09 outubro 2012

Uma Casa na Zona Norte

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UMA CASA NA ZONA NORTE


Dizem que há muito mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia possa compreender e creio que isso seja realmente verdadeiro. Confesso que é difícil para eu contar essa história uma vez que choramos quando testemunhamos certos fatos que são duvidados por muitos ou quase todos aqueles que nos cercam.

A dificuldade para contar o que presenciei não está no fato de acreditarem ou não no que estou para dizer, mas sim no meu medo de rever ou de sentir novamente a sensação vazia e gelada que tive. Agora é noite, e mesmo envergonhado, tenho que dizer que estou quase em pânico: será que estou sendo observado? Ou talvez, se eu estiver atraindo estas coisas em falar sobre elas? Enfim, preciso desabafar.

Renato é um amigo meu. Mora na zona norte e devido a um problema na infância tem dificuldade de locomoção. Às vezes, utiliza uma cadeira de rodas, mas esse fato nada interessa na história a não ser a sua cadeira.

Assim como as plantas, nós homens também criamos raízes e a saudade sempre estará presente quando estivermos longe do nosso primosolo. Não seria diferente com meu amigo que na suas férias, resolveu voltar para sua terra natal, em Pernambuco, para matar a saudade e aproveitar a companhia da família. Como ele mora sozinho, fez-me o pedido de olhar sua casa enquanto estivesse viajando e eu sem saber no que isso daria, aceitei.

Fiquei de cuidar da casa na sua ausência. Digo na sua ausência porque havia outra presença além de mim.

Durante o dia, eu não chegava a sentir nada, mas quando a noite descia e eu precisava recolher-me, começava a tortura psicológica. Dormir com a porta do quarto aberta nem pensar: juro que havia alguém em pé velando meu sono. Ainda, às vezes, eu tinha a impressão de que havia alguém deitado na cama ao lado da qual eu dormia. Arrepio-me toda vez que penso nisso. Levantar no meio da noite para ir ao banheiro ou beber água também era muito penoso. Passar pelo corredor escuro não era o grande problema, o meu medo era ver, ao ligar a luz, alguma sombra na parede ou qualquer coisa que estivesse parado ou parada no meio da escuridão.

Creio que no sétimo dia, pela madrugada, eu havia levantando com a boca seca e a garganta grudando. Era como se eu estivesse sonhando perdido no deserto. Como o meu medo ainda não era tão grande para me impedir de ir à cozinha, levantei-me, passei pelo corredor estreito e escuro até chegar à sala. Não demorei muito para ligar a luz da cozinha que fazia entrada com a sala que ficou parcialmente clareada. Lembro e estou certo de que a cadeira de rodas desse meu amigo estava sempre próxima a um dos sofás e depois de beber água e sair da cozinha, antes mesmo de eu desligar a luz, reparei que a cadeira estava ao lado do sofá oposto – no outro lado da sala. Talvez fosse a sonolência ou mesmo a força que temos – às vezes, de querer não enxergar as coisas mesmo tendo certeza de que elas são reais e verdadeiras – que eu voltei apressado para o quarto e lá fiquei até o sol apresentar-se para me avisar que não haveria qualquer espírito corajoso o suficiente para zombar de mim em sua luz.

Certa tarde, chamei meu irmão para passar a noite comigo e provavelmente isso tenha enfurecido qualquer coisa que estivesse nesta casa. Já deixei avisado ao Renato para procurar algum tipo de ajuda quando voltar, ele, é claro, riu de mim e até deu entender que eu estava aprontando alguma em sua ausência.

Meu irmão chegou lá pelas oito da noite, quando eu por minha vez, já estava um tanto aflito. Claro que eu servi de piada para meu irmão que também não entendia o meu medo e achava que eu estava tramando alguma coisa. Eu não havia feito janta e meu irmão e eu estávamos famintos. A sugestão foi ligar para pizzaria. Depois de comer e beber um refrigerante de guaraná que me deixou, e provavelmente não o único, estufado, deitei-me no sofá para assistir à televisão enquanto meu irmão foi tomar banho. Ao ver próxima ao sofá, me questionou a respeito da cadeira de rodas. E esclareci sobre a paralisia que esse meu amigo teve ainda quando criança. Quando questionado se ele anda, informei que mancando e que não usa a cadeira de rodas com freqüência. Meu irmão ficou curioso ao saber que Renato é atleta – joga basquete de cadeira.

Conversa pra lá e pra cá e o tempo não pára para que possamos colocas as coisas em seus lugares. Já era quase meia noite quando fomos dormir. Eu fui para o quarto e meu irmão ficou na sala com a televisão ligada – ele diz que o barulho da TV ajuda agente adormecer rapidamente.

Noite quente, um clima abafado e as cobertas e lençóis foram deixados de lado, no entanto, em algum momento da madrugada, o ar fica um pouco gelado e quase sempre acabamos acordando para procurar qualquer coisa que possamos colocar sobre as pernas para esquentar um pouco. Era por volta das três horas quando escutei um barulho vindo da sala. De imediato apenas abri os olhos e imaginei que fosse meu irmão em busca de água ou banheiro. Como não houve outro barulho comecei a pegar no sono novamente quando me assustei com um forte estrondo, igual a um soco dado sobre uma mesa.

Levantei-me e fui ver o que acontecia. Sai do quarto e dei de cara com o corredor levemente clareado pela luz da cozinha que estava acesa. Não sei como explicar, mas juro que vi o que parecia um pássaro – ou a sombra dele – voar sobre minha cabeça. Agachei-me assustado e tentei entender por onde aquilo poderia ter entrado. Com o susto chamei pelo nome do meu irmão que não respondeu.

Ele não estava deitado no sofá e imaginei que estivesse na cozinha, mas algo pavoroso acontecia. Estava em pé como que se estivesse de castigo virado para a porta com o rosto quase grudado nela. De costas para mim, não respondia meus chamados. Eu realmente não sabia se eu me aproximava ou fazia qualquer outra coisa que seria nada. Até passou pela minha cabeça voltar para o quarto, deitar, dormir e esperar clarear. Nestes momentos, nossas atitudes não são totalmente controladas por nós mesmos e alguma coisa nos faz avançar mesmo quando nossa razão nos grita pra fugir.

Cheguei perto, chamei pelo seu nome umas três vezes, mas não respondeu. Hoje tenho quase certeza – pra mim – que nosso coração tem a capacidade de se locomover dentro do nosso peito: sentia-o já na minha garganta. Um vazio tomava conta do meu estômago – creio que nem seja um vazio, mas o medo que congela – e meus olhos estavam cheios de lágrimas. Creio também que a razão pelas lágrimas seja amenizar a maldade que talvez possa ser praticada contra nós. Que maldade era essa eu ainda não sei dizer e acho que nem quero saber. Quando percebi que meu irmão começava a movimentar-se, eu me afastei e fiquei apenas olhando e imaginando tudo e nada ao mesmo. Ele estava com os olhos abertos e ao se virar me encarou com dureza e profundidade. Deitou-se novamente no sofá e colocou as mãos sobre o peito. Não ousei fazer qualquer ruído e tentava não chorar.

Neste instante, a televisão ligou sozinha e clareou mais a sala. Não passava nada, o canal estava fora do ar e havia apenas a tela azul claro. O susto foi enorme e o que mais assusta nestes casos é a nossa razão não encontrar razões para essas coisas que muitos têm explicações e que, geralmente, confunde e aumenta mais o nosso medo.

Eu não podia mais ficar ali esperando qualquer coisa e nem podia também sair correndo e deixar meu irmão deitado sobre o sofá. Liguei a luz da sala e ao mesmo tempo, a luz amarela alaranjada da cozinha e a TV desligaram. Meu irmão acordou assustado perguntando-me o que eu fazia. Tentei contar rapidamente, mas não fui acreditado e nem eu mesmo sabia exatamente o que contar e por onde começar.

Pela voz um tanto nervosa e pela expressão de seu rosto, percebi que eu não era o único assustado naquela casa. Hoje, contudo, percebo que os nossos sustos eram diferentes na mesma situação e que após alguns segundos de muita incompreensão individual, nós dois passamos a compartilhar o mesmo medo. A porta da cozinha fechou-se bruscamente assustando-nos com a batida e segundos depois o porta do banheiro e logo em seguida a porta do quarto onde eu dormia, então a porta de outro quarto também. Todas se fecharam uma após a outra sempre fazendo muito barulho e a cada batida de porta era como levar um soco na boca do estômago e alimento para o medo que me deixava mais desnorteado.

Naquele momento dos acontecimentos, nós já estávamos grudados um ao outro, apenas olhando em direção às pancadas provocadas pelas portas.

_ O que está acontecendo?

_ Não sei. Era isso o que eu estava tentando te contar. Respondi.

Após um sorriso sem graça, medroso e desesperado meu irmão replicou:

_ É apenas o vento. Deixa de ser trouxa.

Após a palavra “trouxa” outra coisa impressionante aconteceu: a porta da cozinha, que outrora havia se fechado violentamente, abriu aos poucos, como se alguém a abrisse com cuidado. A única coisa que podíamos fazer naquele instante era olhar e esperar o que poderia acontecer. Meu coração, creio, já nem batia mais. Lembro apenas da escuridão que estava por de trás da porta enquanto esta se abria e imagens de espíritos ou qualquer outra coisa semelhante vinha a minha mente, o que me perturbava mais ainda. Aquela porta abriu-se não por completa o que piorava a nossa situação e de repente a escuridão deu lugar à luz amarelada. Após isso, a porta do banheiro também começou a se abrir, sei disso por que sua madeira gemia ao abrir ou fechar fazendo aquele som clichê de filmes e histórias de terror, e a luz também tomou o lugar do escuro.

Após cerca de dois ou três minutos, a casa toda estava iluminada e todas as portas que haviam se fechado, abriram-se sozinhas – estavam entreabertas.

Foi quando o celular do meu irmão tocou – era o despertador. Já era cinco e meia da manhã e nunca estivemos tão felizes por ouvir o despertador do celular avisando que já estaria na hora de levantar para ir ao trabalho. Não esperamos nem mais um minuto. Meu irmão arrumou-se para trabalhar e eu me arrumei também para ir para casa e ligar para o Renato para visá-lo que não passaria mais a noite em sua casa, apenas daria uma olhada durante o dia em dias intercalados.

Depois de trancar tudo e pegar o ônibus, meu irmão resolveu não ir trabalhar e ficar o dia em casa descansando. Confesso que é difícil descansar agora, tanto eu quanto ele não conseguimos ficar muito tempo sozinhos e nem gostamos de falar sobre o assunto. Estou apenas contando esta história por que eu preciso limpá-la de dentro de mim ou tentar.

Voltei outros dias para olhar a casa e providenciar qualquer coisa que precisasse, mas meu irmão já havia advertido que jamais voltaria lá comigo e que se eu voltasse seria problema meu.

Renato voltou de suas férias e eu tentei contar superficialmente o que acontecera e ele disse que nunca viu ou sentiu nada. Acho que ele ficou magoado quando eu disse que jamais colocaria os pés dentro daquela casa, e até hoje, arrumo alguma desculpa quando sou convidado para um almoço ou festa de aniversário de alguns de nossos amigos.

Ainda não sei o que aconteceu e o que poderia ter feito aquilo e prefiro ficar sem saber. Até hoje, na minha própria casa, não consigo e não deixo nenhuma porta que seja aberta pela metade.

Meu irmão disse que não se lembra de quando ficou em pé virado para a porta e até chega a brigar comigo dizendo que estou mentido ou tentando assustá-lo. Eu por minha vez, se pudesse apagar certas coisas da minha mente tudo seria mais fácil.

De uma coisa eu estou certo. Nem eu e nem meu irmão seremos os mesmos e nem adianta tentarmos porque não esqueceremos e não importa o quanto nos esforcemos para acreditarem em nós que ninguém irá acreditar. A solução é seguir em frente, sempre cuidadosos com qualquer porta entreaberta, qualquer cômodo escuro, qualquer lâmpada, qualquer coisa...


Samir S. Souza 
Conto enviado para Editora Estronho – concurso “Malditas – As casas têm atmosfera”- Conto não premiado.

04 setembro 2012

Domingo de Maria

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DOMINGO DE MARIA


Seus olhos não piscam. Estão inundados na imensidão azul do céu. Sua consciência, subestimada pelos os que a cercam, parece estar perdida para além do universo onde nascem e morrem as estrelas. Poucas nuvens passam lentamente, para quem sabe, pelo quadrado da janela, cumprimentar aquela senhora deitada em sua cama.
Naquele instante, próximo dali, passou uma ambulância com sua sirene aos gritos e aquele som agudo desesperado causou certo desconforto naquela senhora que fechou os olhos e uma expressão sutil de dor tomou conta de sua face até que não se pôde mais ouvir as sirenes e ela voltou a olhar em direção ao céu.

Era domingo e escutavam-se pessoas na rua, crianças rindo e gritando – talvez estivessem correndo. Alguém gritou “duas alfaces e alguns tomates”, era voz de mulher. Uma leve brisa adentrou o quarto e um leve cheiro de frango assado alcançou a Dona Maria que chegou a acreditar que estava próximo da hora do almoço. Um frágil sorriso surgiu dando um pouco de cor ao seu semblante sofrido e triste. Era como se ela fosse levada ao passado e, de olhos fechados, recordava-se dos domingos em que ela mesma preparava o almoço para a família.

Lembranças foram quebradas com o rouco barulho de uma tosse seca – era Dona Rute que, com dificuldade, saia do quarto para ir até o pátio tomar um pouco de sol com os demais.

De olhos abertos – castanhos claros – tudo o que estava fora daquela janela parecia apenas sonho, nada era real. Uma lágrima escorreu. A solidão é dolorosa e vem acompanhada de fantasmas. Desde que fora internada pela sua filha caçula, há seis meses, Dona Maria não recebeu mais visitas. No primeiro mês, ainda conseguia caminhar, mas logo adoeceu e a ferida da sua perna, que passa a maior parte do tempo inchada, piorou. Por ficar muito tempo deitada e por não fazerem sua higienização adequadamente, ela está com outra ferida.

Naquele instante, Dona Maria lembrou-se da filha caçula, do filho mais velho que se mudara de cidade com a esposa e do marido que morrera de cirrose há alguns anos. De todas as lembranças e saudades, uma era mais dolorosa: a da filha. Dona Maria gostaria de entender o porquê de algumas coisas. Lembrou-se do dia em que queimou o braço com o óleo quente de uma das panelas que virara contra ela – estava preparando a janta de sua filha que logo chegaria cansada do serviço. A moça fora pra cima da mãe com raiva daquele descuido. Chamou a senhora de burra e imprestável. Dizia que chegava cansada do serviço e ainda tinha que socorrer velha teimosa. Dona Maria, por sua vez, queria dizer que estava apenas fazendo um arroz fresco, mas raramente lhe era permitido que terminasse suas frases. Qualquer um viria que ela estava em carne viva.

Aquela senhora chorava calada e apesar de tudo, gostaria que sua filha fosse vê-la. Quem sabe levá-la só para um rápido passeio pela avenida ou um pequeno sorvete. Imaginou que ela também estaria sentindo sua falta e pediu a Deus para que não a deixasse tão ocupada para que pudesse fazê-la uma visita de domingo. Logo, outra lembrança tomou conta:

Certo dia, já de noite, quando estavam as duas sentadas no sofá assistindo à novela, Dona Maria – que passara o dia inteiro sem falar com ninguém – quis saber sobre a filha que sem responder qualquer coisa fez apenas um sonoro shiii para que sua mãe não falasse mais. Às vezes, é mais forte do que nós e quando menos esperamos, queremos compartilhar algo com quem amamos. E naquele momento, mais uma vez, a ela foi pedido silêncio. Esperou então para falar quando estivesse passando as propagandas:

_ Hoje não tinha pão e nem bolacha. Fiz só um pouquinho de café porque o pó está acabando. Você pode...

_ Cacete mãe! Não vê que eu estou vendo TV. Não! Não tenho dinheiro. Já te dei cinqüenta reais semana passada.

_ Não minha filha, eu não estou dizendo...

_ Cala a boca! Não posso nem assistir em paz. Já passo o dia inteiro fora de casa com várias pessoas falando no meu ouvido e agora tenho que aturar a senhora.

Naquela noite, Dona Maria terminou de ver a novela sozinha. Via a televisão embaçada por causa das lágrimas que queriam escorrer, mas que ela não deixava. E perguntou-se como é que sua filha poderia tratá-la assim se era ela, apesar de toda dificuldade, quem limpava a casa, lavava a roupa, passava o uniforme de serviço e fazia a comida.

Hoje, muitas coisas ainda passam pela cabeça de Dona Maria que, deitada em sua cama sozinha com seus fantasmas, continua esperando a hora de qualquer visita. Mesmo as pessoas muito fortes não conseguem manter a força todo o tempo e aquela solitária senhora virou sua cabeça em direção à parede da janela e começou a chorar. Silenciosamente, ela desabou. Segurava os soluços, e a dor que sentia parecia querer saltar-lhe pelos olhos. Levou sua mão enrugada, um pouco áspera e tremula ao rosto. Nestas horas, ninguém sabe dizer exatamente do que sente vergonha.

Engoliu o choro, tentou respirar fundo e olhou pela janela. Um pássaro, talvez preto, parecia grudado com alfinete na nuvem que parecia um tufo de algodão colado na pintura azul. O pássaro voou: Para onde será que estava indo? O que será que estava procurando? O que será que encontraria no caminho? Essas foram as perguntas que Dona Maria fez a si mesma e desejou ser um passarinho e logo depois, disse que estava velha demais para voar, tão velha que ninguém a queria.

Queria levantar, pegar uma vassoura e fazer uma pequena limpeza naquele quarto. Já nem percebia o cheiro daquele lugar. Sentiu dor ao tentar levantar-se e se envergonhou ao perceber que estava usando fraldas. Encostou as costas novamente no colchão e sua ferida doeu: parecia queimar. Ficava muito tempo deitada com dor e em uma única posição e isso cansava muito e Dona Maria desejou que algum daqueles jovens que aparecem sem avisar, entrasse por aquela porta para ler um livro ou jogar conversa fora.

Já era quase três horas da tarde quando começou a sentir algo estranho e um pouco de dificuldade para respirar. Em um dado momento, ficou sonolenta. Conversou com Deus – uma conversa particular. Foi quando Dona Maria recebeu em sua janela, a visita de um beija-flor: azul, verde e um leve tom alaranjado. Escutava-se o forte-bater-de-asas-sem-parar e o brilho das penas e a mistura de suas cores com os movimentos quase hipnotizaram aquela senhora que, por alguns minutos, esquecera-se do desconforto da fralda, da dor e da solidão. Aquele delicado ser serenou o dia de Dona Maria. Ela, por sua vez, cochilou sem perceber olhando contente e atentamente aos movimentos, formas e cores da pequena ave.

Muitas coisas nesta vida ficam sem explicações e talvez seja melhor que não as tenhamos. É provável que aquela senhora tornou-se passarinho, quem sabe um beija-flor. Sem despedidas, Dona Maria deixou sua casca velha sobre a cama, e provavelmente, aceitou companhia para seu vôo solitário.


Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 11/07/2012
Código do texto: T3772510



"Conto entregue no Centro de Educação e Cultura Francisco Carlos Moriconi em Suzano para o 8º Concurso Literário de Suzano. - Conto não premiado"

27 julho 2012

Os Namorados (Quando o Medo "Se Torna Realidade")

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OS NAMORADOS (QUANDO O MEDO “SE TORNA REALIDADE”)


Eles estavam em frente a casa dela, um casal de namorados que, atualmente, é menos comum de se verem parados nos portões das casas. Ele havia acabado chegar e ela notou que seu semblante estava enrijecido. Ela logo se antecipou no cumprimento como tentativa de deixá-lo mais calmo.

_ Oi amor. – Disse ela.

_ Amor o cacete. Sua vagabunda do caralho! Quem você pensa que eu sou? Em sua vadia? Eu te vi ontem abraçada com um carinha e logo depois entrou no carro dele. Estava indo pra onde sua filha da puta? Ia dar pra ele em alguma esquina é sua cadela? Você é tão filha da puta que nem se preocupou de sair com alguém longe daqui... – Ele dizia em meio a gritos de raiva.

_ Do que você está falando? Que carinha? Onde?

_ É tão cadela que se faz de santa. Vai me dizer que é mentira que você estava abraçada com um maluco moreno lá no estacionamento do supermercado lá embaixo? E que você ainda entrou no carro dele. É mentira minha? Você é uma vagabunda, uma porca imunda. Pra quantos mais você dá em sua cadela? Tava indo pra onde com ele? Ia dar o cuzinho igual você dá pra mim vadia filha da puta? E que carro é esse na garagem? Ah não acredito... é o mesmo carro de ontem. Cadê ele? Chama ele ai sua vagabunda.

Neste instante apareceu um rapaz moreno saído da porta de vidro que escondia o quintal da rua. Segundos depois, a janela da sala, logo ao lado, abriu-se e um senhor apareceu seguido de uma senhora. Ela chocada, ele com expressão de pedra.

O namorado deu um passo para frente como quem fosse passar por cima de quem estava em sua frente para enfrentar, aos socos, o rapaz moreno que vinha em direção ao portão. Ela deixava cair algumas lágrimas e estava vermelha. Algumas pessoas na rua permaneciam paradas observando o ocorrido enquanto o namorado continuava com as ofensas gritadas.

_ Melhor se acalmar rapaz. – Disse o senhor pela janela.

_ Sua filha não vale nada... – E foi interrompido com um estrondoso grito de sua namorada que parecia estar em chamas de ódio:

_ Já chega! Cala sua boca! Ele é meu irmão! Meu irmão! – Saiu correndo para dentro de casa e foi seguida pelo irmão. A janela também se fechou. E ele ficou parado, olhando para as grades de ferro do portão...

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 27/07/2012
Código do texto: T3800177

05 junho 2012

Merenda


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MERENDA

O sol ainda não dava seu sorriso quando ela acordou. Estava um tanto aflita e pensava o que daria para seus dois filhos, um de cinco e outro de dois anos, comerem no almoço. Pensava na hora do meio dia porque sabia que seus meninos já estavam acostumados a passar as manhãs em jejum, mesmo o mais novo, muitas vezes, reclamar de fome e o mais velho pedir um pão que fosse.
O marido saíra por volta das três e meia da manhã para o serviço. Trabalhava em porto de areia carregando caminhão grande para receber um salário mínimo. Bebia uma cachaça, isso era verdade, e talvez isso complicasse um pouco mais a situação financeira da família.
Ela lavava, no punho enquanto ouvia Eli Corrêa pelo radinho AM, uma camiseta verde já desbotada em um tanque improvisado. Camiseta essa do seu filho mais velho, quando este apareceu pela porta da cozinha pisando descalço no chão de terra batida esfregando um dos olhos e dizendo que estava com fome. Ela fingiu, com muita dor no peito, não ter ouvido nada e o mandou entrar e colocar um chinelo.
Era ainda dez horas da manhã quando ela pegou uma tapuer, uma que não fosse muito transparente, e disse para o mais velho que logo voltaria e que era para eles o irmão ficarem dentro de casa e não deixar ninguém estranho entrar. O mais novo ficou chorando com sua barriga saliente pela metade por uma blusinha cinza já de tamanho perdido enquanto o irmão tentava convencê-lo a parar com o choro.
Ela desceu a rua e foi até a escola pública, na entrada do bairro. Chegou de vagar, olhando para todos os lados como se esperasse que alguém a repreendesse por estar ali. Uma professora com avental azulado apareceu e a olhou e logo em seguida viu a vasilha em sua mão. A professora ia ao banheiro, no entanto, já sabendo do que se tratava e com um semblante de pena, perguntou àquela senhora de chinelo, pés sujos e parte da roupa molhada, se ela já fora atendia e abriu o portão para que ela pudesse entrar e ir até a cozinha.
Ela foi.
Naquele dia, havia dado aos alunos sopa de letrinhas e a merendeira encheu a tapuer até a boca. Fechou a vasilha e entregou àquela senhora que, parada diante da porta da cozinha da escola, parecia sentir vergonha e gratidão.
Sentiu o calor da sopa nas mãos, agradeceu e saiu com um quase sutil sorriso no rosto. Antes de atravessar a rua, notou que um grupo de mulheres no ponto de ônibus a olhava e cochichava, mas não deu importância. Quando subia a rua, escutou uma menina maldosa dizer qualquer coisa a respeito da comida da escola, sentiu um vazio no peito e uma vergonha acompanhada de dor, mas logo se lembrou de seus meninos e, feliz, subiu mais apressada dizendo a si mesma que não estava fazendo nada de errado. Vergonha era matar ou roubar.
Chegou em casa e encontrou o caçula com o rosto manchado pelas lágrimas, mas logo o garoto parou com o choro e sua mãe o colocou no colo para dar a sopinha. O outro segurava um prato de plástico sobre os joelhos e estava agachado perto da televisão enquanto levava colheradas para dentro da boca bem aberta na tentativa de não derramar nada – para não apanhar.
Ela guardou um pouco da sopa. Ia mais tarde à casa da Neuza para lavar e passar algumas roupas em troca de alguns trocados e pensava se iria ou não ao mercadinho pedir, fiado, alguns pés de galinha para servir de mistura na janta.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 05/06/2012
Código do texto: T3707760
 

24 maio 2012

De Quem é Esse Maracujá?


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DE QUEM É ESSE MARACUJÁ?


Um belo maracujá andava pela rua esta manhã. Não sei dizer seu nome e nem onde morava, para onde estava indo ou que procurava. Sei que era um maracujá, qualquer um é capaz de identificar um: a mesma casca enrugada – são poucos os casos de maracujás lisos – e as pálpebras pesadas sobre um brilho suplicador, tristonho e esperançoso. Os lábios um pouco moles, ora sorrisos sutis, ora sem expressão nenhuma. E o rolar lento, cauteloso entre a multidão que não tem tempo para perder, nem um segundo que seja.
Muitos frutos não gostam de maracujá, dizem que são muito azedos e há aqueles que simplesmente não gostam por achar uma fruta não muito bonita. Outros adoram, adoram os derivados e há aqueles que amam a polpa pura. No entanto, igual a qualquer outro fruto, há maracujás que não são tão azedos, são doces dentro do seu azedo, mas é esse gosto que trava a boca, que parece diminuir a língua, que parece arder em gelo que faz o maracujá ser o que é. O que seria da banana se tivesse o gosto da jaca?
O maracujá do qual estou falando estava sozinho. É impressionante como muitos maracujás ficam sozinhos e alguns por muito tempo. Carregava uma sacola branca de plástico, não era possível ver o que havia dentro. Vestia uma calça marrom desbotada e uma camisa branca de listras pretas. Estava ali, parado na esquina, enquanto os carros passavam em um vai e vem. A faixa de pedestres, cinza escuro – branco – cinza escuro – branco – cinza escuro – branco, parecia não servir para nada. Alguns outros frutos estavam próximos dele, e também queriam atravessar a avenida. Alguns corriam entre os breves intervalos dos carros que buzinavam. O maracujá olhou para um abacate que colocou a cabeça um pouco para fora da janela de seu carro e gritou para um pêssego rígido que saísse do meio do caminho.
Não vi para que lado foi aquele maracujá, o meu ônibus chegara e estacionou tampando minha visão no exato momento em que alguns carros pararam e o maracujá, junto a três morangos, duas bananas, um abacate, uma maça e uma pêra atravessaram a rua.
Kafka tinha para ele a metamorfose em uma barata, hoje eu tenho para mim que muitas frutas, quase todas, quando chegam em um determinado tempo de suas vidas, viram maracujás. Todos maracujás pertencem a alguém – e quando mais jovens, outras frutas pertenceram a eles (e ainda pertencem) – e todos os maracujás, apesar de serem um pouco ressecados e enrugados por fora, são úmidos com sua polpa repleta de sementes. Alguns frutos já perderam um dos seus ou os seus maracujás, mas nunca, jamais os esquecerão; coisas da vida.
Por incrível que pareça, quando sentei em um dos bancos do ônibus, abri um livro de contos da Clarice Lispector e comecei a ler uma história de uma maracujá que por ser maracujá fazia companhia para ela mesma, já que ninguém se interessava em conversar com ela por ser maracujá. Tantas coisas são tão tristes e chegam a ser humilhantes. Percebi, talvez eu esteja errado já que ainda sou um banana, que é a carência de muitos maracujás que os fazem falar bastante e que é preciso ter paciência, respeito, carinho, amor, cautela, zelo pelo meu maracujá (e por todos os outros) que está em casa agora, preparando o meu almoço. Pelo meu outro maracujá que também vai chegar, mais tarde em casa, cansado e que a primeira coisa que faz é perguntar pelos seus frutos e cumprimentá-los.
Como gostaria de ter conversado um pouco com aquele maracujá da esquina, diante da faixa de pedestres, com uma sacolinha em mãos, suas as roupas um pouco desbotadas. Todo fruto tem sua história.
Um dia, eu também me tornarei um maracujá e espero que não muito azedo e não tão esquecido.


Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 24/05/2012
Código do texto: T3686339 
 
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21 maio 2012

A Babá e o demônio Angelical


imagem promocional do filme "O Último Exorcismo"


A BABÁ E O DEMÔNIO ANGELICAL


Michele - Esse era o seu nome.

Estava pronta para sair. Bem perfumada – um cheiro, no entanto, leve e plumoso – , cabelos penteados e vestia uma calça moletom cor cinza e uma camiseta rosa claro. Sua blusa de lã fina estava dobrada sobre o sofá e ela repetia para si mesma que não poderia esquecê-la, já que mais tarde faria mais frio. A televisão estava ligada e a luz azulada que saía do aparelho enchia a sala criando sombras fantasmagóricas com a ajuda do abajur, sofá e a cabeça de sua mãe sentada assistindo.

Michele foi até a cozinha, abriu a geladeira e tirou uma caixa de leite. Após colocá-lo pela metade em um copo grande de vidro, foi até o fogão e verificou se havia café no bule que brilhava devido ao bom capricho de sua mãe. Entornou o líquido escuro dentro do copo onde estava o leite e ficou observando a rápida, mas delicada mistura do branco com o café e a forma de como aquele marrom chocolate subia pelo meio da brancura e em segundos tornava tudo marrom claro.

Pousou o bule na boca de trás do fogão e colocou o copo dentro do micro-ondas, apertou os botões lisos e modernos e programou para cinqüenta segundos.

Sua mãe, da sala, ao ouvir os sons agudos dos botões do aparelho sendo acionados, virou um pouco a cabeça para o lado, como que se estivesse facilitando a viagem do som da sua voz até a cozinha:

_ Você não vai jantar antes de ir?

_ Não, mãe. Não estou com fome. Vou tomar só um café com leite.

_ Vai comer pão?

_ Não, não quero.

_ Você devia ter me avisado, assim eu teria feito um bolo para você tomar café. Ou teria ido ao mercado comprar uma bolachas.

_ Não se preocupa mãe. Não estou com fome. Se eu sentir fome eu como alguma coisa lá.

_ E você vai poder?

_ Não sei. Se eu não puder, eu como quando eu chegar.

O telefone tocou assustando-as de alguma forma. Michele chegou a soltar um 'que susto', mas foi de imediato atendê-lo. Era a senhora Lourdes. Telefonara para perguntar se Michele iria mesmo e teve uma resposta positiva. Enquanto isso, as duas nem notaram os “bipes” do micro-ondas avisando o término do aquecimento do leite. A mãe de Michele pode ouvir um 'já estou a caminho' e observou a forma delicada de como sua filha pousou o telefone em sua base. Ela virou-se, encontrou-se com os olhos da mãe fixos nela e deu um sorrisinho – sua mãe retribuiu com um igual – e voltou até a cozinha. Tirou o copo do micro-ondas e pouso-o na pia. Abriu a primeira gaveta do gabinete e pegou uma colher de sobremesa também muito lustrosa. Virou-se e foi até o armário e dele retirou um pote com letras cursivas dizendo açúcar. Antes de adoçar o café com leite, Michele colocou na palma da sua mão esquerda, um punhado daquele pó, quase areia, branco e virou-o dentro da boca. Depois despejou uma colher rasa dentro do copo e mexeu o líquido em sentido horário. Colocou a colher dentro da cuba, guardou o pote de açúcar no mesmo lugar onde estava e sentou-se em uma das cadeiras para tomar seu café com leite. Estava bastante quente, e por vezes, pousou o copo sobre a mesa de mármore para segundos depois dar outros goles.


***


Michele escovava os dentes quando foi surpreendida pela mãe que aparecera de repente na porta. Ainda com a boca cheia de espumas, ela virou para a mãe e reclamou do susto de levara.

_ Desculpa. Não cria que te assustar. – Disse meio risonha. No fundo achou um pouco de graça e tentava aprisionar o riso dentro de si.

Michele continuava o vai e vem da escova e sua mãe continuou:

_ Qualquer coisa você me liga viu? Se precisar, vou com seu pai buscar você. Depois você deixa o telefone da casa da Lourdes em um papel perto da TV?

_ Hum hum. Respondeu entre as espumas e cuspiu.

_ Você tem o número do celular dela?

Ainda com a boca suja, Michele respondeu que sim e que colocaria junto ao outro perto da televisão.

_ Está bem, obrigada querida. – Respondeu a senhora já se direcionando a sala enquanto Michele inclinava sua cabeça sobre o lavatório e com a palma da mão esquerda colocava um pouco de água, que caia da torneira prateada, na boca, fez bochecho e cuspiu-a ainda um pouco esbranquiçada e espumenta.


***


Michele entrou apressada na sala, pegou sua blusa e se despediu da mãe com um beijo na bochecha.

_ Vai com Deus minha filha.

_ Fica com Deus. Nossa, ele ainda está com ela? – Perguntou sobre a personagem da novela e sua mãe apenas balançou a cabeça afirmando.

_ Mas ele já não sabe que ela não vale nada?

_ Sabe, mas você sabe como homem é bicho trouxa.

Michele limitou-se apenas com um "é" e um levantar simultâneo de sobrancelhas e ombros com um aparente ar de pena. Pena dos homens.

_ Preciso ir. Beijo.

Sua mãe apenas beijou o ar para retribuir o beijo da filha e escutou a porta fechar-se e a chave virar por fora: a tranca da porta. O azulado da sala ficou mais claro, quase um branco – comercial – e a mãe de Michele levantou-se para ir ao banheiro.


***


Era quase oito horas, a rua estava vazia, e o vento gelado assobiava de minutos em minutos. A calçada e o asfalto estavam úmidos devido à fina garoa que caíra minutos antes. Michele vestiu sua blusa. De braços cruzados, caminhava contra o vento enquanto seus cabelos pareciam querer voltar para o aconchego de sua casa. Ela caminhou cerca de três quarteirões e após virar à direita, seguiu por mais quatro na avenida, atravessou – um carro buzinou e de dentro do veículo, um rapaz gritou chamando-a de delícia. Chegou até a rua seis e viu que o carro do marido de Lourdes já estava estacionado em frente ao portão. Tocou a campainha e viu quando a dona da casa colocou a cabeça para fora da porta.

_ Entra querida! O portão está aberto.

Michele entrou. Complicou-se um pouco ao abrir o portão e enquanto adentrava na garagem pensava o quanto Lourdes deveria ser falsa e mentirosa já que ela (Michele) detestava ser chamada de querida e tinha para sim como uma característica de pessoas duvidosas, aquelas que chamavam as outras de querida ou querido.

Ficou parada na porta da sala enquanto Lourdes pegava um casaco marrom escuro e seu marido aproximava-se com a chave do carro na mão. Passou por ela e foi em direção ao portão. Dentro, estava Lúcia, uma menina de aproximadamente sete anos, cabelos louros e olhos castanhos claros. Vestia um vestido rosa claro, quase uma camisola infantil. Estava descalça e assistia a um desenho na televisão.

Lucia estava sentada no sofá que parecia enorme para ela e segurava um pedaço de pano próximo ao nariz. Do seu lado esquerdo, estava um raque moderno e muito bonito na cor magno, onde sobre estava uma televisão exageradamente grande, plana e tela fina. Havia uma mesinha de centro marfim onde estavam um pacote aberto de salgadinho, alguns biscoitos recheados dentro de um recipiente de plástico, um copo pequeno com um desenho de tartaruga e dentro dele um pouco, ainda, de refrigerante. Uma cortina clara cor creme caia até o chão e escondia atrás de si a janela larga que dava para a garagem. No extremo canto direito da sala, próximo a porta, estava um vaso com um grande comigo-ninguém-pode. Lúcia virou e deu uma rápida olhada para Michele que apesar de reparar nos móveis da casa e o modo que foram organizados, não deixara de reparar atentamente na menina. Na verdade, talvez nem tirou os olhos dela. Lúcia olhou rapidamente e voltou a assistir.

Lourdes orientou Michele a respeito do horário de Lúcia dormir e algumas questões alimentares. Michele, no entanto, pediu a ela que não se preocupasse porque tudo ficaria bem e, caso houvesse algum problema, qualquer que fosse, ligaria imediatamente.

Agradecimentos.

Michele sempre sorridente e meiga. Lourdes sempre simpática e um pouco acelerada. O marido calado e fora de cena, mas sempre observador. A garota... E a garota?

Enfim, Michele ficou sozinha com Lúcia.


***

Na primeira hora em que esteve cuidando da menina, nada de estranho aconteceu a não ser alguns olhares que vinham de Lúcia. Michele permaneceu a maior parte do tempo sentada na poltrona ao lado do sofá onde a garotinha estava sentada. O desenho não chamara atenção da babá que resolveu folhear algumas revistas de fofoca. Não havia, no entanto, fofocas recentes, mas tal fato não incomodava Michele que parecia estar mais preocupada com os cabelos, maquiagem e roupas das pessoas nas fotos. Ela sempre olhava à garota para verificar se já estava dormindo ou se precisava de alguma coisa. Em certo momento, por algumas frações de segundos, Michele a olhou e encontrou aqueles olhos claros mirando-a; um olhar petrificado e sério. Era mesmo uma garota sentada ou uma boneca de cera? Michele estranhou e sentiu um calo frio e sem saber o que fazer, apenas deu um tímido sorriso. Ela sabia que a garota provavelmente iria achar que se tratava de um sorriso amarelo, afinal, ela mesma acharia isso. Lúcia não demonstrou qualquer reação e apenas seu pescoço e sua cabeça moveram-se em direção à TV.

Preferiu achar que não era nada e continuou a reparar as pessoas das fotos e o quanto elas poderiam ser cafonas ou chiques. Sem perceber, olhou para Lúcia e mais uma vez, sentiu aquele vazio gélido na boca do estômago. Aqueles olhos castanhos, que naquele momento pareciam mais escuros, estavam voltados e pousados sobre ela: na babá. A expressão do rosto da garota era firme e rude. Não piscava, não sorria, não se mexia, nada além de olhar. Michele observou cada canto do rosto, o cabelo, as pernas estiradas para frente e cobertas por uma fina colcha branca com florzinhas cor-de-rosa, mas não conseguia tirar os olhos daquele olhar. Era como um imã que, por meio de alguma força insana, puxava seus olhos para os olhos da menina.

Michele não tinha como negar, estava assustada. Sorriu e perguntou à Lúcia se ela estava bem, porém não obteve resposta. A menina não parava de olhar.

_ Quer que eu faço um chocolate quente pra você?... Você quer dormir?... Está sentindo algo?

Silêncio.

Michele pensou em ligar para sua mãe simplesmente por ter sentido vontade ouvir a voz dela, mas não o fez. Foi então que Lúcia virou novamente para a televisão. Naquele momento, Michele não teve como deixar de olhar atentamente para a garota. Tentava ler algum sinal corporal que a deixasse mais calma ou que talvez, desse algum sinal do que fazer ou dizer. Lúcia coçou a cabeça do lado direito e Michele pensou consigo que era piolho.

Colocou a revista, que tinha em mãos, sobre a mesa do centro e levantou-se. Lúcia acompanhou, calada e séria, os movimentos da babá. Michele entrou por um pequeno corredor que dava à sala e assustou-se ao ver que era mais cumprido e mais estreito do que ela imaginara e lá na frente, podia-se ver a cozinha. As paredes do corredor eram de um amarelo muito claro e o piso de azulejos imitava madeira escura. Ao lado direto, havia portas com os batentes e as guarnições tudo muito bem envernizados, estavam fechadas. Passou pela primeira e deduziu ser o quarto do casal, passou então pela segunda porta e imaginou um quarto de menina bem arrumado com detalhes cor de rosa e desenhos de bonecas. Chegou à terceira porta que se encontrava entreaberta e percebeu que era o banheiro. Olhou para trás e pode ver apenas uma pequena ponta do sofá, a raque e a televisão de lateral, a luz esbranquiçada e opaca que saia da TV e o som do desenho, o qual Lúcia ainda assistia. Entrou no banheiro e fechou a porta.

Não demorou muito tempo lá dentro. Após a descarga e o cessar da água da torneira do lavatório, Michele abriu a porta. Pensava em várias coisas e até parecia estar falando sozinha. Lúcia estava em pé, parada de frente para a porta. O coração de Michele quase saltou pela sua boca junto ao grito que deu.

Lúcia não demonstrou qualquer reação. Estava parada, exatamente na frente de Michele e mantinha a cabeça inclinada de modo que encarava a babá. Talvez soubesse que isso causava medo e isso muito provavelmente a fazia se sentir melhor. Suas sobrancelhas estavam quase unidas uma a outra em sua testa e seus olhos tinham a expressão do ódio. Michele, parada, amedrontada, não conseguiu fazer nada além de esperar qualquer reação da garota.

Lúcia soltou um largo sorriso mostrando seus dentes brancos e parcialmente o rosa escuro do interior de seus beiços. A babá, mais uma vez, se assustou. Ela era, naquele momento, uma cadela maltratada a socos e a ponta pés que a qualquer movimento de seu dono, já era motivo de seus músculos agirem, mesmo que inconscientemente, em devesa de qualquer outra pancada que pudesse estar por vir. Sua cabeça estava sutilmente virada para a esquerda enquanto seus olhos, fixos na garota, perdiam toda a noção do que pudesse estar acontecendo ao redor. Mais tarde, Michele lembraria daquela cena no meio de um borrão preto; não lembraria nada do que cercava as duas. Enquanto Lúcia sorria quase angelicalmente, Michele ficou calada, estática.

_ Te assustei? – Lúcia perguntou sorrindo e, no entanto, não teve resposta.

Alguns segundos depois – hoje Michele juraria que foram minutos – Lúcia falou novamente:

_ O desenho acabou. Você coloca o Pica-Pau pra mim?

Uma voz suave de criança educada e bondosa tomou conta do estreito corredor amarelado. Lúcia chegou a quase a ingenuidade e Michele tentava entender o que havia de errado com a menina. Para ela, aquela voz não combinava em nada com a garota que se mostrou até o momento indiferente e até hostil.

_ Claro que coloco. – Michele respondeu logo depois de se agachar para ficar na altura de Lúcia. Ali, exatamente no meio do batente, agachada de olhos fixos nos olhos castanhos claros de Lúcia, Michele tentou demonstrar mais tranqüilidade e tentou transparecer estar confortável. Foi quando, pela primeira vez, olhou para o chão e reparou a soleira sob seu joelho direito e o pé esquerdo. Uma soleira irracionalmente preta, com linhas disformes de um vermelho sangue. Achou que as linhas haviam se mexido dentro da pedra escura, mas preferiu pensar que fosse um pouco de tontura por agachar muito depressa. Pousou as mãos no ombro de Lúcia e continuou:

_ Vou colocar o Pica-Pau, mas você não vai demorar muito viu? Já está quase na hora de você dormir. Quer que eu faça um chocolate quente, um mingau pra você ou um lanchinho leve?

_ Não obrigada.

_ Tem certeza que não quer comer nada?

_ Tenho sim.

Lúcia deu um passo à frente e sem que Michele pudesse prever qualquer movimento, deu um beijo na bochecha da babá que o recebeu com olhos arregalados e uma sensação do que parecia uma fina vontade de rir. Contudo, não era um riso de satisfação por estar conseguindo a confiança da garotinha, mas um riso desses que vem em momentos inapropriados como a morte de alguém ou uma notícia ruim. Um riso pelo susto e mistério que aquele beijo escondia.

Ainda com um sorriso rosado no rosto, Lúcia virou-se e começou a caminhar pelo corredor em direção à sala. Michele levantou-se e sentiu um pouco de desconforto em suas pernas, limpou as mãos na calça mesmo que inconscientemente e seguiu a garota. Reparou como os cabelos dela eram bonitos e sedosos, ondulados quase lisos e caiam até metade das costas. Talvez Lúcia sentisse os olhos da babá sobre ela, virou parcialmente a cabeça para Michele e lançou um olhar penetrante com uma expressão rude e agressiva. Naquele momento, Michele assumiu estar com medo. Assumiu para ela mesma e teve uma forte vontade de ligar para sua mãe dizendo que gostaria de ir embora o mais rápido possível. Alguma coisa dentro dela gritava insinuando haver algo de errado com aquela menina. Aquele olhar ameaçador e sinistro não durou mais que quarenta segundos.

Ao chegar na sala, Lúcia correu e pulou rindo no sofá e imediatamente sentou-se virada para a televisão. Michele pegou um controle cor cinza que estava sobre a mesinha do centro, apontou em direção a TV e apertou um dos botões. A fina gaveta do aparelho de DVD abriu trazendo o disco que Lúcia acabara de assistir. Com o dedo indicador, Michele suspendeu, pelo orifício do meio, o disco e logo em seguida com a ajuda do polegar guardou-o dentro do estojo que Lúcia abrira momentos antes e segurava com as duas mãos – ela mantinha o sorriso rosado e angelical. Michele pegou o estojo onde na capa havia o desenho de um pássaro de corpo azul, cabeça vermelha e pés brancos saindo de um pedaço de madeira cheio de furos cujos letreiros denunciavam uma palavra inglesa. Abriu-o retirou o disco e depositou na gaveta. Apertou um dos botões do próprio aparelho de DVD e observou o fechar suave e mágico.

Lúcia bateu palmas duas vezes quando o desenho finalmente começou. Ela estampava um sorriso aberto mostrando os dentes e seus olhos brilharam quando deram de encontro com os olhos de sua babá. Michele sentou-se na poltrona e também assistia ao desenho, já que simpatizava com o Pica-Pau e costuma assisti-lo quando menor.


***


Passaram-se cerca de trinta minutos quando Michele advertiu Lúcia de que ela precisava deitar, mas a garota recusou-se ir para cama e pediu para ficar só mais um pouco e Michele cedeu ao pedido.

_ Estou com fome. – disse a garota.

_ Posso fazer um mingau pra você, o que acha?

_ Ah não, eu queria chocolate.

_ Chocolate quente com um pedaço de bolo é claro. – Michele foi avisada pela Lourdes a respeito do bolo se caso ela ou sua filha sentissem fome.

_ Não! Quero chocolate de verdade. – Lúcia referia-se a barra de chocolate que estava guardado na parte mais alta do armário da cozinha.

_ Não. Esse chocolate não. Sua mãe disse que não era para você comer chocolate muito tarde.

_ Ah não... eu quero! Vai pegar!

_ Não Lúcia. Eu posso fazer um chocolate quente pra você, mas você não vai comer chocolate agora.

_ Vou sim! Vai pegar, estou mandando. Minha mãe está te pagando pra isso. – Já dizia em meio aos soluços que davam aviso prévio do choro manhoso que estava por vir.

Ao ouvir de uma pirralha que ela (a babá) estava ali porque sua mãe estava pagando e por isso teria que fazer o que ela queria, deixou Michele um pouco nervosa e chateada. Teve vontade de gritar com a garota, mas sabia que se fizesse aquilo, apenas Deus saberia qual versão Lourdes ouviria e isso a prejudicaria já que tinha o costume de ser chamada para trabalhar como babá por muitas outras senhoras, inclusive vizinhas de Lourdes. Controlou sua raiva e quando Lúcia começou a chorar cada vez mais alto, fingiu que nada estava acontecendo. A menina, no entanto, irritava com aquele choro agudo e falso. Era como se alguém estivesse fazendo muito mal a ela. Michele levantou-se da poltrona, caminhou até Lúcia e inclinou-se sobre ela. Olhou-a no olho e com o rosto quase grudado no rosto da menina disse:

_ Você pode chorar o quanto quiser. Eu não vou te dar chocolate. Você sabe melhor do que eu que sua mãe disse não. Agora está na hora de você dormir e não estou nem ai se você não está com sono, mas você vai deitar, por bem ou por mal.

No mesmo instante, Lúcia engoliu o choro. Seus olhos inundados de lágrimas brilhavam contemplando Michele.

_ Você vai querer chocolate quente ou mingau?

_ Mingau. – Respondeu um pouco engasgada.

Michele soltou um sutil sorriso de satisfação e pareceu querer mostrar à garota quem estava no comando e no controle. Foi até a cozinha enquanto, sem saber, Lúcia lançava olhares faiscantes e demoníacos em sua direção enquanto caminhava pelo corredor estreito.

A cozinha era praticamente da cor cinza. Tanto o fogão quanto a geladeira eram em inox e o armário branco com puxadores prateados. A pia, de alumínio, parecia de brinquedo e diferentemente de sua casa, Michele pensou por um segundo que se trava de uma pia de enfeite onde não poderia colocar muitas panelas ou deixar muita louça para ser lavada. Michele começou a abrir as portas do armário à procura dos ingredientes para o mingau. Um pouco desajeita, já que abrir os armários, gavetas, geladeira e cozinhar no fogão de outra pessoa davam a sensação de invasão de privacidade.

Após fazer o mingau à base de amido de milho, Michele voltou à sala segurando um pequeno prato de plástico cor de rosa. Já no corredor, teve um pressentimento ruim quando percebeu que a televisão estava desligada. Antes mesmo de chegar, Michele já inclinava a cabeça para ver mais rápido o que Lúcia estaria fazendo no sofá.

Televisão, aparelho de DVD desligados. No sofá, apenas a fina coberta que outrora era usada pela Lúcia. A luz estava ligada, mas não havia ninguém na sala. Do prato de plástico subia um leve vapor e um cheiro suavemente doce tomava conta do espaço. Michele pousou o prato sobre a mesinha do centro. Olhou atrás do sofá e não encontrou a garota. Chamou-lhe pelo nome, mas não obteve resposta. Era notável que estava um pouco perturbada e questionava-se onde ela teria ido e se escondido. A inquietação de Michele era também fruto da angústia por ter que dar algum esclarecimento – se fosse o caso e preciso – aos pais da menina que a confiaram sua segurança.

Michele gritava o nome de Lúcia. Abriu a porta da sala e foi até a garagem. Não a encontrou e verificou se o portão estava aberto, mas o encontrou trancado. Abriu-o e colocou os pés na calçada, olhou para sua direita e depois para a esquerda. Cerrava os olhos tentando enxergar o mais longe possível. Não sabia o que fazer e começou a lembrar dos olhares maquiavélicos vindos da angelical menina. Colocou os pés para o lado de dentro do portão, trancou-o e parou na porta da sala. Chamou pela Lúcia mais uma vez e reparou que a luz da sala estava desligada e sentiu um pouco de raiva pela piada que a menina estaria fazendo.

Um barulho na parte dos fundos da casa assustou Michele, que parada ao pé da porta, ainda do lado de fora da casa, olhou em direção ao quintal que dava para os fundos. Estava tudo desligado e ela se disse que não iria até lá sozinha e mais uma vez, gritou pela Lúcia. Outro barulho ecoou dos fundos gelando o estômago da babá cujo coração quase saltava pela sua boca. Um cala frio subiu pela espinha e suas pernas balançaram. Antes mesmo de adentrar a sala, apertou o interruptor que ficava próximo a porta e ligou a luz, fechou a porta e a trancou. Olhou para a mesa do centro e viu que já se formara uma fina camada sobre o mingau, algo semelhante ao que acontece com o leite e sua nata. Sua intenção era chegar até a cozinha. No corredor onde estava agora, achava-o mais estreito e teve receio de passar pelos cômodos cujas portas estavam fechadas. Olhou cuidadosamente dentro do banheiro quando passou por ele, mas não viu ninguém.

Chegou até a cozinha que parecia estar do mesmo jeito que ela deixara. A luz estava ligada e a panela de alumínio, que fora usada para cozer o mingau, estava suja sobre a pia. Foi até a porta da cozinha que dava para os fundos da casa e verificou se estava trancada, voltou até a janela e tentou olhar, por uma fresta, qualquer coisa no meio do escuro. Escutou um bater de palmas e acreditou ser alguém no portão, talvez alguém com a garota que fugira em busca dos pais. Passou pelo corredor quase correndo, chegou a sala e apressadamente virou a chave duas vezes e quando estava abrindo a porta, uma voz fina e doce soou atrás dela:

_ Você vai aonde?

Michele deu um grito e virou imediatamente para trás. Era Lúcia que se encontrava sentada no sofá com a coberta sobre as pernas e o prato com mingau sobre o colo. Levava naquele exato momento, uma colher cheia até a boca. Com as bochechas um pouco estufadas e os lábios esbranquiçados, sorriu para Michele que, com a mão no peito e ainda de olhos arregalados, foi até próximo da garota e agachou-se:

_ Onde você estava menina? Fiquei preocupada...

Lúcia franziu a testa e sua expressão era a de um ponto de interrogação. Engoliu parte do que estava dentro de sua boca e com esta ainda um pouco cheia, disse à Michele que não fora em lugar algum e perguntou se a babá estava louca.

_ Menina para de graça! Quando eu voltei da cozinha você não estava aqui e a televisão estava desligada. Eu até fui lá fora e quando voltei, a luz estava desligada e eu sei que quando sai, ela ficou ligada. Eu não sou louca.

_ Mas eu não sai daqui... – E voltou a colocar outra colherada na boca.

_ Saiu sim! Onde você se escondeu? Vou contar tudo para os seus pais. – Michele demonstrava ainda estar muito assustada e sua voz alta, por vezes trêmula, era quase a mistura do grito e do choro.

Lúcia olhava-a com olhos grandes e já demonstrava sinais de choro. Perguntou à baba porque ela estava falando daquela forma com ela, já que ela continuava negando ter saído para algum lugar e muito menos ter se escondido.

Neste instante, o celular de Michele, que estava sobre a poltrona, tocou e ela foi atendê-lo. Em questão de frações de segundo, ao virar de para pegar seu aparelho telefônico, Lúcia deixa escapar um sorriso e olhares maléficos. Era a mãe de Michele que ligava para saber se tudo estava bem. Após dizer que havia coisas estranhas, mas que não poderia falar naquele momento e falaria depois que chegasse em casa, Michele virou uma das abas de seu celular e colocou-o no único bolso de trás da calça moletom cinza. Virou-se para Lúcia que imediatamente levantou o prato rosado com as duas mãos em direção à baba e com a boca cheia, fez apenas um sinal com a cabeça para dizer que não queria mais.

Com o prato na mão direita, Michele informou à garota que era hora de dormir e foi preciso negar ao pedido de assistir um pouco mais.

_ Onde você dorme Lúcia? – Perguntou com muita serenidade.

_ No segundo quarto. Ele é só pra mim.

_ Nossa, você já tem um quarto só para você! Que legal!

Com seu sorriso rosado, Lúcia balançou a cabeça afirmando.

_ Acredita que eu não tenho um quarto só pra mim? Divido com a minha irmã.

_ Quanto anos você tem? Já é bem grande não é para dividir o quarto? – Lúcia perguntou com um ar de indignidade, talvez passasse pela sua cabeça que qualquer pessoa mais velha e maior do que ela tinha a obrigação de dormir sozinha. Algo parecido com o pensamento de crianças e poucos jovens que depois de questionar sua idade e perguntar com quem mora, ficam surpresos ao ouvir que você ainda mora com os pais.

Michele riu e apressou a garota a deitar-se. Lúcia foi na frente, abriu a porta do quarto e ela mesma ligou a luz. Diferente do que Michele havia imaginado, no quarto da menina prevalecia a cor azul – um azul bebê que fazia sobre tom com um azul quase roxo. Nas paredes, havia desenhos do rosto de um ursinho pintados na cor branca. A cama de solteiro – encostada à parede da janela – estava coberta por uma colcha rosa e um grande desenho da cinderela e na sua cabeceira estavam vários ursos de pelúcia. Ao lado oposto da cama estava uma espécie de penteadeira que provavelmente foi colocada ali por não haver espaço em outro cômodo. Sobre a mobília não havia perfumes e nem maquiagem; três escovas, um pente e várias bonecas de plástico e pano com suas costas refletidas pelo velho espelho – quebrado no lado superior direito – da penteadeira. Ao pé da cama estava um tapete felpudo amarelado. De frente para a cama estava uma cômoda branca e sobre ela uma televisão de vinte polegadas.

_ Olha o meu quarto tia...

_ Nossa que quarto bonito? Olha quanta boneca!

_ E os meus ursos. Adoro eles.

_ Caramba, você poderia me emprestar um ursos desses.

_ Você ainda brinca de bonecas? – O tom de voz havia mudado.

_ Brincar não brinco não. Mas tenho alguns ursos que eu deixo de enfeite na cama, assim como você fez na sua. Agora chega de enrolar.

Lúcia deitou-se e após deixar Michele cobri-la, desejou boa noite. Michele sorriu delicadamente e retribuiu o desejo, virou-se e observou as bonecas que pareciam sorrir e olhá-la com aqueles olhos azuis redondos vidrados, desligou a luz do quarto. Lúcia gritou pelo nome da babá assim que a escuridão tomou conta do cômodo.

Assustada e preocupada, Michele perguntou se havia algum problema e após Lúcia dizer que não conseguia dormir no escuro, a babá ligou o abajur que estava próximo da cama. Agora o quarto era banhado por uma luz azulada e ela percebeu as sombras sinistras nas paredes e no espelho. Saiu, fechou a porta, voltou até a sala, pegou o prato e foi à cozinha.


***


Já havia lavado a panela, o prato e os copos. Estava naquele momento, secando-os quando escutou um barulho de cama se arrastar, o que achou muito estranho, mas não pensou que fosse Lúcia. Acreditou que a garota não teria força para arrastá-la e nem motivo para aquilo, já que estava dormindo. Mais uma vez o barulho arranhou o silêncio mórbido da cozinha e após guardar o açúcar, os talheres, a panela, o prato e os copos em seus lugares, Michele foi até a sala, ligou a televisão, olhou para o relógio – era quase dez e meia – e desejou muito que Lourdes chegasse a qualquer momento.

Barulho de cama arrastada.

Não seria possível, não seria mesmo! Mas que droga de barulho seria aquele e que merda aquela estranha estaria fazendo? Será que não tinha mais nada para fazer? Será que era retardada e não conseguia entender as coisas? Michele levantou-se do sofá (desta vez não estava sentada na poltrona) e foi ver o que havia de errado no quarto da encantadora Lúcia. Caminhou de vagar e quando estava em frente ao quarto, aproximou o ouvido direito na porta e tentou escutar qualquer coisa estranha que pudesse estar acontecendo do lado de dentro, entretanto, não pôde ouvir nada. Abriu a porta lentamente, o azul predominava, mas não foi a cor gótica que chamou atenção de Michele; havia algumas bonecas próximas à entrada do quarto. Era como se elas tivessem descido da penteadeira por contra própria e estavam segurando a porta para que ninguém pudesse entrar. Michele escancarou a abertura e percebeu que não havia nenhuma boneca sobre a mobília, onde elas estavam anteriormente, e que Lúcia continuava deitada de olhos fechados enquanto o cobertor subia e descia lentamente acompanhando a sua respiração. Fechou a porta, virou-se e caminhou até a sala, olhava o tempo todo para o chão, talvez estivesse pensando ou tentando entender muitas coisas ao mesmo tempo.

Nem havia se aproximado do sofá quando Michele escutou novamente a madeira arranhar o chão e logo em seguida uma forte pancada. Assustou-se e correu para o quarto de Lúcia. Encontrou-a sentada na cama sobre a coberta. Lúcia estava com sua “camisola” levantada, as pernas abertas e seu tronco contorcido para frente; lambia a própria vagina. Lambia freneticamente movendo a cabeça para um lado e para o outro enquanto seus cabelos caiam sobre a região. Um rosnado parecia vir daquele ato.

Michele não teve tempo para sentir nada além de medo e nos primeiro minutos, não entendeu o que estava acontecendo e quando sua saúde mental conseguiu processar a imagem e entender o que Lúcia fazia, Michele levou a mão à boca. Estava chocada. Não sabia o que fazer: chamar atenção ou tentar fazê-la parar com aquilo? Foi quando, menos esperava, Lúcia levantou rapidamente a cabeça e a encarou: seus olhos profundamente negros e veias muito vermelhas que ziguezagueavam nos globos oculares, a boca aberta e a musculatura do rosto completamente enrijecida. Michele queria correr, mas suas pernas não a obedeceram.

Lúcia ficou de joelhos sobre a cama e violentamente contorceu sua coluna para trás como se fosse uma boneca de pano. Michele pulou de susto. Lúcia, envergada para trás, com os pés e os braços apoiando o corpo, parecia lamber o anus enquanto o quarto enchia-se de sombras e rosnares, tudo banhado por aquele azul fúnebre.

Michele correu em sentido à porta da sala. Por um segundo esqueceu que estava trancada e tentou, por três vezes, abri-la para só então girar a chave. A porta abriu com um forte estrondo que abafou passageiramente os gritos e choros desesperados de Michele enquanto, simultaneamente, as luzes e a televisão desligavam-se. Correu para o portão que também estava trancado. As chaves estavam penduradas, pelo lado de dentro, na porta. Michele olhava o chão, próximo ao portão, como se estivesse procurando algum buraco por onde pudesse passar e dar continuidade a sua fuga, sabia que esquecera o molho de chaves na porta da sala e não queria voltar para buscá-lo.

Houve então um grande estrondo dentro da casa e Michele logo imaginou que seria um armário, guarda-roupa ou qualquer coisa do tipo que fora virado com muita força. Voltou para pegar as chaves, no entanto, ao chegar ao pé da porta, encontrou Lúcia, em pé no meio da sala, descalça, no escuro, com uma cumprida faca, cabeça abaixada e de olhos fechados – não se movia. Michele, nesses momentos de coragem insana que parecem brotar de uma parte secreta da nossa consciência, esticou o braço o máximo que pôde para tentar alcançar às chaves, mas Lúcia moveu-se: levantou a cabeça, qualquer e toda expressão do rosto estava naquele momento, dentro de seus olhos, gritou assustadoramente e ao mesmo tempo, levantou a faca com um gesto ameaçador. Era um grito rouco de uma voz seca e cavernosa cheia de pedras e espinhos, tudo multiplicado por dois. Lúcia pareceu ir para frente, para cima de Michele, que inconscientemente, correu pelo corredor até chegar à parte dos fundos da casa. Estava muito escuro e Michele não fazia idéia de onde ficava o interruptor, o breu era completo e a hesitação ocorreu um pouco tarde: Lúcia já estava do lado de fora da casa, no quintal, com a faca em mão, quando Michele pensou em recuar e pelo portão da garagem, tentar chamar atenção de alguém que passasse pela rua.

Gritou pedindo socorro, ali mesmo no quintal, mas a garoa, que caíra horas antes, fizera o ar ficar um pouco frio, frio esse que deixa as pessoas um mais pouco preguiçosas dentro do calor e aconchego de suas casas e que muito convém para uma sociedade inocentemente covarde e paradoxalmente culpada por isso. Ninguém para ajudar Michele. Ocorreu-lhe então correr para dentro da escuridão e esconder-se dentro dela para que pudesse ganhar tempo e fugir correndo quando aquela coisa não estivesse mais pelo caminho ou estivesse desarmada.

Incontrolavelmente seus braços estavam esticados para frente e arregalava os olhos ao máximo, como se isso a ajudasse a enxergar no escuro. Bateu a perna em alguma coisa, uma dor aguda subiu pelo joelho, perna, barriga, peito até fechar os olhos e cerrar a boca enquanto mordia forte. No auge da dor, soltou um “porra” um tanto chorado, mas o medo do que a perseguia era maior e continuou caminhando dentro da escuridão tentando controlar a dor e manter os olhos e ouvidos bem abertos. Tateou uma espécie de plástico e agachou-se virada para direção de onde veio, ficou quieta enquanto ofegava à espera do pior. Sentiu o celular no bolso e rapidamente o pegou, a luz do visor iluminou precariamente o rosto de Michele, que dentro da escuridão, parecia uma assombração. Tentou discar o número de casa e pedir ajuda à sua mãe, no entanto, o celular desligava e ligava como se houvesse alguma interferência em sua bateria. O rosto de Michele, ora banhado ora não, por aquela luz esverdeada do seu aparelho telefônico, demonstrava pavor. Nos momentos de claridade, era possível ver que Lúcia estava atrás dela, com os cabelos caindo para frente, quase sobre o ombro direito de Michele. Como Lúcia teria chegado tão próxima de Michele sem que essa percebesse? O celular desligou por completo e Michele bateu-o contra a palma da mão, igual fazemos com as lanternas quando estão demonstrando sinais de fracasso, mas a falta de sucesso fê-la choramingar em meio a uma Ave Maria. Talvez fosse milagre ou simplesmente uma péssima brincadeira do mal, mas o celular recebeu uma ligação e o vibramento e a luz repentina do aparelho produziram cala-frios em Michele, mas seu corpo gelou-se por completo e seu coração pareceu parar de bater quanto viu o rosto de Lúcia, também banhado por aquela luminosidade grotesca, em frente ao seu. Michele rastejou-se o mais rápido que pôde para trás e em menos de um metro e meio, bateu as costas com força na parede. O celular desligou-se mais uma vez e sem saber o que fazer ou para onde correr, Michele deslizou-se pela parede, para sua esquerda, até encostar-se a outra parede. Estava mais frio. Ficou de pé com as palmas da mão grudadas aos tijolos e concreto, olhava para todas as direções e tentava sentir qualquer aproximação da garota. Dentro do escuro, de olhos arregalados e sem piscar, Michele sentia seus olhos arderem, mas as lágrimas de medo ajudavam a lubrificar os globos oculares. A luz acendeu e apagou-se logo em seguida. E nesta fração de segundos, pôde ver Lúcia em pé, no meio do caminho. A luz picou novamente, e Lúcia estava próxima à parede do lado oposto de Michele. Mais uma vez, a luz ofuscou a visão da babá, que já se acostumara ao escuro, e Lúcia estava a seu lado. A luz apagou-se e Michele correu, inconscientemente, correu para o quintal.

Michele não pensava em mais nada além da rua, da listra amarela que a corta pelo meio, das calçadas disformes e esburacadas, no portão aberto, na grama verde da praça próxima da sua casa, o semáforo vermelho – verde na avenida principal, nas mulheres com pó de arroz no rosto, na ajuda que alguma pessoa poderia oferecer. Escorregou. Michele chegou a bater a cabeça no chão, ficou um pouco tonta, olhou para o céu escuro, mas nada prendeu sua atenção. Suas costas doíam por causa do impacto com o piso do quintal. Por algum momento, não conseguiu levantar-se, inclinou a cabeça para trás e viu, de ponta cabeça, Lúcia em pé, parada, parcialmente banhada pelo escuro – era como se ela estivesse prestes a desprender do chão e despencar de cabeça no teto. No entanto, Lúcia, com um sorriso indecente, deu alguns passos para trás enquanto sua babá, estirada no chão de cabeça voltada para trás, a observava desaparecer dentro da escuridão.

Aquele era o momento certo para fugir, pensou Michele. Levantou-se e correu em direção ao portão – talvez esquecesse que estaria trancado – e ao passar pela porta da sala, notou que a televisão estava ligada com uma imagem congelada. Não reconheceu a pessoa na imagem, mas viu que era uma mulher gritando. Cerca de três metros antes de chegar ao portão, este se abriu como mágica. O sangue pareceu voltar a circular pela face de Michele que esboçou um pequeno sorriso ao ver que o caminho estava livre. Apressou-se e segundos antes de chegar a calçada, o portão fechou-se violentamente que provavelmente machucá-la-ia. Michele gritou com o rosto colado nas colunas de metal, pedia socorro, esperneava e sua voz falhava cada vez mais. Foi quando, bem próximo a sua cabeça, seu celular espatifou-se no portão. Olhou para trás, mas não viu ninguém e não precisava ver, sabia que fora Lúcia quem atirara o aparelho contra ela. Gritava cada vez mais, com as mãos grudadas no portão e os cabelos bagunçados. Michele suava.

Onde estaria o resto de mundo? Por que ninguém da vizinhança aparecia? Será que tinham alguma coisa com aquilo? Sabiam o que acontecia dentro daquela casa? Onde foram parar os carros? Onde estariam os cachorros das casas aos lados? Deus? Deus estava lá também? O portão abriu-se novamente. Sim, Deus estava lá, ela agradeceu a abertura e saiu correndo pela rua. Chorava e tentava gritar, mas estava muito rouca e sua garganta doía. Estava com sede e extremamente cansada, no entanto, não poderia parar só um segundo, mesmo que fosse para bater em alguma casa e pedir ajuda, ninguém sairia – ninguém saiu na hora dos gritos. Michele olhou para trás e viu Lúcia em pé, parada, em frente ao portão.

Virou a esquina e começou a correr rua a cima e achou que urinaria na roupa de exaustão. Passou a andar apressadamente, olhou para trás, como todos nós fazemos ou faríamos em momento de fuga, e viu Lúcia, na esquina, de “camisola”, cabelos soltos, faca na mão, parada e apenas observando a fuga.

Michele virou a próxima à direita, queria despistá-la (a Lúcia) e seguiu reto pela rua. Olhou para trás mais uma vez, viu Lúcia parada na esquina, observando-a correr. Para onde quer que Michele fosse, ela via Lúcia alguns metros atrás, observando-a.


***


Eram quase onze horas, quando Lourdes chegou em casa com o Marido. O carro fez, uma abertura maior e parou poucos centímetros do portão. Lourdes desceu do veículo, trazia um leve sorriso, abriu com chave o portão, adentrou e foi até o cadeado, que ficava pela parte de dentro, da entrada maior. Empurrou o lado esquerdo, depois o direito do portão, saiu do caminho e seu marido adentrou a garagem. Lourdes voltou a fechar e trancar o cadeado.

Os dois chegaram juntos à porta da sala, a luz e a televisão estavam ligadas. Lúcia dormia no sofá. Lourdes entrou e chamou pela Michele, foi pelo corredor e percebeu que todas as portas estavam abertas. Não encontrou a babá na cozinha, onde deduzira achá-la. Lúcia despertou.

_ Cadê a Michele querida? – Lourdes perguntou um pouco irritada.

_ Não, sei. Ela ficou brava e eu acabei dormindo. – disse meio sonolenta ainda.

_ Ela deve ter ido embora. – Disse o marido.

_ É, mas ela não podia deixar a Lúcia sozinha e com as portas todas abertas. Vou ligar na casa dela.

A mãe de Michele ficou mais preocupada do que sempre estivera. Informou a mãe da criança que sua filha não havia aparecido em casa ainda e que tentou ligar para o celular dela, mas ela não a atendeu.

Enquanto Lourdes falava com a mãe de Michele, seu marido foi até os fundos da casa, pela porta da cozinha que também se encontrava aberta. Ele apertou o interruptor e não encontrou ninguém. Voltou então para dentro de casa e não encontrou nada de diferente ou anormal em nenhum dos cômodos: nem no banheiro, no quarto do casal, no quarto de Lúcia, onde todas as bonecas estavam sobre a penteadeira. Lourdes também ficou preocupada com a babá, já que ninguém tinha notícias dela e o fato de sua linda e adorável filha ter ficado sozinha e a vulnerabilidade que isso implicava, assustava-a imensamente.


***


A mãe de Michele deu parte na polícia sobre o desaparecimento da filha. E Lúcia informou aos pais que a babá dissera que iria até a farmácia comprar remédio para dor de cabeça e acabou dormindo no sofá esperando por ela.

Enquanto familiares ainda estão, desesperadamente, em busca de notícias do paradeiro de Michele e quase todos criticam e ressaltam a falta de responsabilidade da babá por deixar uma criança sozinha, ela (a Michele) continua fugindo daquela garota que sempre está, a poucos metros, atrás dela. Inexplicavelmente, assim como a própria vida e tudo o que a cerca é inexplicável, Michele segue pelas ruas, sem tempo para descansar e para reparar em possíveis pontos de referência para ajudá-la em seu retorno.



Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 21/05/2012
Código do Texto: T3680094 


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01 maio 2012

Clubinho


imagem retirada do google
CLUBINHO
Um buchicho percorria discreta e disfarçadamente entre os rapazes do fundo. Já era a última aula. Dia quente de sol irradiante e estavam todos com fome. A professora parecia estar com dor de cabeça e olhava várias vezes ao relógio.
O barulho, apesar de não parecer para quem estava dentro, era alto e ela, aquela pobre coitada em frente aqueles seres quase tão melhores quanto ela, olhava, às vezes, para toda a sala procurando identificar de qual canto vinha o barulho mais alto, mas em quase todas às vezes, não conseguia porque em cada turma uma nota mais alta era lançada para formação da sinfonia que todos estavam acostumados a ouvir: Beethoven ou Mozart?
No fundo do canto direito, um grupo – duas moças e três rapazes – jogavam, talvez o que seria truco. A professora – no início da aula - pediu para que guardassem o baralho, mas não a ouviram. Quem sabe se tentasse – pedir – um cão ou uma cadela eles perceberiam e respeitariam a presença da autoridade?
Mais ao meio, ainda no fundo, o buchicho deu lugar a pequenos risos. Ela pôde ouvir apenas que um deles estaria sozinho depois das duas e meia.
O sinal – uma sirena aguda e estridente – soou. O tempo da aula terminou.
Alguém abriu a porta: saiam todos gritando, rindo, jogando “públicas” bolinhas de papel. Alguns “tchaus” misteriosamente educados eram dados à professora que arrumava seu material. Um integrante do grupo do fundo – onde ocorria o buchicho – ofendeu debochadamente outro rapaz da classe, que sentava na frente, chamando-o de veado enquanto seus amigos – o restante da sua turma – riam e gargalhavam. A professora chamou a atenção e teve como resposta um “desculpa” qualquer.
Empurra empurra na porta para o corredor: rebanho e dentro do rebanho, horda.
14:30. Léo chegou. Buda, porém, chegou há quinze minutos com o Tigela. E como quase sempre, Mau-mau estava, ainda, para chegar.
14:45. Mau-mau estava no portão. Tigela – apenas de bermuda de futebol branca e descalço – foi abrir.
_ Já? – Perguntou Mau-mau ao olhar mais atentamente para o amigo.
_ Que nada!
Naquele exato momento, Fabiano – um dos amigo mais velho do grupo – descia a rua e cumprimentou os dois jovens com um sorriso e dizeres que insinuaram qualquer coisa que só os três poderiam entender. E entenderam.
_ Chega ae seu porra! – Tigela chamou pelo amigo.
Ele chegou mais próximo. Pegou na mão de Mau-mau e questionou qualquer coisa antes de apertar a mão de Tigela. Riram todos e ele finalmente apertou a mão do outro amigo. A conversa, ali no portão, foi rápida. Quando questionado, Fabiano confirmou a informação que casara-se semana passada e foi convidado pelo Tigela para entrar, mas não podia – estava a caminho do trabalho. Fabiano ainda dissera em tom mais baixo que agora parara com aquilo e após despedir-se dos amigos, desceu a rua.
Dentro de casa, Tigela ia à frente – pelo corredor de paredes brancas e piso de azulejo escuro. Mau-mau deixou seu tênis na porta da cozinha. Usava calça jeans, camiseta marrom estampada e ainda estava com suas meias brancas. Chegaram ao quarto – o quarto de Gabriel, o dono da casa. Este encontrava-se sentado – apenas de cueca preta – em frente ao computador cujas caixinhas de som estavam ligadas e uma música, cujas batidas eram chiados repetitivos, misturava-se aos sons plangentes que viam da televisão. Em frente a esta, estavam Buda e Léo, sentados na cama onde derramava pelas bordas um lençol branco com detalhes azuis. Este vestia bermuda estilo surfista na cor verde musgo, enquanto aquele também encontrava-se apenas de cueca – da cor branca. Todos foram cumprimentados quando entraram Tigela e Mau-mau. Estudavam todos juntos desde a quinta série e já eram quase homens feitos – pernas peludas e algumas torneadas, testículos davam volume à cueca (ou talvez fosse a peça íntima apertada), barba rala e entre outras coisas.
Risos.
Dizeres que talvez fossem uma espécie de código entre eles.
Tigela tirou sua bermuda – estava sem peça íntima. Mau-mau ficou apenas de cueca. Léo mantinha sua mão esquerda por dentro de sua bermuda. Buda ajuntou-se a Gabriel que naquele momento estava em algum chat na internet a procura de alguma garota que estivesse interessada em mostrar-se pela webcam.
O DVD já estava ligado, o filme já estava rodando. Não pareciam se preocupar um com outro. Cada um tinha o seu para cuidar. Claro que às vezes, o do outro já servira de motivo para provocarem risadas. Houve apenas uma única vez em que um deles, com permissão, chegou a encostar a um deles, mas preferiram não dar permissões novamente – tinham medo de alguma coisa. Falavam de meninas, vaginas úmidas, cheiros, paladares – que apenas um já sentira antes – pêlos, posições e movimentos.
E a reunião do clube deu seu andamento. Criaram um jogo: quem chegar mais longe ganha.
Ganha o quê? Nada. Talvez massagem para o eguinho.


Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 28/04/2012
Código do texto: T3638528

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