20 novembro 2011

Dias Vazios

imagem própria

DIAS VAZIOS


Hoje é um dia extremamente triste. O vazio faz-se presente no peito e a dor faz-se companheira. Lembranças tentam tornar cada minuto real de volta a cada segundo do presente. Tudo o que foi vivido parece ter sido em vão. Um sentimento de ódio também parece bater na porta da consciência. As lágrimas dos familiares são súplicas por ajuda e abraços. Lembranças tentam tornar-se reais. Hoje é um dia extremamente triste. Um pedaço dele foi arrancado.
O mundo moderno exige praticidade, e nessas horas é preciso cuidar de toda parte burocrática e do dinheiro para o enterro. Tudo é feito de forma consciente, mas consciência essa alimentada pelo vazio de pensamento nenhum, de sentimento nenhum que não seja a falta, e a esperança por qualquer coisa, a súplica por um sinal ou troca e a certeza do nunca mais e de que amanhã e depois de manhã e depois e depois e depois serão cada vez mais vazios.
Seus olhos estão lagrimejados, seus beiços tremem, seus braços não possuem mais vida ou possuem vida própria. Uma vontade de gritar e chorar o mais alto possível, vontade de sair correndo para lugar nenhum, vontade de se encontrar com ela, vontade de um abraço, só mais um – o último que seja –, vontade de uma última palavra: eu te amo.
Chega o momento em que não podemos mais agir como muralhas e ele desabou sobre suas pernas. Estava sentado e começou a chorar. Não um choro qualquer desses que choramos quando nos machucamos, mas um choro doloroso, solitário, eterno. Um abraço amigo veio fazer-se presente, veio apoiar as colunas da muralha. Nenhuma palavra foi dita. O homem ainda não foi capaz de inventar palavras para esse momento.
Carlos tem dezesseis anos e perdeu a visão ainda com um ano de idade. Consegue locomover-se facilmente pela cidade, é um rapaz independente; estuda, faz cursos e pratica esporte. Tem uma vida normal, apenas com um sentido a menos. Amava sua mãe e apesar de nunca tê-la visto com os olhos, a sensibilidade de seus dedos o ajudava a enxergar a mãe pelo tato e pela audição. Ela era realmente linda. Fez de tudo pelo filho, lutou pelos direitos dele e lutou por ele. Era uma mulher alegre, bem humorada, dessas que gostam de fazer várias coisas ao mesmo tempo.
Carlos ainda consegue ouvir a voz de sua mãe. Por vezes, jura que ela ainda está entre nós e lágrimas brotam de seus olhos.
Seu pai, sua irmã e ele ficaram na casa dos avós por três dias após o enterro. E o dia de volta para casa foi como se tivessem viajado no tempo para o passado. Era como viver novamente os momentos sem a permissão de senti-los. O cheiro da casa, as coisas como ela deixou, o quarto, as fotografias, tudo. Tudo também fez parte dela e ela fez parte de tudo, muito do que se encontrava dentro daquela casa era criação dela. Como é possível as coisas mudarem de um instante para o outro? Como é possível olhar para obra de alguém que sabemos que nunca mais chegará sorrindo, nunca mais ouviremos sua voz, nunca mais um abraço, nunca mais veremos o brilho dos olhos? A dor pesou mais sobre ombros de Carlos. O cheiro da mãe ainda era presente, os cremes, os perfumes eram verdadeiras máquinas do tempo.
Ficaram, por um tempo, sentados no sofá da sala, olhando para o nada, calados. Cada um isolado em suas lembranças, dores e ao mesmo tempo, prontos para dividir as lágrimas.
Após um tempo, apenas Carlos ficou sentado no sofá. Estava de olhos abertos, mas a escuridão dentro dele, trazia a voz e o cheiro da mãe.
Alguns dias depois, trancado em seu quarto e sem explicação por que fez aquilo, Carlos ligou para o celular da mãe que estava em sua mão. Suas pernas também tremeram quando ouvir e sentiu o aparelho tocar e vibrar. Esperou que a ligação caísse na caixa postal.
Após o sinal, Carlos ouviu a voz dela na mensagem. Seu coração bateu forte, ficou ofegante. Uma sensação de alegria e dor se misturava ao meio ao caos em sua mente inundada por lembranças. Por uma fração de segundos imaginou tocar o rosto da mãe novamente... chorou, chorou muito. Algo apertava seu peito, algo precisava ser expelido.
Ligou novamente várias vezes para o número do celular, até que parou em pé em frente à janela do seu quarto. O sol brilhava lá fora, mas isso, naqueles dias, não fazia diferença nenhuma. Carlos se perdeu em pensamentos... Entregou-se mais uma vez, chorou muito e quis quebrar o celular, mas logo veio a ideia de que estaria machucando a voz da sua mãe. Tentou engolir o choro e mostrar força e antes que caísse em prantos de novo questionou-se: até quando ficaria disponível aquela mensagem?

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 20/11/2011
Código do Texto: T3346315 

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07 novembro 2011

Na Calada da Noite

imagem google

NA CALADA DA NOITE

Sempre tive dúvidas sobre o meu acreditar em fantasmas, assombrações, ectoplasmas e coisas do tipo. Confesso que quando criança, chegava a ouvir passos ou achar ter visto alguém me olhar de rabo de olho escondido atrás de uma das paredes da casa. Eu morria de medo, era verdadeiramente perturbador ficar sozinho, principalmente quando minha mãe ia buscar minha irmã na escola e voltava já por volta das sete horas da noite. No entanto, felizmente cresci, claro que às vezes, nessas conversas de assombrações onde amigos mostram fotos estranhas e cada um conta relatos de parentes próximos ou de experiências próprias, minha imaginação turvava-se, mas nada que fosse sério ou que me abalasse. Gostava até. Achava tudo muito excitante. Igual a mim, creio que todos também possuem amigos, principalmente amigas que sempre nos aconselham com ditados populares ou alguma superstição; é cruel, mas tenho que admitir: quem procura acha. E quando ousamos em chamar; algo chega. Mas confesso que ontem à noite, não falei sobre o assunto e muito menos chamei ou procurei alguma coisa.

Era por volta da meia noite e pouca. Eu havia acabado de me deitar. Fiquei boa parte da noite fazendo companhia a minha mãe na sala. Eu estava cansado e pensava no trabalho do dia seguinte: acordar cedo, sair de casa quando o sol ainda vai começar a se preparar para seu espetáculo, ter que aguentar pessoas chatas entre elas eu mesmo e ainda, por mais tolo que isso possa soar, fazer serviço que não é exatamente o meu. Pois bem, era ou ainda iria dar onze horas quando subi para o meu quarto, fiquei cerca de quase uma hora usando o computador e como não havia mais recados para responder e nem filmes interessantes para assistir, deitei-me.

Há noites, que não preciso fazer absolutamente nada, só deitar e dormir. No entanto, há outras tantas em que o sono parece ir embora justamente quando encosto a cabeça no travesseiro, e ontem foi uma dessas noites. De tanto virar de um lado para o outro, eu resolvi ficar de barriga para cima, balançava o pé direito sem parar – só agora me lembro deste detalhe – e fiquei de olhos abertos olhando o escuro ou talvez o forro do teto dentro da escuridão.

Um avião passava lá no alto, bem além do teto da minha casa. Imaginei-o, o avião, aquele pontinho prateado brilhando num céu da cor do azul misturado ao cinza entre nuvens grafites e a luz da lua pálida banhando tudo ao mesmo tempo.

Um barulho borrou as nuvens, a lua e o avião na minha imagem. Olhei em direção a parede ao meu lado direito. Percebi que o barulho não vinha da parede ao lado, mas do canto superior da parede da minha cabeceira. Parecia um rato arranhando o tijolo ou fazendo ninho. Aquele som não durava nem cerca de um minuto, e logo depois voltava. Por um instante imaginei unhas arranhando o cimento. Como imaginei ser apenas rato, não dei importância.

Já estava quase adormecendo quando de repente meu sono foi fisgado por alguma coisa que agora arranhava o forro. “Meu Deus, tem rato dentro do forro!”. Pensei o que seria preciso fazer para acabar com os ratos e logo me perguntei como seria capaz daquele animal perfurar o tijolo rapidamente.

Não sei se serei capaz de descrever exatamente o que e como as coisas aconteceram. Senti um enorme cala frio e um arrepio que me levou para fundo da minha própria mente. Segundos depois, senti novamente e mais intenso. Tive que me encolher, parecia que a minha cabeça fora mergulhada dentro de um poço inundado de gritaria. Era uma verdadeira poluição sonora e imagens de pessoas borradas dentro de uma espécie de névoa cinza, branca e preta vinham a minha cabeça. Um caos. Eram gritos que não posso descrever, pareciam risos, gargalhadas, choros, dor, socorro. Tentava abrir os olhos, mas era tudo mais forte do que eu. Se caso fosse um pesadelo, estou certo de que não era eu quem tinha o pesadelo, mas o pesadelo que me tinha.

Quando finalmente consegui controlar aquele cala frio que deixava todos os meu pelos arrepiados e consegui abrir os olhos, eu estava tonto e um pouco enjoado. Vi na parede uma fileira de luz alaranjada. Não sei como, já que eu nunca tive muita coragem, olhei em direção da onde poderia vir aquela luz. A janela estava dois dedos aberta. Pensei seis vezes antes de ir fechá-la.

Quando estava novamente me arrumando, outro barulho se fez presente. Para meu azar ou não sei se sorte, o barulho vinha do quarto que fica próximo às escadas, quarto esse que está vazio e cuja porta fica o tempo todo aberta. Confesso que não me atrevi a ir ver o que era.

Meu quarto fica ao final do corredor, deixo a porta sempre aberta, principalmente em noites quentes igual ontem.

Estava deitado de barriga para baixo quando escutei o clique do interruptor. Imaginei que fosse minha mãe que estivesse acordada, olhei de relance, mas tudo continuava escuro. Fiquei um pouco apreensivo. Segundos depois escutei novamente aquele clique. Não era um som distante ou um estralo de algum objeto. Sei exatamente o que ouvi: era o interruptor sendo pressionado. Olhei em direção à porta do meu quarto e o escuro tomava conta do corredor e obviamente de todos os outros cômodos. A única coisa que passou pela minha cabeça foi me cobrir e foi o que fiz.

Meu celular estava ao lado da minha cama, ele estava ligado caro leitor, mas o visor estava desligado como forma de poupar energia. Como todos devem ter conhecimento, o visor só acende quando a tecla é pressionada ou quando recebe ligação ou mensagem – e o visor acendeu. Fiquei curiosíssimo, por um instante esqueci-me de tudo e fui ver de quem seria a mensagem, no entanto, não havia mensagem ou ligação alguma. Foi neste instante que me dei conta onde estava mergulhado.

Aquela luz do celular dava um tom azulado dentro da escuridão do meu quarto, iluminava apenas parte do escuro em torno do aparelho. Outra vez senti aquele cala frio e mais uma vez tive minhas razões mergulhadas em gritaria como já havia acontecido antes, felizmente, desta vez, não durou muito. Abri os olhos e o escuro dominava tudo novamente e mais uma vez o visor do celular voltou a clarear. Já não sabia mais o que fazer e mesmo se soubesse, talvez não tivesse coragem de me levantar ou mesmo de tirar a coberta de cima de mim.

Um livro da prateleira que fica no quanto esquerdo do meu quarto caiu. Creio que seja um livro, era o som de um livro caindo no chão. Aquilo foi o suficiente para que meu coração batesse mais rápido do que já estava batendo. Um frio tomou conta do meu corpo. Um frio enorme parecia estar apenas dentro da minha coberta. Encolhi-me e cada vez aquele frio aumentava mais... O visor do celular não desligou novamente, a única coisa que consegui fazer naquele exato momento, foi virar o visor para baixo.

Caro leitor, juro que vi o que vou contar daqui por diante. Havia alguém sentado na cadeira de frente para o meu computador. Olhei como quem não quer olhar, mas precisa certificar-se de que está mesmo olhando: era alguém que olhava em minha direção, que não demonstrava nenhum movimento, apenas estava virado em direção a minha cama. Não consegui ver se era homem ou mulher, na verdade, era possível apenas ver um pouco mais do que a silueta, assustadoramente.

É engraçada a reação das pessoas em momentos de pavor. A minha foi de deitar-me novamente, afinal, o que eu poderia fazer? Levantar e sair correndo? Levantar e acender a luz? Perguntar quem era? O que você faria caro leitor se fosse você nessas condições?

Cobri-me até a cabeça, minha respiração estava ofegante e senti muito, muito frio. Tentei gritar por alguém, mas minha garganta estava em nó – agora eu sei o que é ter um nó na garganta, como dói. Queria chorar, mas nem lágrimas eram capazes de descer pelos meus olhos. Tentei rezar.

Escutei novamente o barulho do interruptor e passos como quem está vindo do corredor. O visor do celular continuava ligado. Olhei por rabo de olho para a cadeira e não vi nada. Não sabia se procurava por sinal de alguém no quarto todo ou se alimentava a ideia de que não havia ninguém ou que seja lá o que era já fora embora.

No momento em que estou, amedrontadamente verificando o quão real poderia ser tudo aquilo, a luz do quarto acendeu e logo em seguido apagou novamente. Questão de segundos, mas o suficiente para eu ver o que parecia ser uma mulher sobrevoando em frente a minha cama. Foi como laminas penetrando na carne – não era como cortes, era pior que isso. Corri pelo corredor, descalço, sem pensar em nada, queria apenas libertar a minha mente.

Não sei se desci a escada degrau por degrau, de fato só lembro do meu pai vindo em direção a mim com os olhos arregalados perguntando o que estava acontecendo. Eu tremia feito bambu e minha voz estava esganiçada e engasgada. Contei o que vi ou que aconteceu por último.

Não entendo porque quando acontece ou vimos algo e contamos ou pedimos ajuda a alguém, essa pessoa tenta nos levar no local exato para que possamos mostrar. Ora, já contei o que vi ou o que aconteceu e onde aconteceu, vá só, não me peça para ir junto... ninguém sabe o que foi que vi ou presenciei. Que idéia doida de querer que eu vá junto...

Infelizmente, acabei indo, não havia outro jeito. Quando chegamos ao corredor, a porta do meu quarto estava entreaberta e a luz a acesa. Implorei para não entrar, mas o que havia de ser feito. Sou um homem ou um saco de batatas?

Estava tudo aparentemente normal. Não havia livros caídos, nada nas paredes, a janela estava fechada, a cadeira continuava virada em minha direção e o visor do celular estava desligado com uma ligação perdida. Não havia nada no forro, ninguém flutuando e nem mesmo sinal de frio. Meu pai me olhava assustado, não pelo o que talvez tivesse acontecido, mas pelo meu comportamento. Confesso que eu estava transtornado ainda, estou certo de que não era imaginação.

Ouvi que era preciso dormir, deixar de bobeira porque já não tenho mais idade para essas coisas e que eu preciso tomar vergonha. Meu pai desligou a luz do meu quarto e seguiu o corredor em direção as escadas. Eu fiquei em pé, sob a luz do corredor olhando meu pai se afastar e tentando olhar para dentro do quarto... que dilema: entrar ou dormir na sala?

Samir S. Souza
Texto Publicado no Recanto das Letras em 07/11/2011
Código do texto: T3323041 

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