22 março 2013

As Colunas, O Teto Azul e A Servente




AS COLUNAS, O TETO AZUL e A SERVENTE

As colunas chegaram...

Foram colocadas em um terreno pré-preparado. Preparado há tanto tempo que muitas coisas se perderam e outras apodreceram. Terreno infestado por insetos escondidos por entre os capins. Os capins aparecem e crescem sempre, e os insetos brotam de onde ainda não descobrimos e creio que nem teremos tempo para descobrir. Talvez seja melhor assim.

As colunas chegaram... Solitárias, cada qual escolheu um ponto onde se fixar. As colunas ficaram... Solitárias, cada qual escolheu uma outra para se olhar. As colunas ficaram e solitárias escolheram todas para somar.

Soma essa feita em um terreno pedregoso, lamacento e depósito de merda, muita merda. As colunas sujaram-se um pouco, o que é inevitável, mas suas estruturas não foram abaladas. As colunas foram trazidas para sustentar um teto azul com manchas brancas. Não se sabe se é dentro da parte azul ou da branca onde estão os livros mais significantes da Terra. Um teto abstrato com peso pressãomente concreto. As colunas estão de pé. Sustentando coisas que só elas podem saber.

A servente de pedreiro já estava à espera das colunas quando essas chegaram. Ela trazia um sorriso no rosto e suas mãos pequenas acenavam. Seus olhos diziam políticas que docemente perfuravam escudos. As colunas, como forma de segurança, fixaram alguns centímetros solo adentro. Alguns dizem que elas, fantasticamente, criariam raízes. E creio que todas já deram brotos.

No teto, que outrora se desbotava, foi passado giz de cera azul e com giz de gesso algumas manchas brancas também foram intensificadas. Creio que algumas das colunas pretendiam pintar poucas estrelas, estrelas que deixariam pingar laudas de poemas concretos, de gráficos de coisas abstratas positivamente, de desenhos aquarelas pintadas, simplesmente, pela vontade das colunas.

Foi então, que a servente de pedreiro que parecia não gostar muito do azul pôs em prática um plano. Será que são das manchas brancas de que ela não gosta? Talvez, a idéia das estrelas causasse-lhe medo. Enfim, o engenheiro, de sua redoma de vidro, mandou sugestões solúveis iguais a pó e ela, a servente, as transformou em plano.

Sem o engenheiro ou sem a servente, o teto continua sustentado. Mas e sem as colunas o que será do teto? Sem colunas, não há vão entre o chão e o céu. E para todos respirarmos é necessário haver o vão entre o chão e o céu.

Foi então que a servente teve a idéia de uma votação. Larvas que bebericam sobre as fezes foram convocadas, insetos foram trazidos para zumbirem. Todos votaram. Pelo o quê? Pela queda das colunas. Estas receberam a proposta de cederem porque um milagre estaria previsto. O céu azul de manchas brancas não cairia sobre suas cabeças e muitas estrelas surgiriam como pequenos botões de rosas. Justificativa? Deus estaria interessado naquele teto, talvez para fazer um pequeno quiosque de jardim onde passaria algumas horas lendo. O cair das colunas seria a única forma delas permanecerem sustentando aquele teto. Algumas colunas gostaram da idéia, outras nem tanto.

E os insetos e larvas votaram.

As colunas terão que cair. Cairão para então receberem a mão da servente que as ajudará a se colocarem onde estavam. Sem raiz e sem estrela de tinta. Apenas estrela de papel crepom. Colunas não criam raízes, pelo menos não deveriam.

As colunas chegaram, ficaram, botões de rosas surgiram de dentro do concreto e algumas grandes quantidades de merda foram removidas com vassouras sem cerdas. Serviço sujo feito pelas colunas.

Tudo o que é já parece ser o que era. Tudo o que foi virou fumaça de brasa recém apagada.

Será que já acabou? Acabou.


Samir S. Souza
Publicado no Recanto das letras em 22/03/2013
Código do texto: T4202880

07 março 2013

O Jovem que Não Precisava Trabalhar




O JOVEM QUE NÃO PRECISAVA TRABALHAR


Estavam no ônibus que ia para Ferraz. Subiram em Suzano após longos minutos de espera. Ela ia para o trabalho e aproveitava a viagem para deixar seu filho de aproximadamente sete anos no colégio. Um garoto diferente dos demais. Era ávido inocentemente e observador. Claro que tinha momentos iguais aos demais garotos de sua idade, momentos esses de bobices para sermos delicados com as palavras. Mas naquela manhã, ele estava atento.

Após passarem pela estação de Calmon Viana, na Avenida Brasil na altura do numero 650, próximo a passarela de pedestres, ao lado do ponto de ônibus, onde uma mulher negra desceu e outra gorda esperava seu ônibus, todos, que estavam nos últimos bancos daquele que ia para Ferraz, viram quando um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos, um pouco fora de si, gritava apontando para quem estava dentro o ônibus, que ele não precisava trabalhar.

Um grande tubo de metal torcido e parafusado cheio de anônimos de caras pálidas e amassadas, de bocas cheias de bocejos e olhos lacrimejados com pálpebras pesadas de sono e cansaço. Um tubo pintado para disfarçar metal que cortava ruas e avenidas margeadas de anônimos e alguns mortos vivos. Tubo que fazia curvas imprudentemente fazendo seus anônimos internos a quase se igualarem a gados e vacas. Antes que o motorista tirasse o pé do freio e avançasse, ela, a mãe do garoto esperto, após ver e ouvir aquele jovem gabar-se de que não precisava trabalhar, pensou consigo que era sorte dele.

Seu filho também o viu, já que estava sentado ao lado da janela, e automaticamente olhou para a mãe. Por alguns segundos ficaram calados, cada qual com seus pensamentos ou imaginações. Por fim, ele questionou:

_ Por que ele não precisa trabalhar?

Ela se riu e respondeu:

_ Talvez ele seja rico meu bem.

Ele fez cara redonda de quem tenta demonstrar entendimento, mas sem definitivamente entender e após quatro ou cinco segundos disse:

_ Se o papai fosse rico, ele não acordaria cedo. Ele mesmo disse.
_ Eu também não. Talvez, aquele moço nem tenha dormido ainda.
_ Ah bom. Mas por que a senhora e o papai têm que trabalhar e ele não?
_ Por que algumas pessoas têm mais dinheiro do que as outras.
_ E por quê?
_ Por que é assim mesmo. A vida, às vezes, é injusta.

Ele deixou transparecer aquela expressão que algumas pessoas demonstram, discretamente, quando dissemos algo que era melhor não termos dito e disse:

_ Injusta? Mas Deus não faz nada para que seja justa?
_ Ora meu amor, é claro que faz. – Ela disse meio desconcertada e um pouco arrependida por ter falado, na opinião dela mesma, demais.
_ Então porque a senhora e o papai não “para” de trabalhar?

Ela se riu mais uma vez e disse:

_ Por que não somos vagabundos. Temos que trabalhar para ter as coisas.
_ Então aquele homem é vagabundo?
_ Não sei. Pode ser que não.
_ Mas Deus não nos dá as coisas?
_ Dá, mas temos que lutar por elas, temos que trabalhar para merecer.

Ele virou o rosto para a janela e mirou o céu neblinado e após alguns segundos virou-se para sua mãe. Talvez ele tenha refletido um pouco se deveria continuar com aquela conversa ou não. E preferiu tirar sua última dúvida:

_ Se aquele homem não trabalha então ele não tem as coisas ne?
_ Algumas pessoas tem as coisas sem trabalharem muito ou sem mesmo trabalhar.
_ E isso não é injusto? Então Deus é injusto com a senhora e o papai.

Ela ficou um pouco chocada com tal afirmação e apressou-se de tentar concertar.

_ Cuidado menino! Não pode falar assim de Deus. Deus castiga!

Ele se encolheu e quando o ônibus parou ao lado da estação de Poá, levou a conversa para outro nível. Um nível filosófico, uma conversa chocante emergida da boca de uma criança. Ou um monstro pequeno?

_ Mãe...
_ Sim.
_ Se eu deixar de acreditar em Deus, deixa de existir o castigo?

Ela arregalou os olhos:

_ O quê? Que história é essa?
_ Se eu apagar Deus da minha mente ele não pode me castigar, não é?
_ Claro que não meu filho. Não tem como apagar Deus da nossa mente.
_ Por quê? A senhora não esqueceu o número de telefone da minha madrinha? Então.
_ Mas de Deus não se esquece menino! Deus é tudo!
_ Tudo? – E dessa vez, foi a vez dele arregalar os olhos.
_ Quem te falou essas coisas? Quem anda te ensinando essas coisas hein? Foi na escola?
_ Não. Ninguém me falou.
_ E da onde você tirou essas conversas?
_ Eu não sei. Só perguntei.
_ Você acredita em Deus não acredita?
_ Acredito... – Mas soou duvidoso ainda.
_ Então não tem com esquecer Deus. É impossível esquecer do que a gente acredita. Você entendeu?

Ele balançou a cabeça de modo que afirmava o entendimento.

E antes de levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse no próximo ponto, ela finalizou aquela conversa alegando não querer ouvir mais aquelas coisas. Ele limitou-se com um “está bem”.

 No sacolejo do ônibus, ela equilibrou-se entre sua bolsa, mochila do filho, segurar-se e segurar a mão dele e ainda passar por entre anônimos que costumam parar em frente à porta. Alguns anônimos necessitam desesperadamente de portas.

Desceram.

Ele ficou a olhar os pneus distanciarem e esqueceu, pelo menos naquele momento, do que pensara momentos antes e se entreteu com uma grande lesma sobre a calçada e, em pensamento, agradeceu a Deus por não ter nascido lesma. Sua mãe chamou sua atenção para andar logo, já que ela não tinha o dia todo. Ele correu para perto dela e seguiram para a escola.

Ele, não se sabe por que, olhou para trás como quem sente saudade de alguma coisa que ficou. E sempre fica.

Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 07/03/2013
Código do texto: T4176740