16 julho 2011

Lucas da Aldeia e Barbara do Mistério

imagem disponível em www.imagemdeposito.com


LUCAS DA ALDEIA E BARBARA DO MISTÉRIO


Era uma vez, em uma aldeia muito distante ao pé de uma linda e gigantesca colina, vestida de uma vegetação verde e árvores com flores de um tom laranja e rosas que enfeitavam algumas copas de algumas árvores onde um garoto teve sua mente aprisionada pelos adultos que tentavam protegê-lo.
Ninguém sabe dizer qual era o seu nome, mas correm das bocas para as bocas que era Lucas. Poucos sabem também o que sucedeu a esse garoto que, ainda muito jovem, precisou travar uma batalha para libertar sua mente.
Da colina, descia um riacho de águas cristalinas que correriam por entre as pequenas, médias e grandes pedras amarronzadas. Era gelada e pura. Às margens do riacho, crescia uma espécie de capim muito delicado que não se pode mais encontrar hoje. Era de um verde escuro próximo ao solo, mas de um verde claro e vivo em suas extremidades. Quando o sol reluzia sobre as extremidades do capim, as águas do riacho vestiam-se de um verde jamais visto pelos homens que hoje andam sobre a terra. Do centro do tufo de capim, do seu coração, crescia uma linda flor que desabrochava sobre um médio caule aveludado e de um tom azulado misturado ao roxo. Uma flor absurdamente linda de um tom amarelo vermelho alaranjado se abria para o céu. Todos a chamariam de filha do sol.
Certo dia, sem se dar conta das belezas que o rodeavam, assim como era de costume de todos naquela aldeia, Lucas foi até o riacho pegar água para beber e voltou para sua barraca muito parecida com as casas de pau a pique. No caminho até o riacho, três belíssimas borboletas sobrevoaram próximas dele e pousaram-se sobre uma grande folha de samambaia como se estivessem a observá-lo. De volta para a barraca, havia dois beija-flores pequenos, um deles parecia ter as penas da cor cinza, mas com os movimentos podiam-se ver as cores vivas do azul, verde e roxo. O outro tinha as cores laranja, verde e rosa. Sobrevoaram a cumbuca onde ele trazia água cristalina que refletia a luz do sol e o azul escuro do céu. Os beija-flores sobrevoaram por alguns segundos e pareciam conversar entre eles, e logo voaram para onde ninguém mais pudesse vê-los.
No horizonte, o céu trazia lentamente uma grande nuvem branca e a brisa fria parecia querer trazer alguma novidade que passava por entre as pessoas e as casas sem que a notícia fosse percebia. O sol brilhava intensamente, mas ninguém o via. As borboletas, milagrosamente, saiam de seus casulos e eram como insetos. Os beija-flores eram como qualquer coisa que voava.
Lucas teve conhecimento de que muito antes dele nascer, houve outro menino que percebeu as coisas ao seu arredor e ficou louco. Dizia a todos que os beija-flores eram coloridos e que realmente beijavam as flores, que as borboletas eram absurdamente delicadas e que as nuvens podiam tomar formas de animais ou até de pessoas. As outras crianças da aldeia começaram a olhar para o céu em busca de um cachorro, um cavalo ou uma flor. As meninas de treze anos, recém casadas, já não eram nem mais adolescentes e também passaram a tentar ver as cores dos beija-flores.
Uma loucura contagiosa, uma doença maligna que açoitava a aldeia, uma peste pronta a engolir tudo e todos. Uma maldição mandada como forma de castigo àqueles que enlouquecessem. Foi assim que os mais velhos da aldeia viram tal fenômeno e o menino teve que ser morto para servir de exemplo a todos. Sua cabeça fora cortada e colocada em um mastro próximo ao riacho e seu corpo enterrado em um campo a seis dias de distância da aldeia.
Lucas tinha medo de pegar a praga, no entanto, certo dia, uma linda garota chegou à aldeia sobre um jumento. Não trazia nada além das roupas que vestia e parecia estar sedenta, faminta e fraca. Seus cabelos eram lisos de um castanho claro, seus olhos eram castanho escuro e tinha alguns arranhões no rosto. Sua beleza inocente encheu o interior daquele garoto que, assustado, tentava não olhar para aquela criatura tão vulnerável.
Deram-na o de comer e o de beber. Ofereceram-na um canto coberto de folhas para dormir.
Na mesma noite, a velha anciã da aldeia, uma velha muito sábia corcunda de pele muito enrugada mandou chamar aquele garoto que aprendeu a obedecer aos mais velhos e respeitar as suas decisões. Aquela senhora, sozinha com o garoto, contou o que acontecera naquele dia. Confessou a ele o que ele guardava para confessar e o confortou com palavras mansas e leves, ditas num tom cansado e meio rouco. Disse que o dia seguinte não seria fácil e que as estrelas diziam muito sobre o que estava prestes a acontecer. Alertou sobre possíveis perigos e que as escolhas seriam necessárias e que para cada uma, um perigo estaria no caminho.
Ao sair da cabana da velha sábia, ele olhou para o alto e pela primeira vez observou o céu grafite e várias estrelas brilhando. Parou ao lado de uma árvore muito parecida com as palmeiras e ficou a contemplar os pingos de luz que pareciam borbulhar. Levantou a mão direita como quem tenta apanhar uma estrela e seu rosto demonstrou uma pequena decepção ao descobrir que elas estavam muito mais altas do que ele imaginara. Até imaginou que aqueles pontos brilhosos eram na verdade pequenos furos em uma capa de couro usada pelos Deuses para tampar o sol e trazer a noite.
De repente, assustou-se quando um pequenino brilho mexeu-se. Ficou mais assustado quando aquele brilho meio esverdeado aproximou-se dele. Nunca tivera visto um vaga-lume e achou que seu pedido tornara-se realidade. Ficou muito intrigado ao perceber que o ponto de luz possuía pernas e isso causou certa gastura quando o inseto pousou sobre seu braço. Perguntou-se se todas as estrelas eram bichinhos com pernas.
Olhou para trás e viu a velha senhora observando-o. Ela tinha um sutil sorriso e no cruzamento de brilhos dos dois olhares, ela abaixou sua cabeça e com o braço esquerdo, lentamente, fechou a entrada da cabana com uma espécie de cortina de couro.
Já deitado, Lucas de barriga para cima, não conseguia deixar de pensar no rosto daquela linda garota. Nunca sentira nada igual em toda a sua vida. Nunca sentira o que era aquele ânimo e medo ao mesmo tempo e nem provavelmente sabia que estava sentindo alegria e medo sincronizadamente. Sua vontade era de ficar por horas a fio observando aquele rosto angelical e paradoxalmente lutava para se manter longe daquela criatura que mexeu tanto com ele. Por fim, adormeceu.
No dia seguinte, acordou com gritos. Abriu os olhos, olhou para os lados e correu para fora. Mulheres gritavam e atiravam pedras contra aquela linda garota que chorava e tentava desprender-se dos braços de dois homens. Abria a boca, mas não emitia qualquer grito. Lucas correu para perto das pessoas e perguntou por que ela estava sendo castigada.
_ Ela não fala e nem ouve! – Berrou uma senhora gorda de vestido rosado e um lenço verde em volta da cabeça.
Amarraram-na a um cipó. Trouxeram um longo chicote. Os grandes líderes da aldeia, três homens e quatro mulheres muito velhos, observavam tudo, com exceção da anciã que conversara com o garoto na noite anterior. Ela permanecia sempre de cabeça baixa e mirava apenas o chão.
Aquela garota deveria ter mais ou menos a mesma idade de Lucas, e disso ele tinha noção. Sentiu um vazio na boca do estomago, suas pernas tremiam e sua visão ficou um pouco tonta. Uma sensação de vulnerabilidade tomou conto do seu corpo e um sentimento de ódio por isso inundou sua mente que se afogava em pena, súplica, medo, coragem, solidão, esperança, desânimo, um cavalo, fuga, os campos, as estrelas, o vaga-lume, a anciã entre outras coisas.
Se aquela garota fosse mais nova, atirá-la-iam de um penhasco, mas como já era quase uma adolescente, decidiram queimá-la. Provavelmente fora abandonada ou chegou à aldeia fugida.
Sabe Deus por que algumas coisas são da forma que são e por que acontecem da forma que acontecem. Aos braços do mistério entregamo-nos todos sem que possamos fazer qualquer coisa que realmente funcione e responda nossas indagações. Ao espaço sideral mandamos nossas mentes que nós mesmos não temos controle e nem conhecimento do seu total poder. Todos nós guardamos um universo fantástico e misteriosamente infinito dentro do que chamamos de crânio.
Lucas tinha uma enorme dificuldade para tomar decisões e o fato de sua mente estar lutando para se libertar dificultava ainda mais a tarefa. A imagem sofrível daquela garota presa sob a luz do sol e o úmido ar do sereno não saia de sua cabeça. Sabia que podia fazer algo e que precisava. Não o se perdoaria se deixasse os acontecimentos seguirem os caminhos iniciais e temia pela própria vida – não queria sua cabeça sobre o mastro.
Barbara, esse era o nome da doce garota. O dia já chegava ao seu fim e o sol já estava se pondo e a cede tomara conta de todo o seu corpo. Estava cansada e a fome também fazia companhia. Cabisbaixa, uma leve brisa passou pelo seu rosto elevando um pouco as pontas do seu cabelo. Olhou para sua esquerda e viu um tufo de capim banhado pela luz da lua. Parecia que brilhava um verde claro das pontas do capim e do centro, sobre o caule, estava o que parecia um casulo grande de cor azulada.
Barbara não conseguia parar de olhar e talvez, a flor soubesse disso. A única flor das margens, a única que não estava dormindo desabrochou lentamente mostrando o seu sol interior. Aqueceu por alguns instantes as esperanças de Barbara que nunca tivera visto algo parecido. Ergueu seus olhos e começou a contemplar as estrelas e a grande lua pálida. Uma pedra passou muito próxima da sua cabeça e assustada ela percebeu que não estava sozinha.
_ Deixa ela em paz! – Soou um pouco trêmulo e abafado, mesmo demonstrando muita convicção.
_ Como é que é? – Questionou um homem calvo com uma vestimenta de couro que servia de proteção às pernas e braços.
Lucas permaneceu calado e ao perceber que estava amedrontado o homem continuou.
_ Eu sabia que tinha algo de errado com você! Você trouxe a praga de volta às nossas casas. Besta!
A agressividade assustou Lucas, mas também o deu uma sensação de raiva e essa raiva trouxe coragem. Os gritos de ambos chamaram atenção de todos na aldeia.
Barbara foi desamarrada e junto a Lucas correram entre as cabanas enquanto todos, muito curiosos, faziam um paredão de pessoas lado a lado e gritavam peste!... peste!... peste!... As tochas ardiam uma luz avermelhada, o chão de barro poeirou com os passos apressados dos dois, agora fugitivos.
Romanticamente havia um cavalo logo à frente. Estava selado e pronto para ser montado. De sua direção vinha a velha anciã. Tentava esconder a mão ensangüentada. Cortara-se no momento em que preparava o cavalo. Lucas entendeu o que acontecia naquele momento, apesar de sua pressa e medo serem maior e parecer dominar toda sanidade. Ficou feliz, mas segundos depois, uma tristeza preocupou sua humanidade. Sabia que aquela senhora seria condenada por traição e que provavelmente seria morta como exemplo.
Barbara foi empurrada para cima do animal e ficou desajeitada assim como Lucas também ficou, uma vez que nenhum deles sabia montar. Os calcanhares bateram na barriga do animal que parecia saber o que deveria fazer. O galope foi aumentando e o vento da noite batia sobre o rosto do garoto e correia por entre os cabelos de Barbara. O vento ajudava a secar as lágrimas daquela criatura inaudível e seu rosto tinha as linhas percorridas pelas gotas de lágrimas.
Já longe da aldeia, quando o cavalo demonstrou cansaço e quando Lucas já começara a sentir culpa pelo o que fez, o cavalo parou para comer a pouca vegetação que estava a sua disposição. Não havia riacho e nem sinal de água. Estavam todos cansados, com sede, com fome e com medo. A diferença entre ela e ele era que ela estava dolorida e espancada.
Sem explicação alguma, ele sentia um enorme carinho por ela. Não sabia exatamente o que sentia, mas quando ela parava em sua frente e mesmo ela com o rosto manchado pelas lagrimas e alguns vermelhidões, achava-a linda. Nunca sentira nada por qualquer garota da aldeia. Sentia agora uma estranha satisfação, uma estranha alegria, mesmo naquela situação conturbada.
Amarrou o cavalo a uma grande pedra e deitaram no chão. Ela sempre se mantinha um pouco distante dele. Pela sua expressão, dava-se para perceber que ela não entendia muito bem o que acontecia, entendia com clareza que queriam fazê-la mal.
Lucas, em seu pedacinho de terra, observava Barbara de rosto dado para as estrelas. Ficou intrigado e também se entregou aos céus. Contemplaram a presença, a mágica presença da lua e das estrelas. Algumas libélulas e vaga-lumes sobrevoavam o trio, seriam talvez guardiões ou mensageiros? Adormeceram.
No horizonte, o céu já denunciava a chegada do sol devido à cor rosada e esbranquiçada. Lucas acordou assustado com pisadas de cavalos. Eram sete e o cavaleiro que guiava o animal, onde vinha junto um dos anciãos, desceu do cavalo e com um leve chute nas pernas, acordou Bárbara. Estavam todos assustados. Lucas tentou se soltar e gritava para sua amada correr, mas ela não conseguia entender, apenas sabia que estava para morrer.
_ Não!!! Ela não! Por favor! Matem-me, mas deixe-a ir... Deixe-a com sua pouca sorte!
_ Cala a boca demônio! Tu pagarás de qualquer forma. – Gritou um dos homens puxando-o pelo cabelo.
Barbara chorava por ver Lucas chorando que por sua vez, chorava por ver o destino de Barbara. E mais uma vez, Lucas suplicou:
_ Por favor Senhor Aliel! Deixe-a ir. Faça todo o ritual, o sacrifício que for necessário, mas deixe-a ir!!! – Neste momento começou a cantarolar uma cantiga. Sua voz tremula misturada ao choro dava à cantiga uma sonoridade triste, tão triste que poucos homens hoje seriam indiferentes.
Por fim, o senhor ancião deixou que Barbara fosse embora. Fizeram gesto com os braços para explicá-la que teria que ir. Ela correu... correu o máximo que podia e seus olhos enchiam-se de lágrima. Sua visão embaçava-se pela tristeza. Chegou a cair, mas levantou-se e continuou a correr até que não agüentou mais. Parou, olhou para trás e não pode ver ninguém – já estava muito longe. Olhou para frente e não viu casa nenhuma, nada, apenas um grande campo verde amarronzado, com poucas baixar árvores e alguns tufos de mato.
Lucas foi punido com a morte. Sofreu muito para limpar a aldeia do pecado e da maldição. Seus olhos foram arrancados, seus tímpanos furados, sua língua cortada e sua boca costurada. Em seu peito cravaram uma estaca de ferro. Levaram seu corpo para um campo distante da aldeia, não foram muito longe quando várias borboletas brancas e laranjas pousaram sobre o seu corpo, cobrindo-o por completo. O susto e medo fizeram os homens abandoná-lo pelo caminho.
Ninguém mais naquela aldeia teve notícias de Bárbara, mas fato é que ela continuou a fugir em sua caminhada até onde e quando Deus permitiu.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 16/07/2011
Código do texto: T3099016

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Um comentário:

Elvira Carvalho disse...

Mais um excelente conto Samir. A lembrar histórias e rituais de outros tempos.
Um abraço e uma boa semana