Foto do jogo "O Grito" |
SENTADA AOS MEUS PÉS
A história que contarei agora será motivo de piada para muitos. Estou certo de que muitos não acreditaram em minhas palavras, mas o que eu ganharia em inventar histórias?
Eu estava no hospital público, colocado quase sentado. Havia sofrido um acidente de moto e minha perna direita estava cheia de pinos. Aquela imagem me assustava e me enojava. Não gosto muito de olhar para esses ferros entrando na carne em contato com o osso. Não sei bem o que sinto, mas um vazio toma conta da boca do meu estomago. Talvez seja o mesmo vazio que cerca nós humanos: o vazio de ser o nada que somos, tão vulneráveis ao nada ou ao tudo.
Detesto hospitais. O cheiro, o barulho de pessoas falando ao mesmo tempo e tentando falar baixo, crianças e bebês chorando, macas sendo empurradas, bipes, telefones, passos e a atmosfera pesada e suja causam-me certo enjoo e medo de sair pior do que entrei: medo da morte daquele lugar horroroso.
Minha esposa tinha voltado para casa para tomar um banho e descansar um pouco. Já era noite e eu estava completamente sozinho rodeado de moribundos iguais a mim, cada qual em seu leito esperando por qualquer coisa: a luz da cura ou da morte. Eu, por minha vez, estava sem sono e com fome, já que a alimentação era precária e rala. Minhas nádegas doíam de tanto suportar meu corpo e a vontade de deitar por completo dominava-me. Como é bom virar de um lado para o outro na cama.
As luzes do quarto estavam apagadas, mas havia certa luminosidade que vinha de aparelhos e iluminarias azuladas. Isso talvez para que os pacientes não se percam dentro da escuridão, essa escuridão que é de certa forma diferente daquela de estar enfermo. Não dava medo, na verdade nada lembrava assombrações naquele lugar. O medo é outro, é de outra coisa que vem ou que fica de vários modos.
Não sei exatamente que horas eram, mas já era tarde. Eu estava de olhos fechados tentando dormir ou pensar em nada quando de repente senti o meu lado esquerdo abaixar-se um pouco como quem senta na beira da cama. Abri os olhos e olhei em direção, achava que poderia ser alguma enfermeira ou alguém, parente ou coisa parecida. Para minha surpresa não havia ninguém, mas sentia que ainda o meu lado esquerdo estava levemente rebaixado.
Foi quando olhei para o lençol azulado sobre o fino colchão onde senti algo sentar-se e vi o que parecia ser o formato de um mão e segundos depois, aquele pedaço de pano subiu levemente como se o peso tivesse acabado de ser retirado. Não sei explicar, mas era como se eu não tivesse dado conta do que tinha acabado de acontecer.
Fechei novamente os olhos e minutos depois senti o mesmo rebaixamento do colchão próximo ao meu pé esquerdo. Neste momento fiquei assustado e fingi que não era nada, preferi ficar com os olhos fechados. Uma péssima ideia que tive. O lugar próximo ao meu pé que outrora havia rebaixado agora voltara ao normal e uma baforada foi dada próximo ao meu rosto. Meu Deus! Não sei o que foi aquilo e nem sei se quero saber o que era. Era o mesmo quando alguém assopra perto do seu rosto e você sente aquele ar quente. Abri os olhos e olhei em todas as direções que eu conseguia e não vi ninguém que pudesse ter feito aquilo.
Talvez se houvesse algum cobertor eu teria me coberto até a cabeça, mas a única coisa que eu podia fazer era fechar os olhos. Provavelmente isso irritava o que quer que seja que estava ali ao meu lado. Enquanto meus olhos estavam fechados, senti novamente aquela baforada, mas dessa vez mais forte. Não me atrevi a olhar, virei apenas o rosto em direção oposta e segundos depois, senti de novo a baforada na fronte do meu rosto. Meus olhos se esbugalharam sem meu consentimento e mais uma vez não havia nada ou ninguém.
“Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...” Minha perna deu pra doer naquela hora.
Uma sombra começou a subir do chão pela parede que ficava de frente para minha cama. Eu estava com dificuldade para respirar e mesmo não querendo olhar eu já não tinha mais controle sobre minha visão. Aquela sombra foi subindo até que eu pude ver a sombra de uma pessoa, creio que era um homem. Não havia nada no chão, nem brinquedos nem objeto nenhum que pudessem, de certa forma, criar aquela imagem horrenda. Chegou um momento em que quase a parede toda foi tomada por aquele tom escuro. O braço direito daquela sombra caiu e senti uma forte dor na minha perna.
Quando finalmente consegui fechar os olhos, comecei a rezar uma Ave Maria, pena que não durou muito. Infelizmente vi que aquela sombra ainda se mantinha em pé e sem o braço. A cabeça abriu-se e dela começaram a sair o que parecia ser pássaros.
Juro por Deus que eu pude ouvir os gritos, o bater de azas daquelas aves e vi também que voaram em minha direção. Não sei que pássaros eram, mas creio que eram corvos. Tentei gritar e pedir ajuda, mas não consegui. O medo era mais forte. Meu peito doía, assim como a minha garganta também parecia estar empedrada. Meus olhos ardiam, acho, não sei bem. Lembro apenas que nem chorar eu conseguia direito.
Tentei proteger minha cabeça com as mãos e os braços e meio que encolhido eu fiquei por alguns minutos. Nada mais aconteceu e nem barulho, além dos aparelhos médicos, era audível. Eu queria muito abrir os olhos, mas não tinha coragem. Precisava, no entanto, certificar-me de que tudo não passara de um pesadelo ou alguma alucinação. Tentei acreditar que os medicamentos para dor foram dados em alta dosagem e que eu estava perdido na misteriosa brecha entre a realidade e o imaginário. Abri os olhos por fim, aos poucos, com cautela, para não ver tão diretamente qualquer coisa que pudesse fugir das minhas capacidades de explicar ou descrever.
Não havia nada de mais. O quarto continuava o mesmo e não havia sombras, pássaros ou gritos. Os bipes dos aparelhos ainda eram a única coisa que pareciam vivos enquanto alguns de seus escravos enfermos tossiam seca e pesadamente de vez em quando. Estava um pouco cansado e tentei cochilar quando sentir alguém sentar na beira da minha cama. Olhei de imediato contrariando o meu pavor. Não havia ninguém e mesmo assim o colchão estava afundado. Não consegui desviar o meu olhar e um arrepio tomou conta do meu corpo começando pela minha perna fraturada.
Não posso explicar e nem sei se realmente foi real, mas naquele momento eu não podia ouvir mais nada, nem aparelhos e nem minha própria respiração ofegante. Era como se eu estivesse imerso dentro de uma grande bolha d’água. Era incapaz de mover um dedo que fosse. A luz começou a piscar. Uma garota estava sentada aos meus pés. Segurava os ferros dos pinos que estavam fixados a minha perna. O lençol azulado deu lugar ao vermelho vivo do meu sangue. Ela tinha os cabelos cumpridos e negros jogados sobre seu rosto que eu não pude ver quando ela se virara para me encarar. Além da dor em minha perna, lembro apenas que sentia muito frio e medo. Não queria olhar, mas era impossível desviar o olhar daquela criatura tenebrosa.
Caro leitor, juro que vi o que acabo de relatar. Ela abriu sua boca que era na verdade imensa e negra como se não houve fundo. Um grito ensurdecedor tomou conta da minha mente. Tentei com as mãos abafar aquele barulho infernal, no entanto, os arrepios e a dor que tomavam conta do meu corpo pareciam intensificar aquele grito e vice e versa.
Não sei mais o que aconteceu depois disso. Acordei com duas enfermeiras apalpando meu rosto e dizendo para eu me manter calmo. Não vi seus rostos claramente, era como se eu tivesse bebido. Lembrei da garota em meus pés e tentei contar o que havia acontecido, mas fui impedido e creio que nem acreditariam em mim. Tentei olhar para minha perna e lembro que soltei um “Ai meu Deus” quando vi minha cama ensangüentada e minha perna completamente negra. Ouvi então um “Não se preocupa, vai ficar tudo bem”.
Acordei depois, ainda meio sonolento e entorpecido com minha esposa ao meu lado choramingando. Ela não esperou nenhuma palavra minha e chamou o médico que minutos depois apareceu do outro lado da minha cama perguntando-me se estava bem. Depois de palavras e palavras fui informado que tiveram que amputar minha perna. Não irei contar essa parte da história caro leitor, não há necessidade, já que nem eu ainda consigo suportar.
Tentei, já em minha própria casa, contar o fato a minha esposa e ao meu pai, mas fui repreendido e disseram que eu estaria delirando. Meu filho de três anos, alguns dias atrás, me disse que não gosta e tem medo de entrar no meu quarto. Quando perguntei o motivo, fui avisado, num cochicho ao pé do ouvido, que uma menina fica em pé perto da janela nos observando.
Eu estava no hospital público, colocado quase sentado. Havia sofrido um acidente de moto e minha perna direita estava cheia de pinos. Aquela imagem me assustava e me enojava. Não gosto muito de olhar para esses ferros entrando na carne em contato com o osso. Não sei bem o que sinto, mas um vazio toma conta da boca do meu estomago. Talvez seja o mesmo vazio que cerca nós humanos: o vazio de ser o nada que somos, tão vulneráveis ao nada ou ao tudo.
Detesto hospitais. O cheiro, o barulho de pessoas falando ao mesmo tempo e tentando falar baixo, crianças e bebês chorando, macas sendo empurradas, bipes, telefones, passos e a atmosfera pesada e suja causam-me certo enjoo e medo de sair pior do que entrei: medo da morte daquele lugar horroroso.
Minha esposa tinha voltado para casa para tomar um banho e descansar um pouco. Já era noite e eu estava completamente sozinho rodeado de moribundos iguais a mim, cada qual em seu leito esperando por qualquer coisa: a luz da cura ou da morte. Eu, por minha vez, estava sem sono e com fome, já que a alimentação era precária e rala. Minhas nádegas doíam de tanto suportar meu corpo e a vontade de deitar por completo dominava-me. Como é bom virar de um lado para o outro na cama.
As luzes do quarto estavam apagadas, mas havia certa luminosidade que vinha de aparelhos e iluminarias azuladas. Isso talvez para que os pacientes não se percam dentro da escuridão, essa escuridão que é de certa forma diferente daquela de estar enfermo. Não dava medo, na verdade nada lembrava assombrações naquele lugar. O medo é outro, é de outra coisa que vem ou que fica de vários modos.
Não sei exatamente que horas eram, mas já era tarde. Eu estava de olhos fechados tentando dormir ou pensar em nada quando de repente senti o meu lado esquerdo abaixar-se um pouco como quem senta na beira da cama. Abri os olhos e olhei em direção, achava que poderia ser alguma enfermeira ou alguém, parente ou coisa parecida. Para minha surpresa não havia ninguém, mas sentia que ainda o meu lado esquerdo estava levemente rebaixado.
Foi quando olhei para o lençol azulado sobre o fino colchão onde senti algo sentar-se e vi o que parecia ser o formato de um mão e segundos depois, aquele pedaço de pano subiu levemente como se o peso tivesse acabado de ser retirado. Não sei explicar, mas era como se eu não tivesse dado conta do que tinha acabado de acontecer.
Fechei novamente os olhos e minutos depois senti o mesmo rebaixamento do colchão próximo ao meu pé esquerdo. Neste momento fiquei assustado e fingi que não era nada, preferi ficar com os olhos fechados. Uma péssima ideia que tive. O lugar próximo ao meu pé que outrora havia rebaixado agora voltara ao normal e uma baforada foi dada próximo ao meu rosto. Meu Deus! Não sei o que foi aquilo e nem sei se quero saber o que era. Era o mesmo quando alguém assopra perto do seu rosto e você sente aquele ar quente. Abri os olhos e olhei em todas as direções que eu conseguia e não vi ninguém que pudesse ter feito aquilo.
Talvez se houvesse algum cobertor eu teria me coberto até a cabeça, mas a única coisa que eu podia fazer era fechar os olhos. Provavelmente isso irritava o que quer que seja que estava ali ao meu lado. Enquanto meus olhos estavam fechados, senti novamente aquela baforada, mas dessa vez mais forte. Não me atrevi a olhar, virei apenas o rosto em direção oposta e segundos depois, senti de novo a baforada na fronte do meu rosto. Meus olhos se esbugalharam sem meu consentimento e mais uma vez não havia nada ou ninguém.
“Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...” Minha perna deu pra doer naquela hora.
Uma sombra começou a subir do chão pela parede que ficava de frente para minha cama. Eu estava com dificuldade para respirar e mesmo não querendo olhar eu já não tinha mais controle sobre minha visão. Aquela sombra foi subindo até que eu pude ver a sombra de uma pessoa, creio que era um homem. Não havia nada no chão, nem brinquedos nem objeto nenhum que pudessem, de certa forma, criar aquela imagem horrenda. Chegou um momento em que quase a parede toda foi tomada por aquele tom escuro. O braço direito daquela sombra caiu e senti uma forte dor na minha perna.
Quando finalmente consegui fechar os olhos, comecei a rezar uma Ave Maria, pena que não durou muito. Infelizmente vi que aquela sombra ainda se mantinha em pé e sem o braço. A cabeça abriu-se e dela começaram a sair o que parecia ser pássaros.
Juro por Deus que eu pude ouvir os gritos, o bater de azas daquelas aves e vi também que voaram em minha direção. Não sei que pássaros eram, mas creio que eram corvos. Tentei gritar e pedir ajuda, mas não consegui. O medo era mais forte. Meu peito doía, assim como a minha garganta também parecia estar empedrada. Meus olhos ardiam, acho, não sei bem. Lembro apenas que nem chorar eu conseguia direito.
Tentei proteger minha cabeça com as mãos e os braços e meio que encolhido eu fiquei por alguns minutos. Nada mais aconteceu e nem barulho, além dos aparelhos médicos, era audível. Eu queria muito abrir os olhos, mas não tinha coragem. Precisava, no entanto, certificar-me de que tudo não passara de um pesadelo ou alguma alucinação. Tentei acreditar que os medicamentos para dor foram dados em alta dosagem e que eu estava perdido na misteriosa brecha entre a realidade e o imaginário. Abri os olhos por fim, aos poucos, com cautela, para não ver tão diretamente qualquer coisa que pudesse fugir das minhas capacidades de explicar ou descrever.
Não havia nada de mais. O quarto continuava o mesmo e não havia sombras, pássaros ou gritos. Os bipes dos aparelhos ainda eram a única coisa que pareciam vivos enquanto alguns de seus escravos enfermos tossiam seca e pesadamente de vez em quando. Estava um pouco cansado e tentei cochilar quando sentir alguém sentar na beira da minha cama. Olhei de imediato contrariando o meu pavor. Não havia ninguém e mesmo assim o colchão estava afundado. Não consegui desviar o meu olhar e um arrepio tomou conta do meu corpo começando pela minha perna fraturada.
Não posso explicar e nem sei se realmente foi real, mas naquele momento eu não podia ouvir mais nada, nem aparelhos e nem minha própria respiração ofegante. Era como se eu estivesse imerso dentro de uma grande bolha d’água. Era incapaz de mover um dedo que fosse. A luz começou a piscar. Uma garota estava sentada aos meus pés. Segurava os ferros dos pinos que estavam fixados a minha perna. O lençol azulado deu lugar ao vermelho vivo do meu sangue. Ela tinha os cabelos cumpridos e negros jogados sobre seu rosto que eu não pude ver quando ela se virara para me encarar. Além da dor em minha perna, lembro apenas que sentia muito frio e medo. Não queria olhar, mas era impossível desviar o olhar daquela criatura tenebrosa.
Caro leitor, juro que vi o que acabo de relatar. Ela abriu sua boca que era na verdade imensa e negra como se não houve fundo. Um grito ensurdecedor tomou conta da minha mente. Tentei com as mãos abafar aquele barulho infernal, no entanto, os arrepios e a dor que tomavam conta do meu corpo pareciam intensificar aquele grito e vice e versa.
Não sei mais o que aconteceu depois disso. Acordei com duas enfermeiras apalpando meu rosto e dizendo para eu me manter calmo. Não vi seus rostos claramente, era como se eu tivesse bebido. Lembrei da garota em meus pés e tentei contar o que havia acontecido, mas fui impedido e creio que nem acreditariam em mim. Tentei olhar para minha perna e lembro que soltei um “Ai meu Deus” quando vi minha cama ensangüentada e minha perna completamente negra. Ouvi então um “Não se preocupa, vai ficar tudo bem”.
Acordei depois, ainda meio sonolento e entorpecido com minha esposa ao meu lado choramingando. Ela não esperou nenhuma palavra minha e chamou o médico que minutos depois apareceu do outro lado da minha cama perguntando-me se estava bem. Depois de palavras e palavras fui informado que tiveram que amputar minha perna. Não irei contar essa parte da história caro leitor, não há necessidade, já que nem eu ainda consigo suportar.
Tentei, já em minha própria casa, contar o fato a minha esposa e ao meu pai, mas fui repreendido e disseram que eu estaria delirando. Meu filho de três anos, alguns dias atrás, me disse que não gosta e tem medo de entrar no meu quarto. Quando perguntei o motivo, fui avisado, num cochicho ao pé do ouvido, que uma menina fica em pé perto da janela nos observando.
Samir S. Souza
Publicado no recanto das letras em 26/03/2012
Código do Texto: T3577267
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