02 junho 2011

O Mundo Do Meio

autor desconhecido - imagem google


O MUNDO DO MEIO

O caos apossou-se da cidade e dos poucos campos que restaram. O mal e a bondade reinam nas casas e na mente das pessoas cujas roupas sujas e rasgadas demonstram a luta que se sucede dias após dias. Pessoas essas que correm a todo instante por entre as ruínas: casas de Deus, casas do Satanás e todo o resto que possa agora estar no meio do caminho dessa grande selva concretizada.
Fumaças procuram desesperadamente os céus para que possam fugir de toda a contradição atômica exalada pelas bocas santificadas de civis de bem e pelas bocas cujas palavras soam como insetos que jogam pela cidade o que parece ser um forte cheiro de fezes e urina. Aquilo o que o homem criou para ser belo e tempos depois é destruído pela vontade do homem o engole em um paradoxo poema infernal terrestre.
Deus virou-se de costas para a Terra e o Satanás pediu-o refugio. Juntos escutam apenas os insultos trocados pelos guerrilheiros e os ossos trincando como simples pedaços de bambu. Talvez, na história da humanidade não houvesse ainda batalha tão sangrenta e cruel igual a esta que fora negligenciada e alimentada por dizeres que nunca disseram realmente nada. Crianças demoníacas, cujas faces angelicais fazem nutrir um carinho e uma delicada admiração, sabem usar exatamente a ignorância de seus servos em nome daqueles quem os ofereceram o silêncio. A obscuridade passou a fazer parte dos escritos – ninguém entende mais nada ou cada qual entende da forma que sente.
Flagelados e flageladas gritam com toda a força. Violentados e violentadas tentam violentar os anjos. Injustiçados e injustiçadas lutam pela justiça. Orgias de palavras ocorrem a cada esquina, ejaculações masculinas e femininas fazem subir até as narinas um leve cheiro azedado pelas épicas opressões bentas.
O sol, a lua e as estrelas escondem-se por detrás de uma fina camada de nuvem cinzenta proveniente do caos e das destruições causadas pelos guerreiros. Heróis que estupram suas imagens maternas. Vilões que salvam os filhos da "besta". Pais que cortam a cabeça de suas crias. Há apenas dois lados, os de bem e os "demoníacos". Mas esclareço afirmativamente que não se trata de uma batalha maniqueísta. Nem Deus nem o Diabo estão presentes.
Alguns prédios pequenos foram derrubados de modo que pedaços de concreto, tijolos e muita poeira tomam conta de muitas ruas. A todo instante pessoas passam correndo aos gritos, algumas com pedaços de madeiras ou ferros, outras com grandes pedras e em meio à correria algumas atropelam corpos que se decompõem em céu aberto. Pediram ajuda as autoridades, mas os militares também se dividiram. A mídia tentou transmitir os fatos, mas ela também se acabou dividindo em dois.
O que parece ser o lugar mais seguro até agora, é o mesmo lugar onde estão escondidos muitos dos lideres dos civis de bem que instigaram e ainda ressaltam a importância dos atos que estão sendo praticados.
Tudo indica que o lado dos de bem é o maior e o mais forte, mas quando estamos em guerra tudo é possível e o auxílio quase sempre acaba aparecendo para dar o ar da admiração.
Ontem, foi noticiada uma nova praga que assola o grupo aparentemente maior. Ninguém ainda sabe dizer ao certo do que se trata, mas tudo indica que interfere nas células cancerígenas. Todos estão cada vez mais coléricos. Parecem animais famintos que ficam a espreita para emboscar alguém do grupo aparentemente menor. A caça é feita de forma assustadoramente cruel. São poucas as vezes que armamento de fogo é usado. Pedras, pedaços de paus, ferros são os preferidos. Batem, chutam principalmente na região da cabeça. É notável o semblante de satisfação quando percebem que os ossos do crânio já se racharam e que a presa nada mais tem a fazer.
Não é devido à guerra que essas caças acontecem. Elas na verdade já vem acontecendo há algum tempo e é justamente a repetição dos fatos que o cansaço chegou ao outro lado. Aquele que mexer com o filhote, seja ele de qual espécie for, a mãe uma fera será.
Profecias mudas gritam aos ventos as maldições da evolução humana. Evoluíram e hoje não passam de porcos, ratos e baratas. Fileiras de carros destruídos posicionados para que talvez possam servir de proteção.
Hospitais tornaram-se centros de extermínio. Alimentos são para poucos e lavagem é dada aos dois grupos em guerra. As “prisões” abriram suas portas, mas apenas com passagem de saída – ou talvez seja de entrada? A solução foi fazer limpeza geral. O lixo é queimado para que talvez seja a forma mais fácil de livrar-se do fardo.
É possível sentir em alguns cantos dessa poética e adorável selva de concreto o cheiro de carne estorricando nas grandes queimadas.
Gritos!!! Um jovem rapaz tenta fugir de um grupo, mas infelizmente tropeçou em uma perna cujo corpo estava esmagado por uma caçamba de lixo cheia de crianças nuas e mortas. O grupo, com cerca de quinze rapazes, chuta-o e, com pedaços de madeiras com pregos grudados em suas extremidades, abrem a cabeça da caça fragilizada. Um forte cheiro aquecido singular do sangue já não mais embrulha os estômagos.
Grandes grupos tentam chegar ao palácio onde se escondem a elite amedrontada. Há aqueles que querem as cabeças e há aqueles que querem as cabeças daqueles que querem as cabeças de seus lideres.
O esgoto tornou-se abrigo e a merda alimento. Direitos foram atribuídos e grupos foram idolatrados. O papa, de sua sacada, implorou pela paz, mas suas palavras não chegaram ao Brasil ou o grupo de bem preferiu não ouvir ou palavra nenhuma foi realmente dita.
Uma grande tempestade caiu sobre o solo que implora para também ser céu. Os ratos foram obrigados a saírem do esgoto, os porcos debatem-se na lama para não morrerem afogados e a baratas, astutas como sempre, sobrevivem à radiação expelida pelas bocas e introduzidas anus adentro.
O confronto maior se sucede. Duas grandes fileiras posicionadas, uma oposta a outra, como na grande e ilustre idade média. Uma batalha épica surge e gritos em meio à correria rugem e se propagam no espaço. Muitos morrerão, muitos se escondem, poucos viverão. Pedaços de concreto, ferro, facas, facões, foiças, revólveres em mãos. Correm, lado A e lado B como dois trens que querem chegar às direções opostas no mesmo trilho.
Uma lágrima escorre pelo rosto de Deus e uma borboleta, perdida, pousa-se sobre um grande pedaço cinza de concreto, está cansada à procura de uma flor.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 02/06/2011
Código do Texto: T3010424


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Um comentário:

Elvira Carvalho disse...

Intenso e dramático. Gostei.
Um abraço e uma boa semana