da menina prevalecia a cor azul – um azul bebê que fazia sobre tom com um azul quase roxo. Nas paredes, havia desenhos do rosto de um ursinho pintados na cor branca. A cama de solteiro – encostada à parede da janela – estava coberta por uma colcha rosa e um grande desenho da cinderela e na sua cabeceira estavam vários ursos de pelúcia. Ao lado oposto da cama estava uma espécie de penteadeira que provavelmente foi colocada ali por não haver espaço em outro cômodo. Sobre a mobília não havia perfumes e nem maquiagem; três escovas, um pente e várias bonecas de plástico e pano com suas costas refletidas pelo velho espelho – quebrado no lado superior direito – da penteadeira. Ao pé da cama estava um tapete felpudo amarelado. De frente para a cama estava uma cômoda branca e sobre ela uma televisão de vinte polegadas.

_ Olha o meu quarto tia...

_ Nossa que quarto bonito? Olha quanta boneca!

_ E os meus ursos. Adoro eles.

_ Caramba, você poderia me emprestar um ursos desses.

_ Você ainda brinca de bonecas? – O tom de voz havia mudado.

_ Brincar não brinco não. Mas tenho alguns ursos que eu deixo de enfeite na cama, assim como você fez na sua. Agora chega de enrolar.

Lúcia deitou-se e após deixar Michele cobri-la, desejou boa noite. Michele sorriu delicadamente e retribuiu o desejo, virou-se e observou as bonecas que pareciam sorrir e olhá-la com aqueles olhos azuis redondos vidrados, desligou a luz do quarto. Lúcia gritou pelo nome da babá assim que a escuridão tomou conta do cômodo.

Assustada e preocupada, Michele perguntou se havia algum problema e após Lúcia dizer que não conseguia dormir no escuro, a babá ligou o abajur que estava próximo da cama. Agora o quarto era banhado por uma luz azulada e ela percebeu as sombras sinistras nas paredes e no espelho. Saiu, fechou a porta, voltou até a sala, pegou o prato e foi à cozinha.


***


Já havia lavado a panela, o prato e os copos. Estava naquele momento, secando-os quando escutou um barulho de cama se arrastar, o que achou muito estranho, mas não pensou que fosse Lúcia. Acreditou que a garota não teria força para arrastá-la e nem motivo para aquilo, já que estava dormindo. Mais uma vez o barulho arranhou o silêncio mórbido da cozinha e após guardar o açúcar, os talheres, a panela, o prato e os copos em seus lugares, Michele foi até a sala, ligou a televisão, olhou para o relógio – era quase dez e meia – e desejou muito que Lourdes chegasse a qualquer momento.

Barulho de cama arrastada.

Não seria possível, não seria mesmo! Mas que droga de barulho seria aquele e que merda aquela estranha estaria fazendo? Será que não tinha mais nada para fazer? Será que era retardada e não conseguia entender as coisas? Michele levantou-se do sofá (desta vez não estava sentada na poltrona) e foi ver o que havia de errado no quarto da encantadora Lúcia. Caminhou de vagar e quando estava em frente ao quarto, aproximou o ouvido direito na porta e tentou escutar qualquer coisa estranha que pudesse estar acontecendo do lado de dentro, entretanto, não pôde ouvir nada. Abriu a porta lentamente, o azul predominava, mas não foi a cor gótica que chamou atenção de Michele; havia algumas bonecas próximas à entrada do quarto. Era como se elas tivessem descido da penteadeira por contra própria e estavam segurando a porta para que ninguém pudesse entrar. Michele escancarou a abertura e percebeu que não havia nenhuma boneca sobre a mobília, onde elas estavam anteriormente, e que Lúcia continuava deitada de olhos fechados enquanto o cobertor subia e descia lentamente acompanhando a sua respiração. Fechou a porta, virou-se e caminhou até a sala, olhava o tempo todo para o chão, talvez estivesse pensando ou tentando entender muitas coisas ao mesmo tempo.

Nem havia se aproximado do sofá quando Michele escutou novamente a madeira arranhar o chão e logo em seguida uma forte pancada. Assustou-se e correu para o quarto de Lúcia. Encontrou-a sentada na cama sobre a coberta. Lúcia estava com sua “camisola” levantada, as pernas abertas e seu tronco contorcido para frente; lambia a própria vagina. Lambia freneticamente movendo a cabeça para um lado e para o outro enquanto seus cabelos caiam sobre a região. Um rosnado parecia vir daquele ato.

Michele não teve tempo para sentir nada além de medo e nos primeiro minutos, não entendeu o que estava acontecendo e quando sua saúde mental conseguiu processar a imagem e entender o que Lúcia fazia, Michele levou a mão à boca. Estava chocada. Não sabia o que fazer: chamar atenção ou tentar fazê-la parar com aquilo? Foi quando, menos esperava, Lúcia levantou rapidamente a cabeça e a encarou: seus olhos profundamente negros e veias muito vermelhas que ziguezagueavam nos globos oculares, a boca aberta e a musculatura do rosto completamente enrijecida. Michele queria correr, mas suas pernas não a obedeceram.

Lúcia ficou de joelhos sobre a cama e violentamente contorceu sua coluna para trás como se fosse uma boneca de pano. Michele pulou de susto. Lúcia, envergada para trás, com os pés e os braços apoiando o corpo, parecia lamber o anus enquanto o quarto enchia-se de sombras e rosnares, tudo banhado por aquele azul fúnebre.

Michele correu em sentido à porta da sala. Por um segundo esqueceu que estava trancada e tentou, por três vezes, abri-la para só então girar a chave. A porta abriu com um forte estrondo que abafou passageiramente os gritos e choros desesperados de Michele enquanto, simultaneamente, as luzes e a televisão desligavam-se. Correu para o portão que também estava trancado. As chaves estavam penduradas, pelo lado de dentro, na porta. Michele olhava o chão, próximo ao portão, como se estivesse procurando algum buraco por onde pudesse passar e dar continuidade a sua fuga, sabia que esquecera o molho de chaves na porta da sala e não queria voltar para buscá-lo.

Houve então um grande estrondo dentro da casa e Michele logo imaginou que seria um armário, guarda-roupa ou qualquer coisa do tipo que fora virado com muita força. Voltou para pegar as chaves, no entanto, ao chegar ao pé da porta, encontrou Lúcia, em pé no meio da sala, descalça, no escuro, com uma cumprida faca, cabeça abaixada e de olhos fechados – não se movia. Michele, nesses momentos de coragem insana que parecem brotar de uma parte secreta da nossa consciência, esticou o braço o máximo que pôde para tentar alcançar às chaves, mas Lúcia moveu-se: levantou a cabeça, qualquer e toda expressão do rosto estava naquele momento, dentro de seus olhos, gritou assustadoramente e ao mesmo tempo, levantou a faca com um gesto ameaçador. Era um grito rouco de uma voz seca e cavernosa cheia de pedras e espinhos, tudo multiplicado por dois. Lúcia pareceu ir para frente, para cima de Michele, que inconscientemente, correu pelo corredor até chegar à parte dos fundos da casa. Estava muito escuro e Michele não fazia idéia de onde ficava o interruptor, o breu era completo e a hesitação ocorreu um pouco tarde: Lúcia já estava do lado de fora da casa, no quintal, com a faca em mão, quando Michele pensou em recuar e pelo portão da garagem, tentar chamar atenção de alguém que passasse pela rua.

Gritou pedindo socorro, ali mesmo no quintal, mas a garoa, que caíra horas antes, fizera o ar ficar um pouco frio, frio esse que deixa as pessoas um mais pouco preguiçosas dentro do calor e aconchego de suas casas e que muito convém para uma sociedade inocentemente covarde e paradoxalmente culpada por isso. Ninguém para ajudar Michele. Ocorreu-lhe então correr para dentro da escuridão e esconder-se dentro dela para que pudesse ganhar tempo e fugir correndo quando aquela coisa não estivesse mais pelo caminho ou estivesse desarmada.

Incontrolavelmente seus braços estavam esticados para frente e arregalava os olhos ao máximo, como se isso a ajudasse a enxergar no escuro. Bateu a perna em alguma coisa, uma dor aguda subiu pelo joelho, perna, barriga, peito até fechar os olhos e cerrar a boca enquanto mordia forte. No auge da dor, soltou um “porra” um tanto chorado, mas o medo do que a perseguia era maior e continuou caminhando dentro da escuridão tentando controlar a dor e manter os olhos e ouvidos bem abertos. Tateou uma espécie de plástico e agachou-se virada para direção de onde veio, ficou quieta enquanto ofegava à espera do pior. Sentiu o celular no bolso e rapidamente o pegou, a luz do visor iluminou precariamente o rosto de Michele, que dentro da escuridão, parecia uma assombração. Tentou discar o número de casa e pedir ajuda à sua mãe, no entanto, o celular desligava e ligava como se houvesse alguma interferência em sua bateria. O rosto de Michele, ora banhado ora não, por aquela luz esverdeada do seu aparelho telefônico, demonstrava pavor. Nos momentos de claridade, era possível ver que Lúcia estava atrás dela, com os cabelos caindo para frente, quase sobre o ombro direito de Michele. Como Lúcia teria chegado tão próxima de Michele sem que essa percebesse? O celular desligou por completo e Michele bateu-o contra a palma da mão, igual fazemos com as lanternas quando estão demonstrando sinais de fracasso, mas a falta de sucesso fê-la choramingar em meio a uma Ave Maria. Talvez fosse milagre ou simplesmente uma péssima brincadeira do mal, mas o celular recebeu uma ligação e o vibramento e a luz repentina do aparelho produziram cala-frios em Michele, mas seu corpo gelou-se por completo e seu coração pareceu parar de bater quanto viu o rosto de Lúcia, também banhado por aquela luminosidade grotesca, em frente ao seu. Michele rastejou-se o mais rápido que pôde para trás e em menos de um metro e meio, bateu as costas com força na parede. O celular desligou-se mais uma vez e sem saber o que fazer ou para onde correr, Michele deslizou-se pela parede, para sua esquerda, até encostar-se a outra parede. Estava mais frio. Ficou de pé com as palmas da mão grudadas aos tijolos e concreto, olhava para todas as direções e tentava sentir qualquer aproximação da garota. Dentro do escuro, de olhos arregalados e sem piscar, Michele sentia seus olhos arderem, mas as lágrimas de medo ajudavam a lubrificar os globos oculares. A luz acendeu e apagou-se logo em seguida. E nesta fração de segundos, pôde ver Lúcia em pé, no meio do caminho. A luz picou novamente, e Lúcia estava próxima à parede do lado oposto de Michele. Mais uma vez, a luz ofuscou a visão da babá, que já se acostumara ao escuro, e Lúcia estava a seu lado. A luz apagou-se e Michele correu, inconscientemente, correu para o quintal.

Michele não pensava em mais nada além da rua, da listra amarela que a corta pelo meio, das calçadas disformes e esburacadas, no portão aberto, na grama verde da praça próxima da sua casa, o semáforo vermelho – verde na avenida principal, nas mulheres com pó de arroz no rosto, na ajuda que alguma pessoa poderia oferecer. Escorregou. Michele chegou a bater a cabeça no chão, ficou um pouco tonta, olhou para o céu escuro, mas nada prendeu sua atenção. Suas costas doíam por causa do impacto com o piso do quintal. Por algum momento, não conseguiu levantar-se, inclinou a cabeça para trás e viu, de ponta cabeça, Lúcia em pé, parada, parcialmente banhada pelo escuro – era como se ela estivesse prestes a desprender do chão e despencar de cabeça no teto. No entanto, Lúcia, com um sorriso indecente, deu alguns passos para trás enquanto sua babá, estirada no chão de cabeça voltada para trás, a observava desaparecer dentro da escuridão.

Aquele era o momento certo para fugir, pensou Michele. Levantou-se e correu em direção ao portão – talvez esquecesse que estaria trancado – e ao passar pela porta da sala, notou que a televisão estava ligada com uma imagem congelada. Não reconheceu a pessoa na imagem, mas viu que era uma mulher gritando. Cerca de três metros antes de chegar ao portão, este se abriu como mágica. O sangue pareceu voltar a circular pela face de Michele que esboçou um pequeno sorriso ao ver que o caminho estava livre. Apressou-se e segundos antes de chegar a calçada, o portão fechou-se violentamente que provavelmente machucá-la-ia. Michele gritou com o rosto colado nas colunas de metal, pedia socorro, esperneava e sua voz falhava cada vez mais. Foi quando, bem próximo a sua cabeça, seu celular espatifou-se no portão. Olhou para trás, mas não viu ninguém e não precisava ver, sabia que fora Lúcia quem atirara o aparelho contra ela. Gritava cada vez mais, com as mãos grudadas no portão e os cabelos bagunçados. Michele suava.

Onde estaria o resto de mundo? Por que ninguém da vizinhança aparecia? Será que tinham alguma coisa com aquilo? Sabiam o que acontecia dentro daquela casa? Onde foram parar os carros? Onde estariam os cachorros das casas aos lados? Deus? Deus estava lá também? O portão abriu-se novamente. Sim, Deus estava lá, ela agradeceu a abertura e saiu correndo pela rua. Chorava e tentava gritar, mas estava muito rouca e sua garganta doía. Estava com sede e extremamente cansada, no entanto, não poderia parar só um segundo, mesmo que fosse para bater em alguma casa e pedir ajuda, ninguém sairia – ninguém saiu na hora dos gritos. Michele olhou para trás e viu Lúcia em pé, parada, em frente ao portão.

Virou a esquina e começou a correr rua a cima e achou que urinaria na roupa de exaustão. Passou a andar apressadamente, olhou para trás, como todos nós fazemos ou faríamos em momento de fuga, e viu Lúcia, na esquina, de “camisola”, cabelos soltos, faca na mão, parada e apenas observando a fuga.

Michele virou a próxima à direita, queria despistá-la (a Lúcia) e seguiu reto pela rua. Olhou para trás mais uma vez, viu Lúcia parada na esquina, observando-a correr. Para onde quer que Michele fosse, ela via Lúcia alguns metros atrás, observando-a.


***


Eram quase onze horas, quando Lourdes chegou em casa com o Marido. O carro fez, uma abertura maior e parou poucos centímetros do portão. Lourdes desceu do veículo, trazia um leve sorriso, abriu com chave o portão, adentrou e foi até o cadeado, que ficava pela parte de dentro, da entrada maior. Empurrou o lado esquerdo, depois o direito do portão, saiu do caminho e seu marido adentrou a garagem. Lourdes voltou a fechar e trancar o cadeado.

Os dois chegaram juntos à porta da sala, a luz e a televisão estavam ligadas. Lúcia dormia no sofá. Lourdes entrou e chamou pela Michele, foi pelo corredor e percebeu que todas as portas estavam abertas. Não encontrou a babá na cozinha, onde deduzira achá-la. Lúcia despertou.

_ Cadê a Michele querida? – Lourdes perguntou um pouco irritada.

_ Não, sei. Ela ficou brava e eu acabei dormindo. – disse meio sonolenta ainda.

_ Ela deve ter ido embora. – Disse o marido.

_ É, mas ela não podia deixar a Lúcia sozinha e com as portas todas abertas. Vou ligar na casa dela.

A mãe de Michele ficou mais preocupada do que sempre estivera. Informou a mãe da criança que sua filha não havia aparecido em casa ainda e que tentou ligar para o celular dela, mas ela não a atendeu.

Enquanto Lourdes falava com a mãe de Michele, seu marido foi até os fundos da casa, pela porta da cozinha que também se encontrava aberta. Ele apertou o interruptor e não encontrou ninguém. Voltou então para dentro de casa e não encontrou nada de diferente ou anormal em nenhum dos cômodos: nem no banheiro, no quarto do casal, no quarto de Lúcia, onde todas as bonecas estavam sobre a penteadeira. Lourdes também ficou preocupada com a babá, já que ninguém tinha notícias dela e o fato de sua linda e adorável filha ter ficado sozinha e a vulnerabilidade que isso implicava, assustava-a imensamente.


***


A mãe de Michele deu parte na polícia sobre o desaparecimento da filha. E Lúcia informou aos pais que a babá dissera que iria até a farmácia comprar remédio para dor de cabeça e acabou dormindo no sofá esperando por ela.

Enquanto familiares ainda estão, desesperadamente, em busca de notícias do paradeiro de Michele e quase todos criticam e ressaltam a falta de responsabilidade da babá por deixar uma criança sozinha, ela (a Michele) continua fugindo daquela garota que sempre está, a poucos metros, atrás dela. Inexplicavelmente, assim como a própria vida e tudo o que a cerca é inexplicável, Michele segue pelas ruas, sem tempo para descansar e para reparar em possíveis pontos de referência para ajudá-la em seu retorno.



Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 21/05/2012
Código do Texto: T3680094 


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