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GIRA O SOL
A extensão do campo fugia do alcance da visão, ainda mais com uma leve
inclinação do terreno que, às vezes, em dias de céu afofado por várias nuvens,
dava a sensação de que o caminho o levaria para tocar, com as mãos, os
delicados e enormes pedaços de espuma de travesseiro na imensidão azul.
Das janelas da casa, a visão era poeticamente leve e
o verde musgo dos grossos caules, o amarelo vivo das pétalas e a mistura do verde
escuro ao verde acinzentado das sementes no centro dos girassóis pintavam na
alma um quadro verde e amarelo e pacificava os fantasmas e irradiava a áurea.
Marília estava na cozinha lavando a louça do almoço e
tinha a sua frente uma janela que dava para um pequeno pedaço quadrado verde do
campo. Jorge, seu esposo, regressava ao campo para terminar seus afazeres com a
plantação. Gilberto, quinze anos, estava deitado de barriga para cima olhando
para o teto e via no forro de madeira, imagens que o enchiam de alegria e
saudades. Seu quarto era pequeno, mas confortável. Sua cama ficava no lado
direito e a sua cabeceira abria-se, com braços médios, uma janela de madeira e
vidro. Três paredes também eram forradas com tiras finas de madeiras
envernizadas dando um ar campestre e caipira. A outra parede, do lado oposto da
sua cama, fora pintada de um branco levemente amarelado e sobre ela, havia
alguns pôsteres grudados e mais reservadamente para a esquerda da parede,
encontrava-se um pequeno mural com fotos de pessoas quem Gilberto julgava ser
essências na sua vida, entre elas, Geraldo.
O ônibus para aquelas bandas ia e vinha apenas por
misericórdia e depois de perdido, o jeito era pegar carona com algum agricultor
vizinho ou ir a pé. Deste modo levava-se em torno de uma hora para chegar à
casa do plantador de girassol.
Por mistério da magia que rodeiam os seres que andam
sobre a Terra, Gilberto levantou-se e foi até a janela procurar qualquer coisa
que ele mesmo nem imaginava ser. Avistou Geraldo vindo pela estrada de barro.
Pisava sobre a leve grama do meio que os pneus dos automóveis não amassaram.
Tinha dezessete anos, vestia short jeans, uma camiseta branca com duas tiras
vermelhas dos dois lados, carregava uma mochila preta nas costas e ao perceber
que já fora visto, um sorriso largo e natural brotou em seu rosto e acenou com
o braço direito em direção à janela.
Gilberto sentiu um frio na barriga e uma felicidade
que não podia controlar. Deu impulso com os braços sobre o parapeito e correu
em direção à escada.
A mãe de Gilberto, Marília, havia ido para a parte
dos fundos da casa olhar o varal onde secavam sob um céu azul, um sol
irradiante e aos ventos, algumas roupas de cama.
Faltavam poucos metros para o pé da porta e ao ver
que não teria chance de chegar para então dar saudações, abriu os braços e
recebeu Gilberto que o presenteou com um abraço e um beijo na bochecha e o
presente foi retribuído. Um não acreditava que o outro havia chegado e o outro
não acreditava que realmente chegou.
_ A plantação está linda?!
_ Não é? E os girassóis vão crescer mais um pouco
ainda... Mas que bom que chegou.
_ Estava com saudade.
_ Nem me fala, não sabia mais o que fazer. Na verdade
não tem nada pra fazer sem você aqui.
Geraldo deixou cair sua mochila próxima à porta e
foi, acompanhado, caminhar um pouco aos redores da propriedade de Seu Jorge.
Não muito próximo e nem muito distante da casa de
Gilberto, havia outra casa que não pertencia aos seus pais e que na maioria do
tempo esteve disponível para venda. Na verdade, Gilberto, seu pai e sua mãe não
sabiam muito sobre os novos proprietários e sabiam apenas que os vizinhos
pretendiam plantar milho no grande pedaço de terra que ficava para as costas
daquela outra casa.
Dona Marília e Seu Jorge nunca se perguntaram quem ou
como seriam de fato os seus novos vizinhos porque já tinham muito trabalho com
a plantação e a criação dos filhos. De fato, a vizinhança parecia ser formada
de uma família normal como qualquer outra – um casal e três filhos: uma menina
caçula, um rapaz de dezenove anos, outro de dezessete e dois sobrinhos de vinte
anos e vinte e dois que vieram passar alguns dias no interior.
Depois de recolher algumas peças de roupas e dar uma
arrumada no varal, Marília encontrou a mochila preta de Geraldo no pé da porta.
Olhou para o horizonte como quem procura ainda vestígios ou sombras de alguém
que passou ali recentemente. Pegou a mochila após dar um sorriso e balançar a
cabeça. “Que pesada”, pensou a dona de casa e após entrar, colocou a mochila
sobre o sofá vermelho vinho que ficava de costas para a entrada.
Não andaram muito quando os dois garotos passaram em
frente à pequena oficina de Jorge. Como quem recebe um presente e realmente não
esperava recebê-lo, Seu Jorge deixou florescer um enorme sorriso, limpou a mão
em um pedaço de pano sujo de graxa e foi em direção a Geraldo.
Sua mão direita estendia-se a frente de seu corpo e
com um forte aperto de mão, Geraldo foi puxado para bem perto do peito de Jorge
que o beijou na bochecha dando a benção pedida pelo ilustre presente.
_ Como estão as coisas no colégio?
_ Estão indo. Não via hora de férias.
_ Já viu a sua mãe?
_ Não, ainda não. Eu acabei de chegar e nem entrei em
casa.
_ Deveria ter dado um beijo nela antes de ver o que
mudou por aqui, não acha? E o que achou da plantação?
_ Está linda, e daqui, o visual é muito mais
agradável.
Geraldo era um belo rapaz, assim como seu irmão
Gilberto também era. Talvez por ser o mais velho, estudava em um colégio
experimental na cidade vizinha e chegava a ficar longe de casa cerca de seis meses.
Quem sofria ou parecia sofrer mais com isso era seu irmão a quem sempre foi
muito apegado. Não muito comum e na verdade nem muito raro encontrar irmãos tão
amigos e tão próximos da forma que eram os dois.
Gilberto e Geraldo andavam lado a lado sempre com o
rosto pintado de um sorriso largo e pareciam sempre dar algumas gargalhadas.
Como quase sempre, o irmão mais velho é um pouco mais alto e no caso de Geraldo
não era diferente. Além de ser alguns poucos centímetros maior era também um
pouco mais encorpado.
Durante a caminhada, Geraldo por vezes, abraçava o
irmão de lado colocando seu braço esquerdo sobre os ombros do irmão e riam de
alguma coisa engraçada que confessavam um para o outro. Contudo, quando se está
feliz é preciso tomar muito cuidado, não cuidado porque a felicidade pode ter
uma pausa ou fim, mas porque pessoas que carecem grandemente de felicidade se
alimentam da infelicidade do outro e estão sempre às espreitas.
Da janela mais alta da outra casa, observavam a
felicidade de dois irmãos que não se viam durante meses. O sol reluzia bem no
centro do céu completamente descoberto. Os quatro rapazes cochichavam e
levantavam características ofensivas na dupla que pareciam dois intrusos
caminhando em meio aos girassóis. Na verdade, as ofensas e o expiatório já
haviam começado quando Geraldo, sozinho, caminhava em direção à casa de seus
pais.
22, 20, 19 e 17 correram escada abaixo, riam e tinham
nos rostos aquela expressão de quando alguém está prestes a fazer algo errado
sabendo que é errado e sentindo algum orgulho por isso. Os adultos daquela casa
não deram muita importância para os passos apressados e os risos maliciosos. Os
três correram em direção aos grossamente graciosos girassóis e por debaixo de
uma cerca de arames farpados, adentraram ao terreno vizinho e caminharam
agachados com um pouco de dificuldade. Se caminhassem eretos, seriam vistos já
que os girassóis batiam na altura de seus umbigos assim como também no dos
irmãos.
Gilberto apreciava as flores daquele campo de longe,
porque a natureza tem o dom de exalar poesias cujas suas metáforas, catacreses
e paradoxos são perfeitamente verdadeiros: ao longe os girassóis são como
flores no tom verde e amarelo, mas quando vistos de muito perto, percebe-se que
são agressivos, grossos e ásperos. Geraldo também sentia algum incomodo em
estar tão próximo da intimidade daquelas flores.
Seu Jorge retornou para casa e comentou à esposa ter
visto o filho mais velho. Juntos foram para os fundos da casa, ajudarem-se em
qualquer coisa.
Os irmãos assustaram-se quando foram surpreendidos
pelo quarteto. Estes pareciam animais na savana que esperam o melhor momento
para o bote. Carregavam no rosto um sorriso quadrado, olhares desciam e subiam
medindo as curvas dos corpos de suas presas.
_ Quem são vocês? – Gilberto perguntou com a voz meio
tremula e seu irmão percebeu que algo estava errado.
_ Por que, estamos atrapalhando alguma coisa? – 22
perguntou ironicamente.
Não demorou para que 20, rondando a dupla, passasse a
mão em Gilberto.
Talvez neste por aparentar ser mesmo o mais novo e mais
vulnerável.
_ Quem é a putinha na história em? Será que é você? –
17 apontou para Gilberto.
Geraldo se apossou de raiva e tentou partir pra cima
daquele que duvidava de seu irmão. Como alguns animais, alguns homens também
não são capazes de fazer certas coisas sozinhos. Houve socos, porradas, dois
beiços cortados, mas quando se está em menor número, a batalha parece ser
invencível.
Geraldo foi agarrado. Preso. Gritava e tentava com as
pernas chutar qualquer um que estivesse próximo.
_ Calminha potranca. Fica arisca não doçura. Sente o
chicote do vaqueiro sente.
Ao mesmo tempo, os dois mais velhos do grupo também
agarravam Gilberto que foi jogado ao chão de barriga para baixo. Gritava, mas
sua voz estava tão rouca que era impossível ouvi-lo direito. Seu irmão
debatia-se o máximo que podia: em vão. Gilberto tinha ainda uma pele de bebe, não
havia qualquer cicatriz de cravo ou acne.
Um dos rapazes subiu em suas pernas e rasgou seu
short e logo depois sua roupa íntima.
_ Olha que bundinha branca.
Geraldo gritava.
_ Nossa olha só esse cuzinho com poucos pelos. Acho
que você deve ser a putinha dele não é.
Gilberto chorava com o lado esquerdo do rosto em
contado com o solo. Seus olhos miravam os olhos do irmão. Apenas Deus poderia
dizer o que eles diziam um para o outro.
O filho do vizinho mais velho, 19. Estava excitado e
mostrava suas vergonhas tentando deixá-las o mais próximo possível do corpo de
Geraldo enquanto seu irmão, atônito no chão, parecia não saber o que fazer. O
primo mais velho, 22, quem estava agora sobre Gilberto, tinha a sua frente seu
irmão, 20, que se masturbava.
Gilberto gritou quando foi invadido. Uma dor fria e
cortante tomou conta de seu corpo, sua vista embaçou e sua cabeça parecia
explodir. Ele escutava os gritos desesperados do irmão vindo longe enquanto seu
rosto era prensado contra o chão e suas entranhas eram corrompidas. Suas forças
pareciam ter fugido do corpo como quem tivesse fugido da cena. Um cheiro
aquecido de fezes chegou até a sua narina.
22 levantou-se sujo de sangue misturado a materiais
fecais. Seu irmão, após conquistado os segundos de prazer, passou pelo rosto
delicado de Gilberto sua mão suja:
_ Olha aqui um creminho para sua pela branquinha e
limpa. Sua bicha do caralho.
Geraldo chorava copiosamente. Gilberto foi virado de
barriga para o céu. Seu rosto agora contemplava tontamente o azul do céu. Seu
corpo padecia em dor e o sol brilhante sem dó, ofuscava qualquer sinal de
pensamento ou esperança. Desejou que aqueles girassóis fossem capazes de girar
o sol para outro lado de modo que pudesse ter pelo menos um sinal de linha de
pensamento. Sua barriga e virilha estavam arranhadas devido ao atrito com o
duro, cruel e verdadeiro chão de terra.
Geraldo levou dois fortes socos no estômago. Ouviu
ofensas que a ele e a ninguém cabem ouvir. Teve suas calças arriadas e sentiu
corpos estranhos em contato com o seu. Levou murros no rosto e teve três dentes
quebrados. Sua boca sangrava e a imagem de seus pais inundava suas lembranças –
não sabia se rezava a Deus pedindo ajuda ou se talvez, depois, se escondesse.
_ Viadinhos como vocês, merecem isso. Está vendo o
que fiz com aquele rabinho onde você metia essa sua rolinha de AIDS? Está
arrombado! – Após dizer isto, 22 puxou-o por seus órgãos genitais fazendo Geraldo
gritar mudamente de dor.
Gilberto virou-se por conta própria de barriga para
baixo e sentiu algo escorrer por sua nádega. Tentou rastejar: seu pensamento
era buscar ajuda. O vizinho caçula, 17, sentiu-se enojado ao ver a poça de
sangue deixada por Gilberto.
Geraldo foi atirado ao chão e segurado da mesma forma
que seu irmão fora momentos antes. Dessa vez ninguém fez algo com a própria
pele. Um girassol foi quebrado com dificuldade e seu caule serviu para que
Geraldo também fosse invadido. Talvez por pensarem que ele tenha sofrido menos,
ou por pensarem que ele, por ser supostamente o homem da relação, teria mais
forças para buscar ajuda, quebraram uma de suas pernas.
Sem mais e nem menos, o quarteto voltou correndo pelo
caminho de onde tinham vindo. Corriam agachados. Da janela do quarto onde foi
feito de guarita, o binóculo continuava no parapeito da janela o que atiçou a
curiosidade da mãe de um dos rapazes. Parada, calada, assustada, arrepiada e
surpresa, ela presenciou o que seus filhos e sobrinhos tinham feito. Sua pele
estava tão vermelha e seus olhos lacrimejavam.
Minutos depois, estavam de volta em casa. Ela os esperava no
quarto, em pé, de frente para a porta. Gritou raivosamente quando os viram
entrar no cômodo. Perguntava aos berros o porquê daquilo e ao mesmo tempo batia
em seus filhos com as duas mãos estendidas. Parou. Respirou e disse que os
sobrinhos iriam embora naquele exato momento. Assustadoramente seu tom de voz
mudou, era, agora, a voz de quem estava perturbada como quem foi pego fazendo
algo errado e precisa achar um modo de negar ou dificultar as possíveis culpas.
Enquanto isso, em meio aos girassóis, Geraldo estava
deitado, cansado, respirando com dificuldade e seu irmão rastejou-se para
próximo dele, esticou o braço e pouso sua mão direita suja sobre a mão esquerda
do irmão. Gilberto chorava e Geraldo em contado com a mão do irmão também
começou a lavar a alma. Gilberto, muito rouco, pediu desculpas.
_ Desculpas pelo o quê? – Perguntou de volta tentando
engolir o choro para pronunciar as palavras.
Em casa, Dona Marília já dera falta dos filhos e Seu
Jorge caminhava pela plantação procurando-os e imaginava que os garotos haviam
cochilado sob as singelas sombras dos girassóis.
Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 13/06/2011
Código do texto: T3033064
Publicado no Recanto das Letras em 13/06/2011
Código do texto: T3033064
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