Tarde de domingo na ilha de grande - Jatte Seurat 1884 - 1886 |
BATERIAS E CARREGADORES
Era início de tarde de domingo. O
sol ardia após o almoço e parecia que o dia repousava-se sobre o asfalto
quente, sobre as calçadas e sobre os campinhos de futebol do bairro. O domingo,
após o almoço, parecia deitar-se sobre o quintal onde batia, parcialmente, a
luz do sol.
Nas ruas, apenas o tremular
quente e abafado do concreto. Carros recém lavados e estacionados dentro de
garagens ou em frente a três ou quatro portões, roupas e lençóis brancos
balançavam em alguns varais. Cachorros de rua repousavam suas barrigas no chão
fresco de algumas sombras feitas por muros.
O domingo nada mais é do que a
espera pelo fim do repouso, a espera pelo início do sacrifício. Naquele dia,
ela esperava por mais. Esperava por muito mais.
Renata esperava pelo namorado que,
naquele final de semana, não conseguiu folga. Ele sairia por volta das quatro
da tarde. Ela esperava pelo o início daquela espera pelo fim do dia junto ao
ser que, de modo fascinante, é capaz de tornar essa espera tão leve e cheia de
boas aspirações. Seria ele quem recarrega as baterias dela? Será que ela também
recarrega as dele? Somos mais baterias ou carregador?
Não havia muito que fazer. Ela
tentou ler alguma coisa. Pegou um livro qualquer na pequena prateleira em seu
quarto e olhou para capa. Era um livro de contos de Lispector. Abriu no sumário
e escolheu um conto pelo título. Começou a lê-lo, mas logo colocou o livro onde
estava: ela não queria coisas tristes. Preferiu ler as primeiras páginas de um
romance de Steven King, mas aquela história de cidades fantasmas e pessoas que,
misteriosamente, desapareciam mexia com sua imaginação e ela não queria ler
algo muito longo. Desistiu do livro e com o dedo indicador, passou pelas bordas
de cerca de dez livros como quem procura algo específico e como quem não saber
possuir todos eles. Por fim, desistiu de ler qualquer coisa e sentou-se em sua
cama.
Virou para trás e olhou pela
janela. Não havia muito que olhar a não serem outras casas e as copas de
duas ou três árvores distantes que apareciam por detrás de alguns sobrados. Viu o céu e como estava azul. Logo se lembrou
dos finais de semana em que saiu com seu namorado para cidades próximas de onde
moravam. Cidades essas que ainda não haviam conhecido. Lembrou-se do dia em que
fizeram trilha e como o clima estava agradável naquele dia.
Ficou perdida em suas lembranças
que, de algum modo, voavam pelo lado de fora da janela. O canto desesperado do
João-de-Barro serviu para tirar o feitiço que caía sobre os olhos dela, mas
também trouxe uma sensação de solidão quente, de saudade de alguma coisa que
ela não lembrava exatamente do que. Uma saudade de alguma coisa emocionante e
que exigisse coragem que ela ainda não teve. Levantou-se e foi até a sala, ligou a
televisão e pulou de canal em canal à procura de qualquer coisa interessante e
não encontrou. Ficou mais triste e entediada. Era como se ela não existisse
para o resto do mundo. Questionou para si mesma qual era a sua função, se viver
seria aquilo mesmo. Perguntou-se se fazia algum sentido trabalhar a semana inteira
e ficar em casa descansando ao domingos em frente à televisão cuja programação
não diferenciava muito de programas de auditório que se estendem durante quase toda a
tarde e que, no entanto, transmitem quase nada.
As horas passaram, e chegou o
momento do encontro com seu namorado. Tomaram café-da-tarde juntos e depois
saíram. Foram esperar pelo início do sacrifício juntos.
A semana passou, dia após dia. As
segundas e terças-feiras costumam ser, misteriosamente, mais cumpridas do que
as sextas e os finais de semana.
Renata e seu namorado não saíram
no sábado à noite por que ele trabalhara até tarde, mesmo depois de ele ter
feito o convite. O domingo era deles e pela manhã, ela recebeu uma mensagem do
seu amado perguntando que horas ela iria até a casa dele. Ela ficou de ir após
o almoço. Ele não gostou alegando ser tarde demais.
Talvez, ele quisesse passar mais
tempo com ela. Ela, talvez, quisesse almoçar com os pais.
Ela entendeu a posição do
namorado, mas ao questionar pelo motivo o qual ele ficara irritado, ela recebeu
a resposta de que ela sabia que ele não gostava de ficar em casa aos finais de
semana, e que ele não iria esperar por ela. Ele não iria esperar ela chegar.
Renata teve seus olhos cobertos
de lembranças. Lembranças de vários dias monótonos de espera. Todos nós
esperamos por algo. Pelo o que exatamente?
Naquele domingo, ela não almoçou
com os pais. Almoçou na casa dele onde estavam a mãe dele, tias,
primos e primas. Ele a acompanhou na mesa, mas já havia almoçado. Enquanto ela comia,
lembrou-se da mãe que ficou em casa preparando o almoço e desejou que, pelo
menos, seu pai almoçasse com ela. Renata reconheceu que, naquele momento, não
passava de uma ave.
Passaram o restante da tarde e
noite juntos. Passaram bem, felizes e as baterias foram recarregadas, apesar de
carregadores. Fizeram amor e dormiram bem... A espera havia chegado ao fim.
No dia seguinte, pela manhã, começava o início de luta. E por mais irônico que pareça: início da espera pelo final de semana.
Será que somos mais carregadores? Talvez...
No dia seguinte, pela manhã, começava o início de luta. E por mais irônico que pareça: início da espera pelo final de semana.
Será que somos mais carregadores? Talvez...
Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 24/04/2013
Código do texto: T4257655