13 junho 2011

Gira o Sol

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GIRA O SOL

A extensão do campo fugia do alcance da visão, ainda mais com uma leve inclinação do terreno que, às vezes, em dias de céu afofado por várias nuvens, dava a sensação de que o caminho o levaria para tocar, com as mãos, os delicados e enormes pedaços de espuma de travesseiro na imensidão azul.
Das janelas da casa, a visão era poeticamente leve e o verde musgo dos grossos caules, o amarelo vivo das pétalas e a mistura do verde escuro ao verde acinzentado das sementes no centro dos girassóis pintavam na alma um quadro verde e amarelo e pacificava os fantasmas e irradiava a áurea.
Marília estava na cozinha lavando a louça do almoço e tinha a sua frente uma janela que dava para um pequeno pedaço quadrado verde do campo. Jorge, seu esposo, regressava ao campo para terminar seus afazeres com a plantação. Gilberto, quinze anos, estava deitado de barriga para cima olhando para o teto e via no forro de madeira, imagens que o enchiam de alegria e saudades. Seu quarto era pequeno, mas confortável. Sua cama ficava no lado direito e a sua cabeceira abria-se, com braços médios, uma janela de madeira e vidro. Três paredes também eram forradas com tiras finas de madeiras envernizadas dando um ar campestre e caipira. A outra parede, do lado oposto da sua cama, fora pintada de um branco levemente amarelado e sobre ela, havia alguns pôsteres grudados e mais reservadamente para a esquerda da parede, encontrava-se um pequeno mural com fotos de pessoas quem Gilberto julgava ser essências na sua vida, entre elas, Geraldo.
O ônibus para aquelas bandas ia e vinha apenas por misericórdia e depois de perdido, o jeito era pegar carona com algum agricultor vizinho ou ir a pé. Deste modo levava-se em torno de uma hora para chegar à casa do plantador de girassol.
Por mistério da magia que rodeiam os seres que andam sobre a Terra, Gilberto levantou-se e foi até a janela procurar qualquer coisa que ele mesmo nem imaginava ser. Avistou Geraldo vindo pela estrada de barro. Pisava sobre a leve grama do meio que os pneus dos automóveis não amassaram. Tinha dezessete anos, vestia short jeans, uma camiseta branca com duas tiras vermelhas dos dois lados, carregava uma mochila preta nas costas e ao perceber que já fora visto, um sorriso largo e natural brotou em seu rosto e acenou com o braço direito em direção à janela.
Gilberto sentiu um frio na barriga e uma felicidade que não podia controlar. Deu impulso com os braços sobre o parapeito e correu em direção à escada.
A mãe de Gilberto, Marília, havia ido para a parte dos fundos da casa olhar o varal onde secavam sob um céu azul, um sol irradiante e aos ventos, algumas roupas de cama.
Faltavam poucos metros para o pé da porta e ao ver que não teria chance de chegar para então dar saudações, abriu os braços e recebeu Gilberto que o presenteou com um abraço e um beijo na bochecha e o presente foi retribuído. Um não acreditava que o outro havia chegado e o outro não acreditava que realmente chegou.
_ A plantação está linda?!
_ Não é? E os girassóis vão crescer mais um pouco ainda... Mas que bom que chegou.
_ Estava com saudade.
_ Nem me fala, não sabia mais o que fazer. Na verdade não tem nada pra fazer sem você aqui.
Geraldo deixou cair sua mochila próxima à porta e foi, acompanhado, caminhar um pouco aos redores da propriedade de Seu Jorge.
Não muito próximo e nem muito distante da casa de Gilberto, havia outra casa que não pertencia aos seus pais e que na maioria do tempo esteve disponível para venda. Na verdade, Gilberto, seu pai e sua mãe não sabiam muito sobre os novos proprietários e sabiam apenas que os vizinhos pretendiam plantar milho no grande pedaço de terra que ficava para as costas daquela outra casa.
Dona Marília e Seu Jorge nunca se perguntaram quem ou como seriam de fato os seus novos vizinhos porque já tinham muito trabalho com a plantação e a criação dos filhos. De fato, a vizinhança parecia ser formada de uma família normal como qualquer outra – um casal e três filhos: uma menina caçula, um rapaz de dezenove anos, outro de dezessete e dois sobrinhos de vinte anos e vinte e dois que vieram passar alguns dias no interior.
Depois de recolher algumas peças de roupas e dar uma arrumada no varal, Marília encontrou a mochila preta de Geraldo no pé da porta. Olhou para o horizonte como quem procura ainda vestígios ou sombras de alguém que passou ali recentemente. Pegou a mochila após dar um sorriso e balançar a cabeça. “Que pesada”, pensou a dona de casa e após entrar, colocou a mochila sobre o sofá vermelho vinho que ficava de costas para a entrada.
Não andaram muito quando os dois garotos passaram em frente à pequena oficina de Jorge. Como quem recebe um presente e realmente não esperava recebê-lo, Seu Jorge deixou florescer um enorme sorriso, limpou a mão em um pedaço de pano sujo de graxa e foi em direção a Geraldo.
Sua mão direita estendia-se a frente de seu corpo e com um forte aperto de mão, Geraldo foi puxado para bem perto do peito de Jorge que o beijou na bochecha dando a benção pedida pelo ilustre presente.
_ Como estão as coisas no colégio?
_ Estão indo. Não via hora de férias.
_ Já viu a sua mãe?
_ Não, ainda não. Eu acabei de chegar e nem entrei em casa.
_ Deveria ter dado um beijo nela antes de ver o que mudou por aqui, não acha? E o que achou da plantação?
_ Está linda, e daqui, o visual é muito mais agradável.
Geraldo era um belo rapaz, assim como seu irmão Gilberto também era. Talvez por ser o mais velho, estudava em um colégio experimental na cidade vizinha e chegava a ficar longe de casa cerca de seis meses. Quem sofria ou parecia sofrer mais com isso era seu irmão a quem sempre foi muito apegado. Não muito comum e na verdade nem muito raro encontrar irmãos tão amigos e tão próximos da forma que eram os dois.
Gilberto e Geraldo andavam lado a lado sempre com o rosto pintado de um sorriso largo e pareciam sempre dar algumas gargalhadas. Como quase sempre, o irmão mais velho é um pouco mais alto e no caso de Geraldo não era diferente. Além de ser alguns poucos centímetros maior era também um pouco mais encorpado.
Durante a caminhada, Geraldo por vezes, abraçava o irmão de lado colocando seu braço esquerdo sobre os ombros do irmão e riam de alguma coisa engraçada que confessavam um para o outro. Contudo, quando se está feliz é preciso tomar muito cuidado, não cuidado porque a felicidade pode ter uma pausa ou fim, mas porque pessoas que carecem grandemente de felicidade se alimentam da infelicidade do outro e estão sempre às espreitas.
Da janela mais alta da outra casa, observavam a felicidade de dois irmãos que não se viam durante meses. O sol reluzia bem no centro do céu completamente descoberto. Os quatro rapazes cochichavam e levantavam características ofensivas na dupla que pareciam dois intrusos caminhando em meio aos girassóis. Na verdade, as ofensas e o expiatório já haviam começado quando Geraldo, sozinho, caminhava em direção à casa de seus pais.
22, 20, 19 e 17 correram escada abaixo, riam e tinham nos rostos aquela expressão de quando alguém está prestes a fazer algo errado sabendo que é errado e sentindo algum orgulho por isso. Os adultos daquela casa não deram muita importância para os passos apressados e os risos maliciosos. Os três correram em direção aos grossamente graciosos girassóis e por debaixo de uma cerca de arames farpados, adentraram ao terreno vizinho e caminharam agachados com um pouco de dificuldade. Se caminhassem eretos, seriam vistos já que os girassóis batiam na altura de seus umbigos assim como também no dos irmãos.
Gilberto apreciava as flores daquele campo de longe, porque a natureza tem o dom de exalar poesias cujas suas metáforas, catacreses e paradoxos são perfeitamente verdadeiros: ao longe os girassóis são como flores no tom verde e amarelo, mas quando vistos de muito perto, percebe-se que são agressivos, grossos e ásperos. Geraldo também sentia algum incomodo em estar tão próximo da intimidade daquelas flores.
Seu Jorge retornou para casa e comentou à esposa ter visto o filho mais velho. Juntos foram para os fundos da casa, ajudarem-se em qualquer coisa.
Os irmãos assustaram-se quando foram surpreendidos pelo quarteto. Estes pareciam animais na savana que esperam o melhor momento para o bote. Carregavam no rosto um sorriso quadrado, olhares desciam e subiam medindo as curvas dos corpos de suas presas.
_ Quem são vocês? – Gilberto perguntou com a voz meio tremula e seu irmão percebeu que algo estava errado.
_ Por que, estamos atrapalhando alguma coisa? – 22 perguntou ironicamente.
Não demorou para que 20, rondando a dupla, passasse a mão em Gilberto. Talvez neste por aparentar ser mesmo o mais novo e mais vulnerável.
_ Quem é a putinha na história em? Será que é você? – 17 apontou para Gilberto.
Geraldo se apossou de raiva e tentou partir pra cima daquele que duvidava de seu irmão. Como alguns animais, alguns homens também não são capazes de fazer certas coisas sozinhos. Houve socos, porradas, dois beiços cortados, mas quando se está em menor número, a batalha parece ser invencível.
Geraldo foi agarrado. Preso. Gritava e tentava com as pernas chutar qualquer um que estivesse próximo.
_ Calminha potranca. Fica arisca não doçura. Sente o chicote do vaqueiro sente.
Ao mesmo tempo, os dois mais velhos do grupo também agarravam Gilberto que foi jogado ao chão de barriga para baixo. Gritava, mas sua voz estava tão rouca que era impossível ouvi-lo direito. Seu irmão debatia-se o máximo que podia: em vão. Gilberto tinha ainda uma pele de bebe, não havia qualquer cicatriz de cravo ou acne.
Um dos rapazes subiu em suas pernas e rasgou seu short e logo depois sua roupa íntima.
_ Olha que bundinha branca.
Geraldo gritava.
_ Nossa olha só esse cuzinho com poucos pelos. Acho que você deve ser a putinha dele não é.
Gilberto chorava com o lado esquerdo do rosto em contado com o solo. Seus olhos miravam os olhos do irmão. Apenas Deus poderia dizer o que eles diziam um para o outro.
O filho do vizinho mais velho, 19. Estava excitado e mostrava suas vergonhas tentando deixá-las o mais próximo possível do corpo de Geraldo enquanto seu irmão, atônito no chão, parecia não saber o que fazer. O primo mais velho, 22, quem estava agora sobre Gilberto, tinha a sua frente seu irmão, 20, que se masturbava.
Gilberto gritou quando foi invadido. Uma dor fria e cortante tomou conta de seu corpo, sua vista embaçou e sua cabeça parecia explodir. Ele escutava os gritos desesperados do irmão vindo longe enquanto seu rosto era prensado contra o chão e suas entranhas eram corrompidas. Suas forças pareciam ter fugido do corpo como quem tivesse fugido da cena. Um cheiro aquecido de fezes chegou até a sua narina.
22 levantou-se sujo de sangue misturado a materiais fecais. Seu irmão, após conquistado os segundos de prazer, passou pelo rosto delicado de Gilberto sua mão suja:
_ Olha aqui um creminho para sua pela branquinha e limpa. Sua bicha do caralho.
Geraldo chorava copiosamente. Gilberto foi virado de barriga para o céu. Seu rosto agora contemplava tontamente o azul do céu. Seu corpo padecia em dor e o sol brilhante sem dó, ofuscava qualquer sinal de pensamento ou esperança. Desejou que aqueles girassóis fossem capazes de girar o sol para outro lado de modo que pudesse ter pelo menos um sinal de linha de pensamento. Sua barriga e virilha estavam arranhadas devido ao atrito com o duro, cruel e verdadeiro chão de terra.
Geraldo levou dois fortes socos no estômago. Ouviu ofensas que a ele e a ninguém cabem ouvir. Teve suas calças arriadas e sentiu corpos estranhos em contato com o seu. Levou murros no rosto e teve três dentes quebrados. Sua boca sangrava e a imagem de seus pais inundava suas lembranças – não sabia se rezava a Deus pedindo ajuda ou se talvez, depois, se escondesse.
_ Viadinhos como vocês, merecem isso. Está vendo o que fiz com aquele rabinho onde você metia essa sua rolinha de AIDS? Está arrombado! – Após dizer isto, 22 puxou-o por seus órgãos genitais fazendo Geraldo gritar mudamente de dor.
Gilberto virou-se por conta própria de barriga para baixo e sentiu algo escorrer por sua nádega. Tentou rastejar: seu pensamento era buscar ajuda. O vizinho caçula, 17, sentiu-se enojado ao ver a poça de sangue deixada por Gilberto.
Geraldo foi atirado ao chão e segurado da mesma forma que seu irmão fora momentos antes. Dessa vez ninguém fez algo com a própria pele. Um girassol foi quebrado com dificuldade e seu caule serviu para que Geraldo também fosse invadido. Talvez por pensarem que ele tenha sofrido menos, ou por pensarem que ele, por ser supostamente o homem da relação, teria mais forças para buscar ajuda, quebraram uma de suas pernas.
Sem mais e nem menos, o quarteto voltou correndo pelo caminho de onde tinham vindo. Corriam agachados. Da janela do quarto onde foi feito de guarita, o binóculo continuava no parapeito da janela o que atiçou a curiosidade da mãe de um dos rapazes. Parada, calada, assustada, arrepiada e surpresa, ela presenciou o que seus filhos e sobrinhos tinham feito. Sua pele estava tão vermelha e seus olhos lacrimejavam.
Minutos depois, estavam de volta em casa. Ela os esperava no quarto, em pé, de frente para a porta. Gritou raivosamente quando os viram entrar no cômodo. Perguntava aos berros o porquê daquilo e ao mesmo tempo batia em seus filhos com as duas mãos estendidas. Parou. Respirou e disse que os sobrinhos iriam embora naquele exato momento. Assustadoramente seu tom de voz mudou, era, agora, a voz de quem estava perturbada como quem foi pego fazendo algo errado e precisa achar um modo de negar ou dificultar as possíveis culpas.
Enquanto isso, em meio aos girassóis, Geraldo estava deitado, cansado, respirando com dificuldade e seu irmão rastejou-se para próximo dele, esticou o braço e pouso sua mão direita suja sobre a mão esquerda do irmão. Gilberto chorava e Geraldo em contado com a mão do irmão também começou a lavar a alma. Gilberto, muito rouco, pediu desculpas.
_ Desculpas pelo o quê? – Perguntou de volta tentando engolir o choro para pronunciar as palavras.
Em casa, Dona Marília já dera falta dos filhos e Seu Jorge caminhava pela plantação procurando-os e imaginava que os garotos haviam cochilado sob as singelas sombras dos girassóis.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 13/06/2011
Código do texto: T3033064


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02 junho 2011

O Mundo Do Meio

autor desconhecido - imagem google


O MUNDO DO MEIO

O caos apossou-se da cidade e dos poucos campos que restaram. O mal e a bondade reinam nas casas e na mente das pessoas cujas roupas sujas e rasgadas demonstram a luta que se sucede dias após dias. Pessoas essas que correm a todo instante por entre as ruínas: casas de Deus, casas do Satanás e todo o resto que possa agora estar no meio do caminho dessa grande selva concretizada.
Fumaças procuram desesperadamente os céus para que possam fugir de toda a contradição atômica exalada pelas bocas santificadas de civis de bem e pelas bocas cujas palavras soam como insetos que jogam pela cidade o que parece ser um forte cheiro de fezes e urina. Aquilo o que o homem criou para ser belo e tempos depois é destruído pela vontade do homem o engole em um paradoxo poema infernal terrestre.
Deus virou-se de costas para a Terra e o Satanás pediu-o refugio. Juntos escutam apenas os insultos trocados pelos guerrilheiros e os ossos trincando como simples pedaços de bambu. Talvez, na história da humanidade não houvesse ainda batalha tão sangrenta e cruel igual a esta que fora negligenciada e alimentada por dizeres que nunca disseram realmente nada. Crianças demoníacas, cujas faces angelicais fazem nutrir um carinho e uma delicada admiração, sabem usar exatamente a ignorância de seus servos em nome daqueles quem os ofereceram o silêncio. A obscuridade passou a fazer parte dos escritos – ninguém entende mais nada ou cada qual entende da forma que sente.
Flagelados e flageladas gritam com toda a força. Violentados e violentadas tentam violentar os anjos. Injustiçados e injustiçadas lutam pela justiça. Orgias de palavras ocorrem a cada esquina, ejaculações masculinas e femininas fazem subir até as narinas um leve cheiro azedado pelas épicas opressões bentas.
O sol, a lua e as estrelas escondem-se por detrás de uma fina camada de nuvem cinzenta proveniente do caos e das destruições causadas pelos guerreiros. Heróis que estupram suas imagens maternas. Vilões que salvam os filhos da "besta". Pais que cortam a cabeça de suas crias. Há apenas dois lados, os de bem e os "demoníacos". Mas esclareço afirmativamente que não se trata de uma batalha maniqueísta. Nem Deus nem o Diabo estão presentes.
Alguns prédios pequenos foram derrubados de modo que pedaços de concreto, tijolos e muita poeira tomam conta de muitas ruas. A todo instante pessoas passam correndo aos gritos, algumas com pedaços de madeiras ou ferros, outras com grandes pedras e em meio à correria algumas atropelam corpos que se decompõem em céu aberto. Pediram ajuda as autoridades, mas os militares também se dividiram. A mídia tentou transmitir os fatos, mas ela também se acabou dividindo em dois.
O que parece ser o lugar mais seguro até agora, é o mesmo lugar onde estão escondidos muitos dos lideres dos civis de bem que instigaram e ainda ressaltam a importância dos atos que estão sendo praticados.
Tudo indica que o lado dos de bem é o maior e o mais forte, mas quando estamos em guerra tudo é possível e o auxílio quase sempre acaba aparecendo para dar o ar da admiração.
Ontem, foi noticiada uma nova praga que assola o grupo aparentemente maior. Ninguém ainda sabe dizer ao certo do que se trata, mas tudo indica que interfere nas células cancerígenas. Todos estão cada vez mais coléricos. Parecem animais famintos que ficam a espreita para emboscar alguém do grupo aparentemente menor. A caça é feita de forma assustadoramente cruel. São poucas as vezes que armamento de fogo é usado. Pedras, pedaços de paus, ferros são os preferidos. Batem, chutam principalmente na região da cabeça. É notável o semblante de satisfação quando percebem que os ossos do crânio já se racharam e que a presa nada mais tem a fazer.
Não é devido à guerra que essas caças acontecem. Elas na verdade já vem acontecendo há algum tempo e é justamente a repetição dos fatos que o cansaço chegou ao outro lado. Aquele que mexer com o filhote, seja ele de qual espécie for, a mãe uma fera será.
Profecias mudas gritam aos ventos as maldições da evolução humana. Evoluíram e hoje não passam de porcos, ratos e baratas. Fileiras de carros destruídos posicionados para que talvez possam servir de proteção.
Hospitais tornaram-se centros de extermínio. Alimentos são para poucos e lavagem é dada aos dois grupos em guerra. As “prisões” abriram suas portas, mas apenas com passagem de saída – ou talvez seja de entrada? A solução foi fazer limpeza geral. O lixo é queimado para que talvez seja a forma mais fácil de livrar-se do fardo.
É possível sentir em alguns cantos dessa poética e adorável selva de concreto o cheiro de carne estorricando nas grandes queimadas.
Gritos!!! Um jovem rapaz tenta fugir de um grupo, mas infelizmente tropeçou em uma perna cujo corpo estava esmagado por uma caçamba de lixo cheia de crianças nuas e mortas. O grupo, com cerca de quinze rapazes, chuta-o e, com pedaços de madeiras com pregos grudados em suas extremidades, abrem a cabeça da caça fragilizada. Um forte cheiro aquecido singular do sangue já não mais embrulha os estômagos.
Grandes grupos tentam chegar ao palácio onde se escondem a elite amedrontada. Há aqueles que querem as cabeças e há aqueles que querem as cabeças daqueles que querem as cabeças de seus lideres.
O esgoto tornou-se abrigo e a merda alimento. Direitos foram atribuídos e grupos foram idolatrados. O papa, de sua sacada, implorou pela paz, mas suas palavras não chegaram ao Brasil ou o grupo de bem preferiu não ouvir ou palavra nenhuma foi realmente dita.
Uma grande tempestade caiu sobre o solo que implora para também ser céu. Os ratos foram obrigados a saírem do esgoto, os porcos debatem-se na lama para não morrerem afogados e a baratas, astutas como sempre, sobrevivem à radiação expelida pelas bocas e introduzidas anus adentro.
O confronto maior se sucede. Duas grandes fileiras posicionadas, uma oposta a outra, como na grande e ilustre idade média. Uma batalha épica surge e gritos em meio à correria rugem e se propagam no espaço. Muitos morrerão, muitos se escondem, poucos viverão. Pedaços de concreto, ferro, facas, facões, foiças, revólveres em mãos. Correm, lado A e lado B como dois trens que querem chegar às direções opostas no mesmo trilho.
Uma lágrima escorre pelo rosto de Deus e uma borboleta, perdida, pousa-se sobre um grande pedaço cinza de concreto, está cansada à procura de uma flor.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 02/06/2011
Código do Texto: T3010424


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